As condições para um sistema global alternativo baseado na justiça social e internacional

Samir Amin

Janeiro de 2004


Primeira Edição: Comunicacção apresentada ao Fórum Social Mundial, Mumbai, 2004.

Fonte: http://resistir.info/

Transcrição: Tiago Redondo - O original encontra-se em http://next.u-paris10.fr/actuelmarx/index4.htm

HTML: Fernando Araújo.


A actual expansão capitalista liberal gera polarização e pauperização e é, por isso, social e internacionalmente insustentável

Um discurso sobre a pobreza e a necessidade de lhe reduzir a magnitude, se não de a erradicar, tornou-se hoje moda. É um discurso da caridade, ao estilo do século XIX, que não procura compreender os mecanismos económicos e sociais que geram a pobreza, apesar de os meios técnicos e científicos para a erradicar estarem agora disponíveis. 

O capitalismo e a nova questão agrária 

Todas as sociedades anteriores aos tempos (capitalistas) modernos eram sociedades camponesas. A sua produção era regida por vários sistemas e lógicas específicos – mas não pelas que regem o capitalismo numa sociedade de mercado, como a maximização do retorno sobre o capital. 

A agricultura capitalista moderna – englobando quer ricas explorações familiares em larga escala, quer grandes empresas do agro-negócio – está agora envolvida num ataque maciço à produção camponesa do Terceiro Mundo. A luz verde para isto foi dada na sessão de Novembro de 2001 da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Doha, Qatar. Há muitas vítimas deste ataque – principalmente camponeses do Terceiro Mundo, que ainda constituem metade da humanidade. 

A agricultura capitalista, regida pelo princípio do retorno sobre o capital, localizada quase exclusivamente na América do Norte, Europa, Austrália e no Cone Sul da América Latina, emprega apenas umas poucas dezenas de milhões de agricultores que já não são camponeses. Devido ao grau de mecanização e à grande dimensão das explorações geridas por um agricultor, a sua produtividade normalmente varia entre 2 e 4,5 milhões de libras (1 a 2 milhões de quilogramas) de cereais por agricultor. 

Em agudo contraste, 3 mil milhões de agricultores estão envolvidos em explorações camponesas. As suas explorações podem ser agrupadas em dois sectores distintos, com escalas de produção, características económicas e sociais e níveis de eficiência muito diferentes. Um sector, capaz de beneficiar da revolução verde, obteve fertilizantes, pesticidas e sementes melhoradas e tem algum grau de mecanização. A produtividade destes camponeses varia entre 20.000 e 110.000 libras (9.072 e 49.895 kg) de cereais por ano. No entanto, a produtividade anual dos camponeses excluídos das novas tecnologias estima-se em cerca de 2.000 libras (907 kg) de cereais por agricultor. 

A relação da produtividade do segmento mais avançado da agricultura mundial para o mais pobre, que era de cerca de 10 para 1 antes de 1940, é agora próximo de 2000 para 1! Isso significa que a produtividade evoluiu muito mais desigualmente na área da agricultura e da produção de alimentos do que em qualquer outra área. Simultaneamente, esta evolução levou à redução dos preços relativos dos produtos alimentares (em relação a outros produtos industriais e de serviços) para um quinto do que eram há 50 anos. A nova questão agrária é o resultado desse desenvolvimento desigual. 

De facto, o que sucederia se a agricultura e a produção alimentar fossem tratadas como qualquer outra forma de produção, submetidas às regras da concorrência num mercado aberto e desregulado, tal como decidido em princípio na última conferência da OMC (Doha, Novembro de 2001)? Iriam esses princípios encorajar a aceleração da produção? 

Imagine-se que a comida trazida ao mercado pelos actuais 3 mil milhões de camponeses, após garantirem as suas próprias subsistências, fosse em vez disso produzida por 20 milhões de novos agricultores modernos. As condições para o sucesso dessa alternativa incluiriam a transferência de áreas importantes de boas terras para os novos agricultores (e estas terras teriam de ser retiradas das mãos das actuais sociedades camponesas), capital (para comprar fornecimentos e equipamentos) e acesso aos mercados de consumo. Esses agricultores iriam, de facto, concorrer com sucesso com os milhares de milhões de camponeses actuais. Mas o que sucederia a esses milhares de milhões de pessoas? 

Nas actuais circunstâncias, concordar com o princípio geral da concorrência para os produtos agrícolas e alimentares, como imposto pela OMC, significa aceitar a eliminação de milhares de milhões de produtores não competitivos, no curto tempo histórico de algumas décadas. Que vai ser destes milhares de milhões de seres humanos, a maioria dos quais já é pobre entre os pobres, que só se consegue alimentar com grande dificuldade? Em 50 anos, o desenvolvimento industrial, mesmo na fantasiosa hipótese de uma taxa de crescimento contínua de 7% ao ano, não poderia absorver nem um terço desta reserva. 

O principal argumento apresentado para legitimar a doutrina da concorrência da OMC é o de que este desenvolvimento ocorreu, de facto, nos séculos XIX e XX na Europa e nos Estados Unidos, onde criou uma sociedade moderna, próspera, urbana-industrial e pós-industrial, com uma agricultura moderna capaz de alimentar a nação e, até, de exportar alimentos. Porque é que este padrão não se repetiria nos países contemporâneos do Terceiro Mundo? 

Este argumento falha, ao não considerar dois factos da maior importância, que fazem com que a reprodução deste padrão nos países do Terceiro Mundo seja quase impossível. O primeiro é que o modelo europeu se desenvolveu ao longo de um século e meio com tecnologias industriais de trabalho intensivo. As tecnologias modernas usam muito menos mão-de-obra e os recém chegados do Terceiro Mundo terão de as adoptar se querem que as suas exportações industriais sejam competitivas nos mercados globais. O segundo argumento é que, durante essa longa transição, a Europa beneficiou da emigração massiva da sua população excedente para as Américas. 

Podemos imaginar outras alternativas e debatê-las amplamente? Outras em que a agricultura camponesa fosse mantida no futuro visível do século XXI, mas que, simultaneamente, embarcasse num processo de progresso social e tecnológico contínuo? Desta maneira, as mudanças poderiam ocorrer a um ritmo que permitisse a progressiva transferência dos camponeses para o emprego não agrícola e não rural. 

Um tal conjunto estratégico de objectivos envolve a convergência de complexas políticas aos níveis nacional, regional e global. 

A sobrevivência de metade da humanidade deve ser seriamente ponderada. Não estará garantida enquanto o direito de todos os camponeses à terra e aos meios para a cultivar não for reconhecido. Neste espírito, o Fórum Social Mundial (FSM) deveria organizar uma campanha global pelo reconhecimento deste direito. 

A Nova Questão Laboral 

A população urbana do planeta representa agora cerca de metade da humanidade, pelo menos três milhares de milhões de indivíduos, constituindo os camponeses a outra metade. Os dados sobre esta população permitem-nos distinguir entre o que chamamos classes médias e classes populares. 

A grande massa de trabalhadores dos segmentos modernos da produção consiste em assalariados, que constituem actualmente mais de quatro quintos da população urbana dos centros desenvolvidos. Esta massa é dividida em pelo menos duas categorias, cuja fronteira divisória é tanto visível para o observador externo como verdadeiramente vivida na consciência dos indivíduos afectados. 

Há aqueles que podemos chamar classes populares estabilizadas, no sentido de que têm um emprego relativamente seguro, graças, entre outras coisas, às suas qualificações profissionais que lhes dão poder negocial perante os empregadores e, assim, estão frequentemente organizados, pelo menos nalguns países, em poderosas organizações sindicais. Em qualquer caso, esta massa tem um peso político que lhe reforça a capacidade negocial. 

Os outros compõem as classes populares precárias, que incluem trabalhadores com baixa capacidade negocial (em resultado das suas baixas qualificações, do seu estatuto de não-cidadãos ou da sua raça ou sexo), assim como os não-assalariados (os formalmente desempregados e os pobres com trabalhos no sector informal). Podemos chamar a esta segunda categoria das classes populares “precária”, em vez de “não-integrada” ou “marginalizada”, porque estes trabalhadores estão perfeitamente integrados na lógica sistémica que comanda a acumulação de capital. 

Embora os centros contem com apenas 18% da população do planeta, uma vez que a sua população é 90% urbana, albergam um terço da população urbana do mundo. 

 
Tabela 1 – Percentagens da população urbana mundial total
  Centros Periferias Mundo
Classes médias e altas 11 13 25
Classes populares 22 54 75
    -Estabilizadas (13) (11) (25)
    -Precárias (9) (43) (50)
TOTAL 33 67 100
População considerada (milhões) 1 000 2 000 3 000

Se, no conjunto, as classes populares constituem três quartos da população urbana mundial, a subcategoria dos precários representa hoje 40% das classes populares nos centros e 80% nas periferias, isto é, dois terços das classes populares à escala mundial. Por outras palavras, as classes populares precárias representam metade (pelo menos) da população urbana mundial e bem mais do que isso nas periferias. 

Um olhar sobre a composição das classes populares urbanas há meio século atrás, após a Segunda Guerra Mundial, mostra que as proporções que caracterizaram a estrutura das classes populares eram muito diferentes do que se tornaram hoje. 

Na altura, a parte do Terceiro Mundo não excedia metade da população urbana global (então na ordem de um milhar de milhão de indivíduos), contra dois terços actualmente. Mega-cidades, como as que conhecemos hoje em quase todos os países do Sul, ainda não existiam. Havia apenas algumas grandes cidades, nomeadamente na China, Índia e América Latina. 

Nos centros, as classes populares beneficiaram, no período do pós-guerra, de uma situação excepcional, baseada no compromisso histórico imposto ao capital pelas classes trabalhadoras. Este compromisso permitiu a estabilização da maioria dos trabalhadores nas formas de uma organização do trabalho conhecida como o sistema fabril Fordista. Nas periferias, a proporção de precários – que era, como sempre, maior do que nos centros – não excedia metade das classes populares urbanas (contra mais de 70% hoje). A outra metade ainda consistia, em parte, de assalariados estabilizados nas formas da nova economia colonial e da sociedade modernizada e, em parte, nas velhas formas das indústrias artesanais. 

A principal transformação social que caracteriza a segunda metade do século XX pode ser resumida numa única estatística: a proporção das classes populares precárias aumentou de menos de um quarto para mais de metade da população urbana global, e este fenómeno de pauperização reapareceu numa escala significativa nos próprios centros desenvolvidos. Esta população urbana desestabilizada aumentou, em meio século, de menos de 250 milhões para mais de 1500 milhões de indivíduos, registando uma taxa de crescimento que ultrapassa as que caracterizam a expansão económica, o crescimento populacional ou o próprio processo de urbanização. 

As organizações representativas dos trabalhadores deparam-se com um novo desafio. Terão de ser inventivas e criar novas formas de organização e acção, que reúnam numa frente unida aqueles segmentos dos trabalhadores relativamente estabilizados com os que não são. 

Acumulação é pauperização e polarização à escala global

Pauperização – Não há melhor termo para nomear a tendência evolucionária na segunda metade do século XX. 

A pauperização é um fenómeno inseparável da polarização à escala mundial – um produto inerente à expansão do capitalismo realmente existente, que por esta razão devemos chamar imperialista por natureza. 

A pauperização nas classes populares urbanas está intimamente ligada aos desenvolvimentos que vitimizam as sociedades camponesas do Terceiro Mundo. A submissão destas sociedades às exigências da expansão do mercado capitalista acarreta novas formas de polarização social, que excluem uma proporção crescente de agricultores do acesso ao uso da terra. Estes camponeses empobrecidos ou sem-terra alimentam – mais ainda do que o crescimento populacional – a migração para os bairros de lata. No entanto, todos estes fenómenos estão destinados a agravar-se enquanto os dogmas liberais não forem contestados e nenhuma política correctiva dentro deste quadro liberal pode deter a sua expansão. 

A pauperização coloca em questão quer a teoria económica quer as estratégias das lutas sociais. 

A teoria económica vulgar convencional evita as questões reais colocadas pela expansão do capitalismo. Isto sucede porque substitui a análise do capitalismo realmente existente por uma teoria de um capitalismo imaginário, concebido como uma simples e contínua extensão de relações de troca (o mercado), enquanto o sistema funciona e reproduz-se na base da produção capitalista e relações de troca (não simples relações de mercado). Esta substituição alia-se facilmente com a noção à priori, que nem a história nem a argumentação racional confirmam, de que o mercado se auto-regula e produz um óptimo social. A pobreza só pode ser então explicada por causas que se decreta serem exteriores à lógica económica, como o crescimento populacional ou políticas erradas. É muitas vezes atribuída à revolução tecnológica em curso e considerada uma dificuldade transitória. Esta falácia é baseada num conceito de “neutralidade” das tecnologias, ignorando que estas operam apenas no quadro de relações sociais e a sua relação com a lógica actual da acumulação capitalista. Todavia, este verdadeiro vírus liberal, que infecta o pensamento social contemporâneo e aniquila a capacidade de entender o mundo, e mais ainda de o transformar, penetrou profundamente nas várias esquerdas constituídas desde a Segunda Guerra Mundial. Os movimentos correntemente empenhados em lutas sociais por “um outro mundo” e por uma globalização alternativa só conseguirão produzir avanços sociais significativos se se livrarem deste vírus para construir um debate teórico autêntico. Enquanto não se livrarem deste vírus, os movimentos sociais, mesmo os melhor intencionados, continuarão agrilhoados ao pensamento convencional e, como tal, prisioneiros de propostas correctivas ineficazes – aquelas que são alimentadas pela retórica sobre a redução da pobreza.

O novo padrão do imperialismo colectivo sob a liderança dos Estados Unidos é um apartheid à escala global

Primeira hipótese: O Imperialismo tornou-se um imperialismo colectivo (da tríade). 

Ao longo das fases prévias de expansão da globalização capitalista, os centros eram sempre conjugados no plural. Estes centros mantiveram entre si relações marcadas por uma competição violenta constante, na medida em que o conflito entre os imperialismos estava no centro da cena histórica. O retorno ao liberalismo globalizado, como desde 1980, obriga à revisão estrutural do centro contemporâneo do sistema. Num aspecto, pelo menos em termos da gestão económica liberal, os estados que formam a tríade central constituem um bloco aparentemente sólido. 

A iniludível questão que deve ser respondida é então a de saber se as ditas evoluções descrevem uma alteração qualitativa duradoira – uma vez que o centro já não é conjugado no plural, mas tornou-se definitivamente “colectivo” – ou se se devem apenas a circunstâncias económicas. 

Esta evolução poderia ser atribuída a alterações nas condições de competitividade. Há algumas décadas atrás, as grandes empresas travavam as suas batalhas pela competitividade essencialmente nos mercados nacionais, e estes podiam incluir o dos Estados Unidos (o maior mercado nacional do mundo) ou mesmo os dos estados europeus (apesar das suas modestas dimensões, que os punham em desvantagem em relação aos Estados Unidos). Os vencedores dos “ rounds ” nacionais podiam ocupar uma posição ideal no mercado mundial. Hoje em dia, a dimensão de mercado necessária para se ser um “vencedor” no primeiro “ round ” das competições estima-se em cerca de 500 a 600 milhões de “consumidores potenciais”. A batalha tem de ser, por isso, combatida directamente no mercado mundial e ganha nessa arena. E são os que vencem o desafio neste mercado que se irão impor, então e depois, nos respectivos terrenos nacionais. A globalização extensiva está a tornar-se o quadro operacional primário para as grandes empresas. Por outras palavras, no par nacional/mundial os termos de causalidade estão invertidos. Antigamente, o poderio nacional ditava a presença ao nível mundial, mas hoje é ao contrário. Em resultado, as firmas multinacionais, independentemente da sua nacionalidade, têm interesses comuns na gestão do mercado mundial. Esses interesses sobrepõem-se aos conflitos de mercado normais que definem todas as formas de concorrência peculiares do capitalismo, quaisquer que elas sejam. 

A solidariedade entre os segmentos dominantes do capital transnacional e os membros da tríade é real e explica a sua união em torno do neo-liberalismo globalizado. Os Estados Unidos são vistos como o defensor, militar se necessário, dos “interesses comuns”, embora Washington dificilmente pretenda “dividir irmãmente” os lucros da sua liderança. Ao invés, procura tornar os seus aliados em vassalos, e está pronto apenas para fazer concessões menores a pequenos aliados na tríade. Será que este conflito de interesses dentro do capital dominante levará à ruptura da Aliança Atlântica? Não é impossível, mas improvável. 

Esta solidariedade da tríade funciona ao nível da gestão económica do sistema global através de um conjunto de instituições criadas para esse efeito. É o caso do Banco Mundial. Esta instituição, frequentemente apresentada pomposamente como o maior “ think tank ” a formular escolhas estratégicas para a economia global, não é certamente tão importante. O Banco Mundial dificilmente é mais do que uma espécie de Ministério da Propaganda para o G7, encarregado de produzir slogans e discursos, enquanto a verdadeira responsabilidade de tomar decisões económicas estratégicas está reservada à OMC. O Fundo Monetário Internacional (FMI) é mais importante, embora não tanto como habitualmente afirmado. Enquanto o princípio das taxas de câmbio flexíveis governar o sistema monetário internacional e enquanto o FMI não for responsável pelas relações entre as principais divisas (dólar, marco-euro, iene), o Fundo opera apenas como uma espécie de autoridade monetária colonial colectiva para o Sul, governada pelo Norte. Apesar do seu nome, a OMC não pretende organizar o comércio internacional. A sua função é a de remodelar e eventualmente desmantelar as economias do Sul, de acordo com a necessidade de maximizar os lucros das transnacionais. Essa solidariedade faz-se também ao nível político pelo G7 e pelo seu instrumento militar – a NATO – e é alimentada ideologicamente pelo atlantismo. 

Segunda hipótese: No sistema colectivo do imperialismo, os Estados Unidos não têm vantagens económicas decisivas. 

A opinião corrente é a de que o poder militar dos Estados Unidos é apenas a ponta do icebergue, prolongando a superioridade deste país em todos os campos, particularmente nas esferas económica ou mesmo política e cultural. Pode, por isso, ser inevitável a sujeição às tendências hegemónicas que reclama. 

Na verdade, o sistema produtivo dos Estados Unidos está longe de ser “o mais eficiente do mundo”. Ao contrário, nenhum dos seus segmentos pode estar certo de derrotar os seus rivais num mercado mundial realmente aberto, como dado a entender pelos economistas liberais. Um testemunho típico é o do défice comercial dos Estados Unidos, que se vem agravando de ano para ano, aumentando de 100 mil milhões de dólares em 1989 para 500 em 2002. Mais ainda, este défice diz respeito a virtualmente todos os segmentos do sistema produtivo. Mesmo o excedente que os EUA ostentavam em bens de alta tecnologia, que estava em 35 mil milhões em 1990, deu agora lugar a um défice. A competição entre os foguetões espaciais da Ariane e da NASA, entre a Airbus e a Boeing, atestam a vulnerabilidade da vantagem americana. Se confrontada com a Europa e o Japão em termos de produtos de alta tecnologia, com a China, Coreia e outros países industrializados asiáticos e latino-americanos em termos de bens manufacturados comuns, e com a Europa e o cone Sul da América Latina no sector da agricultura, os Estados Unidos da América provavelmente não venceriam nenhuma disputa sem recorrer a esquemas “extra-económicos” que violam os princípios do liberalismo e da concorrência! 

De facto, os Estados Unidos beneficiam de vantagens comparativas exclusivamente no sector do armamento, precisamente porque este sector contorna amplamente as regras que governam o mercado e, também, porque recebe apoio estatal. Certamente, esta vantagem tem algumas repercussões no sector civil (a Internet é um exemplo bem conhecido), mas é também a causa profunda das distorções que constituem debilidades para muitos sectores produtivos. 

A economia norte americana funciona como um parasita, às custas dos seus parceiros no sistema mundial. “Os Estados Unidos da América satisfazem 10% do seu consumo industrial através de importações que não são cobertas pelas exportações de mercadorias nacionais.” O mundo produz para o consumo dos Estados Unidos da América (cujas poupanças nacionais são virtualmente zero). 

O mundo produz e os Estados Unidos da América, que não têm praticamente nenhuns fundos de reserva, consomem. A “vantagem” dos EUA é a de um predador cujo défice é coberto por empréstimos de outros, consentidos ou forçados. Os meios postos em jogo por Washington para compensar deficiências são de vários tipos, incluindo repetidas violações unilaterais dos princípios liberais, exportação de armas (60% do mercado mundial) largamente imposta a aliados subalternos, como os países do Golfo, que nunca usam essas armas, a busca por maiores lucros do petróleo, que pressupõe um maior controlo sobre os produtores – a verdadeira razão para as guerras na Ásia Central e no Iraque. 

A parte essencial do défice americano é coberta por contribuições de capital da Europa, Japão e do Sul – de países ricos em petróleo e classes compradoras de todos os países do Terceiro Mundo, os mais pobres incluídos –, às quais se acrescentam as somas adicionais trazidas pelo serviço da dívida a que foram forçados praticamente todos os países da periferia do sistema mundial. As razões que estão por trás dos contínuos movimentos de capital que alimentam o parasitismo da economia e da sociedade americanas, e que permitem a esta super potência viver dia a dia, são certamente complexas. Mas nada têm a ver com supostas “leis do mercado” simultaneamente racionais e inalteráveis. 

Terceira hipótese: O propósito do controlo militar do planeta é compensar as deficiências económicas dos Estados Unidos. Este fenómeno constitui uma ameaça para todos os povos do Terceiro Mundo. 

Esta hipótese procede logicamente da anterior. A decisão estratégica de Washington de aproveitar a sua superioridade militar e recorrer, neste contexto, a “guerras preventivas”, decididas e planeadas por este país apenas, pretende frustrar todas as esperanças de uma grande nação (como a China, Índia, Rússia e Brasil) ou de uma coligação regional do Terceiro Mundo de ganhar o estatuto de um verdadeiro parceiro, ajudando a modelar o sistema mundial, mesmo que capitalista. 

A estratégia política que acompanha este programa estabeleceu os pretextos para ele, quer tivessem a ver com terrorismo, com a luta contra o tráfico de droga, quer com acusações de produzirem armas de destruição maciça. Estes pretextos são óbvios, se nos lembrarmos da invenção pela CIA de convenientes adversários terroristas, sejam os Talibã ou Bin Laden. 

Não há necessidade de uma frente comum contra o “terrorismo”, tal como é apregoado pelo establishment dos EUA, para esconder o seu alvo real. O que é necessário é uma construtiva frente comum pela justiça social e internacional. Uma vez que haja justiça, não haverá espaço para o terrorismo. 

As acusações de produzirem armas perigosas, feitas hoje contra o Iraque e Coreia do Norte, mas amanhã contra qualquer estado conveniente, empalidecem ao lado da utilização real deste tipo de armas pelos Estados Unidos. Os EUA usaram armas nucleares em Hiroshima e Nagasaki e armas químicas no Vietname, e ameaçam voltar a usar armas nucleares em conflitos futuros. Esses pretextos são apenas instrumentos de propaganda, no sentido que Goebbels deu ao termo: são úteis talvez para convencer a opinião americana de lenta compreensão, mas cada menos credíveis em qualquer outro sítio. 

A ideia de “guerra preventiva”, agora reclamada como um “direito” por Washington, afasta qualquer noção de lei internacional. A Carta das Nações Unidas proíbe o recurso à guerra, excepto em casos de legítima defesa, e só permite a intervenção militar sob condições específicas, devendo qualquer resposta ser proporcionada e provisória. Todos os especialistas em direito internacional sabem que as guerras realizadas desde 1990 foram completamente ilegítimas e, consequentemente, todos os que são responsáveis por elas são também criminosos de guerra. De facto, os Estados Unidos, com a cooperação de outros países, estão já a tratar as Nações Unidas da mesma maneira que os estados fascistas trataram a Liga das Nações. 

A abolição dos direitos comuns a todos os povos, já em curso, substituiu o princípio anterior da igualdade dos povos pela distinção entre a “Raça Superior” (Herrenvolk) – o povo dos Estados Unidos e, atrás dele, o de Israel – e os outros povos. A existência daqueles povos que não pertencem à Raça Superior dos EUA só pode ser tolerada se não constituírem uma “ameaça” para as ambições dos que se apelidam “senhores do planeta”. Esta Raça Superior reserva-se o direito de conquistar o “espaço vital” que julgar necessário para si e para os povos que sustenta. 

Todos nós nos tornámos, por isso, “Peles Vermelhas”, o nome desdenhoso reservado para os nativos americanos, aos olhos do establishment de Washington – o mesmo é dizer: povos que têm o direito de existir apenas enquanto não frustrarem a expansão do capital multinacional baseado nos EUA. Foi-nos prometido que a resistência aos EUA será esmagada usando todo e qualquer meio, mesmo o extermínio, se necessário. Se se tratar de uma questão de obter mais 15 milhões de dólares(1) de lucro para as multinacionais americanas, à custa de 300 milhões de vítimas, não haverá hesitação. O estado “fora-da-lei” por excelência, pedindo emprestada a expressão utilizada pelos presidentes Bush Sénior e Júnior, tal como por Clinton, não são outros senão os próprios Estados Unidos. 

O objectivo actual da estratégia global dos Estados Unidos não é, de todo, criar um mercado global aberto, como tem sido afirmado pelo Banco Mundial, mas, pelo contrário, estabelecer um sistema de pilhagem, através do controlo militar do planeta. O seu objectivo real é transformar o “fluxo de capital” em seu benefício, agora vulnerável, num tributo. 

Este é um projecto de dominação brutal (através do controlo militar), sem hegemonia (entendida no sentido Gramsciano do conceito). Esse projecto aniquila o discurso convencional dos “liberais” americanos (a dominação dos EUA como sendo “benigna”). 

O programa dos EUA é certamente imperialista no sentido mais brutal da palavra, mas não é “imperial” no sentido que Antonio Negri deu ao termo, uma vez que não pretende gerir as sociedades do planeta para as melhor integrar num sistema capitalista coerente. Em vez disso, pretende apenas saquear os seus recursos. Tudo isto é carne e osso da redução do pensamento social aos mantras da economia vulgar, a atenção unilateral dada à maximização da rendibilidade financeira a curto prazo do capital dominante, suportada por meios militares postos à disposição deste capital e ao seu afastamento de qualquer sistema de valores humanos. Este capital está por trás do expansionismo bárbaro que o capitalismo traz em si mesmo, substituindo os valores humanos pela exigência de submissão absoluta às chamadas leis do mercado. 

O programa militarista adoptado pelos Estados Unidos ameaça agora todos os povos. É a expressão da lógica adoptada por Adolf Hitler – mudar as relações sociais e económicas, através da força militar, a favor da “Raça Superior” do presente. Este programa, agora em primeiro plano, sobre-determina todas as circunstâncias políticas, uma vez que o prosseguimento deste programa enfraquece avanços obtidos através da luta social e democrática. Parar o programa militarista dos EUA torna-se, por isso, um objectivo principal e uma responsabilidade para todos. 

Esta opção – i.e. a dominação quando a capacidade de ser hegemónico está perdida – ilustra o facto de o sistema (capitalismo) ter atingido o estádio de obsolescência. Mas é precisamente por essa razão que está destinado a tornar-se num projecto criminoso. 

Quarta Hipótese: A opção dos Estados Unidos por uma globalização militarizada constitui uma séria ameaça aos interesses da Europa e Japão 

Esta hipótese procede da segunda. Entre outros aspectos, o objectivo dos Estados Unidos de controlar militarmente todos os recursos importantes do planeta (o petróleo em particular) pretende relegar os parceiros europeu e japonês para o estatuto de vassalos. As guerras do petróleo americanas são guerras “anti-europeias”. 

A Europa (e o Japão) pode reagir em parte a esta estratégia através de uma aproximação à Rússia, que é capaz de fornecer algum petróleo e mais algumas matérias-primas essenciais. 

A Europa pode e deve ser libertada do vírus liberal; no entanto, esta iniciativa não pode ser tomada pelos segmentos do capital dominante, mas sim pelos povos. 

Os segmentos dominantes do capital, cujos interesses os governos europeus ainda estão decididos a defender a todo o custo, como uma prioridade exclusiva, são, é claro, os defensores do neo-liberalismo globalizado e isso explica porque é que aceitam pagar o preço da sua subordinação ao líder norte-americano. 

Os povos da Europa têm uma visão diferente do projecto Europeu, que querem que assuma dimensões sociais, e das suas relações com o resto do mundo, que querem que sejam regidas pela lei e pela justiça, como têm expressado recentemente, na sua esmagadora maioria, na denúncia da deriva dos Estados Unidos. Se esta cultura humanista e democrata da “velha Europa” prevalecer – o que é possível – então uma coesão autêntica entre a Europa, Rússia, China, toda a Ásia e a África inteira, constituirá a fundação sobre a qual será construído um mundo multi-centrado, democrático e pacífico. 

A maior contradição entre a Europa e os Estados Unidos não é, por isso, os contrastes entre os interesses do capital dominante aqui e acolá, mas sim o tipo identificado nas suas culturas políticas.

O conflito iminente reside na arena das culturas políticas. Na Europa, uma alternativa de esquerda é ainda possível. Pode, simultaneamente, impor uma ruptura com o neo-liberalismo (e o estilhaçar da esperança vã de sujeitar os Estados Unidos às suas exigências, permitindo assim ao capital europeu travar a guerra no campo desminado da competição económica), por exemplo, ao conformar-se às estratégias políticas dos Estados Unidos.(2) O excedente de capital que a Europa optou por “investir” até agora nos Estados Unidos poderia, por isso, ser destinado a projectos de recuperação económica e reabilitação social, sem o que os últimos seriam impossíveis. Mas, uma vez que a Europa pode então escolher dar prioridade ao seu progresso económico e social, a riqueza artificial da economia dos Estados Unidos entraria em declínio e a classe dominante americana seria confrontada com os seus próprios problemas sociais. O significado que dou à minha conclusão é que “a Europa será de esquerda ou não será.” 

Para isso, os europeus têm de se livrar da ilusão de que a carta do liberalismo pode – e deve – ser jogada “honestamente” por todos e que, nesse caso, as coisas melhorariam. Os Estados Unidos não podem renunciar à sua opção por uma prática assimétrica do liberalismo, porque esta é a única maneira de a América poder compensar as suas próprias deficiências. O preço da “prosperidade” americana é a estagnação dos outros. 

A questão europeia pode situar-se aqui. De facto, o seu impacto não pode ser ignorado e uma discussão em profundidade do que eu chamo “as areias movediças no projecto Europeu” é, de facto, necessária. 

As “culturas políticas europeias” são diversificadas, mesmo se contrastam de alguma maneira com a dos Estados Unidos. Existem na Europa forças políticas, sociais e ideológicas que, lucidamente, apoiam a visão de “uma outra Europa” (social e amigável nas suas relações com o Sul). Mas existe também a Grã-Bretanha, que, desde 1945, tomou a opção histórica de recrutar um apoio incondicional aos Estados Unidos. Existem forças, entre as classes dominantes da Europa de Leste, moldadas por uma cultura servil, curvando-se ontem perante Hitler, depois perante Estaline e hoje perante Bush. Existem populistas “pró-americanos” de direita (ao estilo dos nostálgicos de Franco e Mussolini, em Espanha e Itália, respectivamente). Será que o conflito entre estas culturas dividirá a Europa? Resultará num alinhamento com Washington? Ou na vitória das culturas humanistas progressistas e democráticas? 

Quinta Hipótese: O Sul pode e deve ser libertado das ilusões liberais para embarcar em formas renovadas de desenvolvimento auto-centrado. 

Não há dúvidas de que, por enquanto, os governos dos países do Sul parecem continuar a lutar por um “verdadeiro neo-liberalismo”, em que os parceiros do Norte, como os do Sul, “entrariam no jogo”. Os países do Sul só podem aperceber-se de que esta esperança é completamente ilusória. 

Terão, então, de regressar, ao conceito inevitável de que o desenvolvimento é necessariamente auto-centrado. Desenvolver-se a si próprio significa definir, em primeiro lugar, objectivos nacionais que permitam a modernização dos sistemas produtivos e criem as condições internas que a utilizem para promover o progresso social e, então, sujeitar às exigências desta lógica as modalidades que regem as relações entre a nação e os centros capitalistas desenvolvidos. Esta definição de desconexão – que não significa autarcia – situa o conceito a milhas do princípio oposto de “ajustamento estrutural” às exigências da globalização, que está, por isso, necessariamente sujeito às exigências exclusivas de expansão do capital multinacional dominante, assim aprofundando as desigualdades ao nível global. 

A reconstrução de uma forte frente do Sul vincula a participação dos seus povos 

Os regimes políticos estabelecidos em muitos países do Sul não são, para dizer o mínimo, democráticos e são, por vezes, realmente odiosos. Estas estruturas de poder autoritário favorecem grupos compradores, cujos interesses consistem em expandir o capitalismo imperialista global. 

A alternativa – a construção de uma frente compreendendo povos do Sul – pode materializar-se através da democratização. Esta necessária democratização será um processo difícil e longo, mas que certamente não será realizado pelo estabelecimento de regimes fantoches que abrem os seus recursos à pilhagem das companhias multinacionais norte-americanas. Regimes que serão consequentemente ainda mais frágeis, menos credíveis e menos legítimos do que aqueles a que sucederam sob a protecção do invasor americano. Na prática, o objectivo dos Estados Unidos não é o de promover a democracia no mundo, apesar do seu discurso puramente hipócrita sobre esta matéria. 

Sexta Hipótese: Um novo internacionalismo, associando Europeus, Asiáticos, Africanos e Americanos é, por isso, possível. 

Esta hipótese provém e é conclusão da precedente. Isto significa que existem condições capazes de promover relações mais próximas entre, pelos menos, todos os povos do “mundo antigo”. Esta união podia ter expressão concreta ao nível diplomático internacional pelo fortalecimento do eixo Paris–Berlim–Moscovo-Pequim, que podia ser reforçado pelo desenvolvimento de relações amigáveis entre este eixo e a reconstituída frente Afro-Asiática. 

Obviamente, iniciativas nesta direcção reduzem a zero a ambição criminosa e descomedida dos Estados Unidos. Washington seria, assim, forçado a aceitar a coexistência com nações determinadas a defender os seus próprios interesses. 

No presente, este objectivo deve ser absolutamente considerado como uma prioridade. A expansão do projecto Americano sobredetermina a aposta inerente a todas as lutas: não haverá nenhum progresso social e democrático enquanto esse projecto não for esmagado. 

Organizar uma campanha global pelo desmantelamento de todas as bases dos Estados Unidos pelo mundo deve ser um ponto da máxima prioridade na agenda do FSM. 

Sétima Hipótese : Os tópicos ligados à diversidade cultural devem ser discutidos como parte das novas perspectivas internacionais aqui delineadas. 

A diversidade cultural é um facto. Mas é complexa e ambígua. As formas da diversidade herdadas do passado, por muito legítimas que possam ser, não equivalem necessariamente a diversidade na construção do futuro, que deve ser não só admitida como defendida. 

Discutir somente as diversidades herdadas do passado (o Islão político, o Hinduísmo, o Confucionismo, a Negritude, o chauvinismo étnico, etc.) é frequentemente uma fórmula demagógica dos poderes autocráticos e compradores, que lhes permite esquivarem-se ao desafio de universalizar a civilização e, de facto, submeterem-se ao diktat do capital dominante transnacional. Mais ainda, a ênfase exclusiva nestes legados divide o Terceiro Mundo colocando o Islão político e o Hinduísmo na Ásia, os Muçulmanos, Cristãos e seguidores de outras religiões em África, uns contra os outros. Estas divisões sustentadas pelo imperialismo americano, que expressa uma preferência viciosa por autocracias baseadas na etnicidade ou movimentos para-religiosos, podem ser superadas através de novas fundações para uma Frente do Sul politicamente unida. Mas quais são e podem ser os “valores universais” sobre os quais o futuro pode ser fundado? A interpretação restritiva e ocidental-centrada destes valores legitima o desenvolvimento desigual, o produto imanente da passada e presente expansão capitalista globalizada. Deve ser rejeitada. Mas de que forma poderão ser avançados autênticos conceitos universais, enriquecidos com contributos de todas as partes? Em todo o caso, isso não pode ser de todo ignorado. 

A injustiça social e internacional aniquila a credibilidade da democracia

A alternativa ao projecto dos Estados Unidos de organizar e controlar um apartheid à escala global tem de combinar progresso social, democratização e interdependência negociada. 

O que os povos necessitam, hoje como ontem, são projectos sociais extensos (nacionais e/ou regionais) articulados com estruturas globalizadas reguladas e negociadas (ao mesmo tempo que asseguram uma relativa complementaridade entre elas), que deveriam simultaneamente permitir avanços em três direcções: 

  1. Progresso social: isto exige que os progressos económicos sejam necessariamente acompanhados de benefícios sociais para todos. 
  2. A democratização da sociedade em todas as dimensões, compreendida como um processo sem fim e não como um “projecto acabado”, definido de uma vez para sempre. A democratização exige que o seu alcance seja sentido nas esferas social e económica e não seja restringido apenas à esfera política. 
  3. A afirmação de um desenvolvimento económico e social vasto, e a construção de formas de globalização que ofereçam esta possibilidade. 

A “alternativa” que definimos por avanços em três direcções exige que todos os três progridam em paralelo. As experiências da história moderna, fundadas na prioridade absoluta à “Independência Nacional”, quer acompanhada pelo progresso social, quer mesmo sacrificando-o, mas sempre sem democratização, continuamente demonstraram a sua incapacidade de ir além dos limites históricos rapidamente atingidos.Em contraponto, os projectos democráticos contemporâneos, que aceitaram sacrificar o progresso social e a autonomia na interdependência globalizada, não contribuíram para reforçar o potencial emancipador da democracia, mas, ao contrário, erodiram-no – até descredibilizá-lo e, finalmente, deslegitimizá-lo. Se, como pretende o discurso neo-liberal predominante, não há alternativa à sujeição às exigências do mercado, e se esta ideia produziria, por si própria, progresso social (o que não é verdade), então para quê incomodarmo-nos a votar? Os governos eleitos tornam-se decorações supérfluas, uma vez que a “mudança” (uma sucessão de cabeças diferentes que fazem todas a mesma coisa) se substitui às escolhas alternativas pelas quais se define a democracia. Têm sido coligidas muitas provas empíricas, particularmente na América Latina, que mostram que uma crescente maioria de decepcionados com os resultados da democracia associada à economia liberal se estão a afastar da defesa da democracia. A reafirmação da política e a cultura de cidadania definem a própria possibilidade de uma alternativa necessária à decadência democrática. 

A ideologia americana embala cuidadosamente a sua mercadoria, o projecto imperialista, na inefável linguagem da “missão histórica dos Estados Unidos”. Uma tradição transmitida, desde o início, pelos “pais fundadores”, certa da sua inspiração divina. Os liberais americanos – no sentido político do termo, que se consideram como a “esquerda” na sua sociedade – compartilham esta ideologia. Consequentemente, apresentam a hegemonia americana como necessariamente “benigna”, a fonte do progresso nos escrúpulos morais e na prática democrática, que será necessariamente uma vantagem para os que, aos seus olhos, não são vítimas, mas sim beneficiários, deste projecto. Hegemonia americana, paz universal, democracia e progresso material são emparceirados como conceitos inseparáveis. A realidade, claro, é outra. 

Em contraste com este projecto de legalização do apartheid à escala global, o que é necessário é uma “Lei Internacional (global) dos povos” (não uma lei dos negócios, como se os interesses negociais constituíssem os únicos direitos legítimos). Nesse quadro, poderemos esperar desenvolver uma nova, mais elevada lei, que garanta que toda a gente no planeta é tratada com dignidade, que é o pré-requisito para a sua participação activa e criativa na construção do futuro? Um corpo jurídico, completo e multidimensional, que lide com os direitos dos seres humanos (tanto homens como mulheres, é claro, em plena igualdade), com direitos políticos, direitos sociais (à vida, ao trabalho e à segurança), os direitos das comunidades e dos povos e, finalmente, com as relações entre os estados. Esta é, certamente, uma agenda que levará décadas de reflexão, debate, acções e decisões. 

O princípio do respeito pela soberania das nações deve permanecer a pedra angular da lei internacional. E se os criadores da Carta das Nações Unidas decidiram proclamar este princípio, foi precisamente por que havia sido negado pelas potências fascistas. A adopção solene do princípio da soberania nacional em 1945 foi logicamente acompanhada da proibição do recurso à guerra. Os estados são autorizados a defender-se de quem quer que viole a sua soberania através de uma agressão, mas são antecipadamente condenados se forem os agressores. Não obstante, os países da NATO têm sido os agressores na antiga Jugoslávia, tal como os Estados Unidos e os seus associados no Iraque. 

Não há dúvida de que a interpretação do princípio da soberania dado na Carta das Nações Unidas era absoluta. Hoje em dia, a opinião pública democrática já não aceita que este princípio autorize os governos a fazerem o que quiserem com os seres humanos colocados sob a sua jurisdição, uma mudança de atitude que representa um progresso inequívoco na consciência moral da humanidade. Mas como podemos reconciliar estes dois princípios que podem conflituar? Certamente não pela eliminação de um dos termos – quer a soberania quer os direitos humanos. Até porque o caminho escolhido pelos Estados Unidos, seguido pelos seus aliados europeus subalternos, não só é certamente errado, como esconde os verdadeiros objectivos da operação, que nada têm a ver com o respeito pelos direitos humanos, apesar da pressão dos media que nos tenta convencer disso. 

Para identificar as condições desta alternativa humanista é essencial começar pela diversidade das aspirações que motivam as mobilizações e lutas sociais e, talvez, classificá-las subsequentemente em cinco tipos:

  1. a aspiração pela democracia política, o estado de direito e a liberdade intelectual;
  2. a aspiração pela justiça social;
  3. a aspiração pelo respeito pelos vários grupos e comunidades;
  4. a aspiração por uma gestão ecológica melhorada;
  5. a aspiração por uma posição mais favorável no sistema global. 

É facilmente reconhecível que os protagonistas dos movimentos que lutam por estas aspirações raramente são idênticos. Por exemplo, imagina-se que a preocupação de obter uma posição mais alta no sistema global, que é definida em termos de riqueza, poder e autonomia de movimento, constituirá uma preocupação maior entre as classes dominantes e autoridades, mesmo que este objectivo possa ganhar a simpatia da população no seu conjunto. A aspiração pelo respeito – no sentido integral do termo, por outras palavras, o respeito por um tratamento verdadeiramente igual – pode mobilizar as mulheres enquanto tal, ou um grupo cultural, linguístico ou religioso sujeito a discriminações. Os movimentos animados por estas aspirações podem ser trans-classistas. Por outro lado, a aspiração por maior justiça social, definida à vontade (de acordo com os desejos dos movimentos motivados por esta aspiração) – por melhorias no bem-estar material, uma legislação mais pertinente e eficaz ou um sistema de relações sociais e um sistema de produção radicalmente diferente – quase inevitavelmente encontrará expressão nas lutas de classes. Pode tomar a forma de uma reivindicação do campesinato, ou de um dos seus grupos, por uma reforma agrária, uma redistribuição da propriedade, uma legislação mais favorável aos camponeses arrendatários, preços mais favoráveis, etc.. Pode ser expressa no contexto dos direitos sindicais, legislação laboral, ou mesmo na exigência de uma política estatal que reforce a sua intervenção efectiva a favor dos trabalhadores até à nacionalização, gestão conjunta ou, mais radicalmente, poder dos trabalhadores. Mas pode surgir, também, na forma de exigências de grupos de profissionais ou de empresários reivindicando uma redução nos impostos. Pode ser canalizada através de exigências que dizem respeito a todos os cidadãos, como testemunham os movimentos que lutam pelo direito à educação, saúde ou habitação e, mutatis mutandis, o direito a uma política ambiental apropriada. A aspiração democrática pode ser limitada e precisa, particularmente quando inspira um movimento em luta contra uma autoridade antidemocrática. Ao mesmo tempo, pode ser integradora e, por isso, concebida como a alavanca que ajuda a promover todas as reivindicações sociais. 

Um mapa com a distribuição actual destes movimentos mostraria certamente enormes desigualdades na sua presença no terreno. Mas sabemos que este mapa não é estático porque, perante um dado problema, há quase sempre um movimento potencial para encontrar uma solução apropriada. Contudo, seria um laivo de optimismo ingénuo imaginar que a resultante do mapa de forças operando nestes campos muito diversos promoveria a coerência de um movimento unido, mobilizando as sociedades para lutar por mais justiça e democracia. O caos tanto surge da natureza como da ordem. Da mesma maneira, seria ingénuo ignorar a reacção das autoridades dominantes a estes movimentos. A distribuição geográfica destes poderes e as estratégias que desenvolvem para enfrentar os desafios que se lhes apresentam tanto ao nível local como internacional depende de outras considerações, diversas das subjacentes às aspirações em questão. 

Por outras palavras, a possibilidade de uma deriva por parte dos movimentos sociais, a sua exploração e manipulação, também constituem algumas das realidades que podem, eventualmente, torná-los impotentes ou forçá-los a adoptar uma perspectiva diferente da sua. 

Há uma estratégia política global para a gestão mundial. O seu objectivo é garantir a máxima desintegração das potenciais forças anti-sistémicas, através do contributo para o declínio do sistema estatal. Tantas Eslovénias, Chechénias, Kosovos e Kuwaits quanto possível! A utilização das reivindicações de reconhecimento e mesmo a sua manipulação são úteis nesta perspectiva. A questão da comunidade, etnia, religião ou outras formas de identidade, constitui, por isso, uma das maiores preocupações dos nossos tempos. 

O princípio básico da democracia – que implica um verdadeiro respeito pela diversidade nacional, étnica, religiosa, cultural e ideológica – não pode ser defraudado. A diversidade não pode ser gerida senão pela prática sincera da democracia. De outro modo, tornar-se-á, inevitavelmente, um instrumento utilizado para os objectivos de cada opositor. 

No Terceiro Mundo de Bandung, os movimentos de libertação nacional conseguiram frequentemente unir os vários grupos étnicos e comunidades religiosas contra o inimigo imperialista. Embora as classes dominantes na primeira geração de estados africanos fossem frequentemente realmente trans-étnicas, poucos sistemas de poder conseguiram gerir democraticamente essa diversidade e consolidar as realizações, se houve algumas. Neste aspecto, a sua fraca propensão para a democracia produziu resultados tão deploráveis como na maneira como lidaram com outros problemas enfrentados pelas suas sociedades. Na crise subsequente, as classes dominantes, em apuros desesperados, e desamparadas, tiveram, frequentemente, um papel decisivo ao recorrer ao afastamento de comunidades, como um meio de prolongar o seu “controlo” sobre as massas. No entanto, mesmo em muitas autênticas democracias burguesas, a diversidade de comunidades está frequentemente longe de ser gerida correctamente. 

O sucesso do culturalismo dá a medida das insuficiências inerentes à gestão democrática da diversidade, sendo o culturalismo entendido no sentido de que as diferenças em questão podem ser “primordiais” e devem “ter prioridade” (em relação às diferenças de classe, por exemplo) e que, por vezes, são supostas “trans-históricas”; por outras palavras, baseadas em invariantes históricos (este é frequentemente o caso dos culturalismos religiosos, que facilmente conduzem ao obscurantismo e fanatismo). 

Um critério essencial será então proposto para um entendimento aprofundado da amálgama de exigências de reconhecimento a nível social e a outros níveis. Os aspectos considerados progressistas são os que pretendem combater a exploração social e pressionar por mais democracia, em todas as suas dimensões. Por outro lado, todas as reivindicações apresentadas “sem um programa social” (porque se diz não ser importante!), reivindicações de conteúdo “não opositoras à globalização” (porque isso pode também ser insignificante!), e que são apresentadas, a fortiori, com estando fora do conceito de democracia (acusada de ser “ocidental”) são claramente reaccionárias e servem, absolutamente, os interesses do capital dominante. De qualquer maneira, este último está consciente da situação existente e apoia essas reivindicações, mesmo quando os media tiram partido do seu conteúdo bárbaro para denunciar povos que são vítimas do sistema usando ou mesmo manipulando esses movimentos. 

A alternativa humanista ao apartheid à escala global não pode ser sustentada por nostalgia passadista; nem pode ser baseada na afirmação das diversidades herdadas do passado. Esta alternativa não será real a menos que surja numa estrutura resolutamente orientada para o futuro. Isto implica ir para além da globalização capitalista truncada e polarizadora, construir uma nova globalização pós-capitalista baseada na igualdade real entre os povos, comunidades, Estados e indivíduos. 

As diversidades herdadas criam problemas porque existem. Mas concentrando-se nelas, perde-se de vista outras diversidades que são, aliás, mais interessantes – essas que a invenção futura necessariamente gera no seu movimento. O conceito associado a estas diversidades procede do próprio conceito de democracia emancipadora e de modernidade perpetuamente inacabada que o acompanha. As utopias criativas em torno das quais se podem cristalizar as lutas dos povos por igualdade e por justiça encontram sempre a sua legitimação nos múltiplos sistemas de valores. Os sistemas de análise social – o seu complemento necessário – são inspirados por teorias sociais, elas próprias diversas. As estratégias propostas visando rumar efectivamente na direcção apropriada não podem ser monopólio de nenhuma organização. Estas diversidades na invenção futura não são apenas inevitáveis; são também bem-vindas. 

A alternativa ao apartheid global é, por isso, um mundo pluricentrado, em que relações económicas e políticas menos desiguais entre regiões e países, que herdaram os efeitos destrutivos da polarização criada pela expansão do capitalismo, sejam sistematicamente organizadas através de um conjunto complexo de negociações, políticas e regulações visando: 

  1. – Renegociar “quotas de mercado” e as regras para o seu acesso. Este projecto, claro, desafia as regras da OMC que, atrás de todo o discurso da “concorrência justa”, está exclusivamente preocupada em defender os privilégios dos oligopólios que estão activos à escala mundial. 
  2. – Renegociar os sistemas dos mercados de capitais, com vista a pôr fim à dominação da especulação financeira e orientar o investimento para actividades produtivas no Norte e Sul. 
  3. – Renegociar os sistemas monetários, com vista a criar acordos regionais e sistemas que assegurem a estabilidade relativa das taxas de câmbio, acompanhados pela organização da sua interdependência. Este projecto desafia o FMI, o padrão-dolar e o princípio de taxas de câmbios livres e flutuantes. 
  4. – Começar a estabelecer um sistema fiscal mundial – por exemplo, taxando o rendimento derivado da exploração de recursos naturais e redistribuindo estes fundos para fins determinados, pelo mundo, de acordo com critérios apropriados. 
  5. – Desmilitarizar o planeta, começando pela redução das armas de destruição maciça nos arsenais dos países mais poderosos; e desmantelar as bases militares dos EUA disseminadas por todo o planeta. 

Enfrentar o desafio implica reconstruir a solidariedade dos povos do Sul

Linhas orientadoras para uma aliança de longo alcance como base para uma eventual reconstrução da solidariedade entre povos e Estados do Sul. 

As ideias propostas sugerem as linhas orientadoras para o renascimento de uma “Frente do Sul”. Estas posições dizem respeito quer à esfera política, quer à gestão económica do processo de globalização. 

A. A tomar forma, em termos de gestão económica do sistema mundial, estão linhas orientadoras para uma alternativa que o Sul possa defender colectivamente, uma vez que os países em causa compartilham interesses comuns nesta área. 

(i) A ideia de que as transferências internacionais de capital devem ser controladas assume, de novo, uma dimensão fulcral. 

De facto, há apenas um objectivo na abertura de contas de capital, que é imposta pelo FMI como um novo dogma do “liberalismo”: facilitar a transferência substancial de capital para os Estados Unidos para compensar os crescentes défices a que a América está sujeita – que são ao mesmo tempo produto de deficiências económicas na economia dos Estados Unidos e do desenvolvimento da sua estratégia para o controlo militar do planeta. 

Os países do Sul não têm interesse em facilitar, dessa forma, a sucção do seu capital e, possivelmente, as devastações causadas pelos raides especulativos. 

Em consequência, a sujeição a todas as incertezas inerentes ao sistema de taxas de câmbio flexíveis, que resulta logicamente dos requisitos para a abertura de contas de capital, deve ser posta em causa. Em vez disso, sistemas de organizações regionais que garantam a estabilidade relativa dos câmbios devem ser estabelecidos e isso poderia ser examinado através de estudos e negociações sistemáticas no âmbito do Movimento dos Não-Alinhados e do G-77. 

(ii) A ideia de regular o investimento estrangeiro ressurgiu. 

Naturalmente, os países do Terceiro Mundo não ponderam fechar as suas portas a todas as formas de investimento estrangeiro, como alguns fizeram no passado. Ao contrário, investimentos directos são solicitados. Mas os procedimentos para a recepção destes investimentos são, novamente, sujeitos a reflexões críticas, às quais permaneceram sensíveis alguns sectores governamentais do Terceiro Mundo. 

Em relação a esta regulação, o conceito de direitos de propriedade intelectual e industrial, que a Organização Mundial do Comércio (OMC) quer impor, é doravante contestada. É entendido que, longe de promover uma concorrência “justa” em mercados abertos, esse conceito pretendia antes fortalecer os monopólios das empresas multinacionais. 

(iii) Muitos dos países do Sul compreenderam novamente que não podem passar sem uma política nacional de desenvolvimento agrícola, que dê conta da necessidade de proteger os camponeses da consequência devastadora da sua integração acelerada, sob a influência da “nova concorrência” que a Organização Mundial do Comércio quer promover neste domínio, e para preservar a segurança alimentar ao nível nacional. 

De facto, a abertura dos mercados de produtos agrícolas, que permite aos estados Unidos, Europa e uns poucos países do Sul (os do cone Sul da América) exportar os seus excedentes para o Terceiro Mundo, ameaça, de facto, dessa maneira, os objectivos da segurança alimentar nacional, sem fornecer compensações, uma vez que as produções dos camponeses do Terceiro Mundo deparam-se com dificuldades insuperáveis nos mercados do Norte. E contudo, esta estratégia liberal, desintegrando e acentuando a migração destes camponeses das áreas rurais para os bairros de lata urbanos, explica o reaparecimento de lutas campesinas no Sul, que constituem agora uma fonte de ansiedade para as autoridades públicas. 

A questão agrícola é frequentemente discutida em detalhe na arena da OMC, apenas do ângulo dos subsídios que a Europa e os Estados Unidos concedem não só à produção dos seus agricultores, mas também às exportações agrícolas dos seus agricultores. Este enfoque apenas na questão do comércio mundial de produtos agrícolas eclipsa, imediatamente, as grandes preocupações mencionadas acima. Cria, também, estranhas ambiguidades, porque incita os países do Sul a defender posições ainda mais liberais dos que as actualmente adoptadas pelos governos do Norte, no meio dos aplausos do banco Mundial (mas, desde quando é que o Banco Mundial defende os interesses dos países do Sul contra os dos seus parceiros do Norte?). Nada impossibilita que se separem os subsídios concedidos aos agricultores pelos seus governos (afinal, se defendemos o princípio da redistribuição do rendimento no Sul, os países do Norte também têm esse direito!) dos que se destinam a sustentar o dumping de exportações agrícolas do Norte. 

O falhanço da Conferência de Cancun da OMC (Setembro de 2003) deve ser entendido como uma vitória dos povos envolvidos. O mero facto da vasta maioria dos países do Sul ter rejeitado o diktat cozinhado pela OMC é, por si só, uma vitória. Mas permanece limitada e, até, ambígua, na medida em que o que foi rejeitado foi não o “princípio do liberalismo” ( i.e. a abertura franca e recíproca de todos os mercados a todos), mas apenas o plano escandaloso e tendencioso para a sua implementação. O Sul deve perceber que tem de ir mais longe, uma vez que mesmo uma abertura generosa e recíproca de todos os mercados a produtos agrícolas e alimentares (com ou sem subsídios) seria catastrófica para as suas sociedades camponesas. 

(iv) A dívida já não é apenas considerada economicamente insustentável. A sua legitimidade é agora posta em causa. Uma reivindicação actualmente a tomar forma destina-se a conseguir a renúncia unilateral de dívidas odiosas e ilegítimas, como para abrir caminho para uma lei internacional da dívida – merecedora deste nome – que ainda não existe. 

Uma auditoria generalizada à dívida, possibilitaria, de facto, apresentar uma proporção significativa de dívidas ilegítimas, odiosas e, por vezes, até criminosas. E, ainda assim, só os juros pagos por estas dívidas alcançaram tais níveis, que a exigência, legalmente justificada, do seu reembolso pode, realmente, ajudar a cancelar a dívida corrente e a revelar toda a transacção como uma verdadeira forma primitiva de pilhagem. Para esse efeito, a ideia de que as dívidas externas devem ser reguladas por uma legislação normal e civilizada, tal como as dívidas domésticas, deve ser apoiada através de um campanha pela promoção da legislação internacional e pelo reforço da sua legitimidade. Obviamente, é precisamente porque a lei é omissa neste sector que a questão é resolvida apenas pelo equilíbrio brutal de poder. Estas relações permitem, por isso, legitimar dívidas internacionais, que trariam devedor e credor a tribunal por “associação criminosa” se fossem dívidas domésticas (e o credor e o devedor proviessem da mesma nação e fossem regidos pelo respectivo sistema legal). 

B. Na esfera política: a denúncia do novo princípio da política dos Estados Unidos (“guerra preventiva”) e a exigência pela evacuação de todas as bases militares estrangeiras na Ásia, África e América latina. 

A escolha de Washington das suas zonas de intervenções militares ininterruptas desde 1990 é o Médio Oriente Árabe – Iraque e Palestina (para esta última, através do apoio incondicional de Israel) –, os Estados Balcânicos (Jugoslávia, novas instalações dos EUA na Hungria, Roménia e Bulgária), a Ásia Central e a região do Cáucaso (Afeganistão, a Ásia Central ex-Soviética e a região Caucasiana), Iraque. 

Os objectivos seguidos por Washington compreendem vários aspectos:

  1. controlar a região produtora de petróleo mais importante do mundo e exercer pressão sobre o processo, com vista a relegar a Europa e o Japão para o estatuto de aliados subordinados;
  2. estabelecer bases militares americanas permanentes no coração do Velho Mundo (a Ásia Central é equidistante de Paris, Joanesburgo, Moscovo, Pequim e Singapura) e assim preparar outras futuras “guerras preventivas”, primordialmente contra os países poderosos, capazes de se impor como parceiros com quem “se tem de negociar” (a China em primeiro lugar, mas também a Rússia e a Índia). Este objectivo pode ser conseguido através do estabelecimento de regimes fantoches, impostos pelas forças armadas dos Estados Unidos, nos países da região em questão. De Pequim a Deli e Moscovo, está a tornar-se cada vez mais óbvio que as guerras “ made in USA” constituem, em última análise, mais uma ameaça à China, Rússia e Índia, do que às suas vítimas imediatas, como o Iraque. 

Regressando a Bandung, o programa do “não às bases militares americanas na Ásia e em África” é agora uma questão fulcral. Que comecemos a ouvir, de todas as partes do mundo, um grito crescente: US – Go Home! 


Notas do tradutor:

(1) Pode ser uma gralha. O montante de lucro que se pretende referir será certamente maior. (retornar ao texto)

(2) A frase parece absurda. Há um problema de redacção.  (retornar ao texto)

Inclusão: 15/06/2021