Para além da globalização liberal: Um mundo melhor ou pior?

Samir Amin

18 de janeiro de 2006


Primeira Edição: Intervenção apresentada em Bamako, no Fórum Social Mundial Descentralizado, a 18/Janeiro/2006.

Fonte: http://resistir.info/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


1- O futuro visto pelas potências dominantes 

1- A massa de informações de todo tipo referente a todos os países do mundo colectada pela CIA é inigualável. Aquela instituição, contudo, não faz qualquer análise que se afaste da total banalidade — sem dúvida porque os seus dirigentes estão fechados nos seus preconceitos, incapazes de sair do seu mundo anglo-saxónico, e por isso mesmo sem espírito crítico e imaginação. 

O relatório da CIA sobre o mundo em 2020 [http://www.cia.gov/nic/NIC_globaltrend2020.html] não imagina que os princípios da globalização liberal em vigor, qualificada de "projecto Davos", sejam postos em questão. Pois esses princípios são, para Washington e seus parceiros, indubitavelmente perfeitos. Portanto sem alternativa crível; e os que não pensam assim só podem ser seres irracionais, ou demagogos sem princípios. O liberalismo globalizado é considerado portador de um bom crescimento económico onde quer que seja seriamente aplicado. A globalização liberal é por definição feliz. 

Claro que no seu sentido real este projecto que constitui "o fim da história" (para os seus defensores, claro) sofre de insuficiências geradoras de fracassos — passageiros —, engendra reacções absurdas (porque põe em causa os bons princípios do liberalismo) na origem de situações caóticas. Nesta visão "os povos", os "políticos" e os "ideólogos" são os únicos responsáveis pelos maus resultados e pelo caos, a lógica da expansão do liberalismo globalizado (ou seja, a lógica da acumulação do capital) não sendo portadora senão de benfeitoriad para todos (ou quase todos). 

Estas maneiras de pensar e estas visões do mundo não não pertencem apenas às equipes de poder de Washington. Elas reproduzem um discurso dominante dos poderes na sua grande maioria, e testemunham os limites estreitos imposto pelos preconceitos nos quais são fundadas. Uma análise da realidade que aspirasse ser tão verdadeira quanto possível deve partir da colocação em causa destes preconceitos, e submeter as teses que o inspiram a uma crítica rigorosa. 

Os "afastamentos" entre o mundo em 2020 visto pelo establishment dos Estados Unidos e o mundo de hoje têm apenas importância relativa. Estes "afastamentos" não se referem senão ao lugar da Ásia (China e Índia em especial) na economia mundial devido à busca de um crescimento forte para estes dois países de maior porte. Este crescimento inscrever-se-ia na globalização liberal e seria perfeitamente compatível com a continuação da liderança dos Estados Unidos. Em nenhum momento se coloca a questão de saber se este modelo poderá ser seguido indefinidamente sem que as contradições internas nos países referidos imponham bifurcações em direcções novas e imprevistas. 

De resto, "nada a assinalar" ou quase. 

A Europa permaneceria encerrada nas suas "impotências" (a reformar-se radicalmente no sentido liberal, a adoptar um modelo de gestão dos seus imigrados inspirado pela prática dos Estados Unidos...) e assim a sua economia seria atacada de atonia de opinião. Mas em momento algum se pensou que esta pudesse tornar-se insuportável a ponto de pôr em causa o liberalismo a níveis nacionais, pan-europeu ou nas relações com o resto do mundo. Nem se imagina que a Europa possa sair do atlantismo e da protecção dos Estados Unidos face aos terroristas que só Washington seria capaz de jugular através de guerras preventivas. 

A Rússia, sempre refractária à democracia, seria incapaz de se reconstituir em potência modernizada e dinâmica, e tornar-se-ia uma potência exclusivamente petrolífera (como a Arábia Saudita). Incapacitada pela sua demografia em declínio, afundada nas relações tensas com os novos estados da Ásia Central e do Cáucaso, definitivamente separada da Ucrânia, preferiria navegar na esteira de Washington do que tentar uma aproximação com a Europa, a qual está desinteressada. 

A América Latina ficaria com a vêem hoje. Crescimento no liberalismo no cone Sul e no México, avanços na direcção da integração imaginada pelo projecto de zona de comércio livre das Américas, reconhecimento neste quadro de liderança de Washington. O "vestígio do passado" (Cuba) desaparece, os sobressaltos populistas (tipo Chavez) não têm futuro, o ascenção dos indigenismos absorvível. 

A África negra nunca entraria na era da indústria, incapaz de seguir os exemplos da Ásia e da América Latina. Incapacitada pela extensão da pandemia da SIDA e pela tradição de "maus governos" só registaria crescimento para a exploração das suas matérias-primas (petróleo) e — talvez — alguns produtos agrícolas. 

Enfim os mundos árabe e muçulmano — do Marrocos à Indonésia — ficariam paralisados pela entrega maciça dos seus povos ao fantasma da reconstrução de um "Califado" mítico. O insucesso permanente deste projecto produziria então a instabilidade política — tornando impossível o progresso democrático — e a mediocridade das realizações económicas, sem no entanto a deriva terrorista permanente que as acompanha seja de natureza a ameaçar realmente o resto do mundo. O insucesso do terrorismo tem sempre um preço: a ocupação permanente do Iraque (de resto prevista por Washington antes mesmo da sua agressão) — e o adiar para as calendas da democracia nesse país; a não regularização do problema palestiniano! Como preço igualmente as restrições aos direitos democráticos nos países do Ocidente "civilizado". 

As evoluções "prováveis" descritas acima levam à conclusão que a liderança dos Estados Unidos não será ameaçada. Nem mesmo pela Ásia triunfante, pela Europa afundada na estagnação e deste facto presa pelo atlantismo (NATO) ao carro dos Estados Unidos. A ONU continuaria o seu declínio, substituída pelo governo político do sistema mundial pelos Estados Unidos com o apoio eventual (mas não necessário) da NATO. Guerra preventiva, dever de intervenção (dita humanitária), propagação (de facto manipulação) dos direitos do homem constituiria o essencial do discurso de legitimação do novo imperialismo, em 2020 como hoje. 

2- Esta imagem do futuro do mundo coloca problemas. 

Este futuro é apresentado no quadro de pretensos "cenários", que na realidade se resumem à alternativa "o mundo segundo Davos" (ou seja o aprofundamento da globalização liberal, asseguram a liderança mais ou menos exclusiva dos Estados Unidos) ou o "caos". É apenas um falso contraste, pois na realidade é a perseguição do "projecto Davos" que cria o caos (as reacções "populistas" aos insucessos sociais, o terrorismo, etc.). Trata-se apenas de um único cenário: a procura do projecto liberal garantido pela liderança dos Estados Unidos e a gestão da caos pela militarização da globalização. 

establishment dos Estados Unidos (mas igualmente a maioria das forças políticas no poder no mundo actual) recusa enfrentar o contraste verdadeiro que se estabelece entre precisamente este projecto e os que corresponderiam a mudanças sensíveis nas relações de força sociais e políticas a favor das classes populares e das nações dominadas, que são de resto a condição dum recuo do "caos". De resto eles recusam igualmente examinar as chances, o alcance e as consequências duma "saída à direita" do liberalismo mundial em crise, como a que os Neo-cons dos Estados Unidos mantêm. 

Nessas condições temos sem dúvida o direito de colocar as seguintes perguntas: porque os "especialistas" do governo dos Estados Unidos nos propõem uma visão do futuro tão pobre? A quem se dirigem os seus documentos? Que fins procuram? São sinceros ou encobrem o jogo? 

Pela minha parte creio que o objectivo real do documento não é fazer o leitor reflectir mas pelo contrário convencê-lo de "que não há alternativa ao liberalismo globalizado e à liderança dos Estados Unidos". Os redactores são de resto provavelmente mais democratas que republicanos e embora tanto uns como os outros persigam os mesmos objectivos, os primeiros evitam cuidadosamente o estilo arrogante da equipa no poder em Washington. Estão convencidos que o capitalismo liberal globalizado pode ser "bom" para todos (ou quase) seja ele ao preço de alguns regulamentos (como a "luta contra a pobreza" o exigiria)? Estarão eles convencidos de que os Estados Unidos estão investidos de uma missão histórica e são portadores de uma mensagem de democracia para todos? Estarão convencidos de que a hegemonia de Washington é por natureza "gentil"? Ou são cínicos conscientes de que o sistema actual garante ao capital das grandes multinacionais um rendimento máximo, e que está aí a sua exclusiva preocupação, desprezando os direitos sociais das classes populares? Que não querem saber da "democracia" para os povos do Planeta? Que não hesitam a dar prioridade à pilhagem dos recursos naturais dos países submetidos ao seu protectorado para benefício único dos consumidores dos Estados Unidos? 

Pela sua formação e pela sua cultura, estes indivíduos estão sem dúvida amplamente convencidos de que não há alternativa ao capitalismo, porque será "o melhor sistema possível" em termos de eficácia e de equidade, que seria o melhor a corresponder à "natureza humana", seria portador da democracia, etc. Eles e elas acreditam frequentemente na missão histórica dos Estados Unidos. Na sua maneira de "analisar" a realidade separam o objectivo da boa "económica" (na realidade reduzida à expansão de mercados) e a da boa "política" (reduzida por sua vez à democracia representativa e à boa governação). O conceito de "contradição" é estranho à sua cultura e a ideia de que as contradições do capitalismo realmente existente devem, pela própria lógica do seu desenvolvimento, agravar-se é, para eles, rigorosamente incompreensível. Os "problemas e as dificuldades" não sendo o produto da lógica do sistema, são sempre o das circunstâncias do lugar e do momento. É nesse sentido que na origem destes problemas haveria sempre uma responsabilidade dos "povos", e que as soluções poderiam ser-lhes trazidas sem sair das lógicas de princípio do sistema. Não se negará que possam existir discriminações raciais, ou relativamente às mulheres, que as exigências de uma gestão saudável do ambiente possam ser esquecidas; mas trata-se sempre de "problemas particulares", separados uns dos outros. 

Esta apologia a favor da "inocência" dos responsáveis em questão não deve fazer ignorar que a sua cultura serve perfeitamente os interesses particulares promovidos pelos políticos que ela legitima. Neste sentido esta cultura pode ser lida validamente como expressão cínica dos interesses do capital dominante. E certos promotores dos políticos em questão podem perfeitamente ter suficiente lucidez para saber que são os interesses que eles defendem. 

Para lá destes assuntos de moral em aparência projectam-se as carências que eu atribuiria ao encerramento dos responsáveis do establishment dos Estados Unidos na sua cultura anglo-saxónica. O texto peca por ignorância que difunde de todas as civilizações do planeta. O racismo banal em relação aos "africanos" (leia-se os "negros") e dos "hispânicos" dita largamente as conclusões respeitantes aos povos mencionados. Uma boa dose de desprezo é igualmente atribuída no que respeita à "velha Europa". 

A conclusão a que chega este establishment no fim das suas "reflexões" — a saber que o mundo de 2020 não será diferente do nosso, excepto que o lugar comercial da Índia e da China será mais marcado (em detrimento da Europa, não dos Estados Unidos) — poderia parecer "plausível". Com efeito quinze anos não constituem um período suficientemente longo para imaginar as transformações qualitativas das sociedades, sobretudo quando — como é hoje o caso — nenhuma alternativa coerente e crível pelo menos na aparência (como era o caso com o modelo do socialismo no século XX) se apresenta no horizonte visível. 

A minha análise do capitalismo realmente existente leva-me a uma conclusão inteiramente diferente. Este sistema — na sua forma liberal globalizada — não é viável. O caos que engendra não é "dominável" através dos meios imaginados pelas classes dirigentes do sistema. Tais meios só podem agravar este caos, rapidamente e em proporções dramáticas. O revés político e militar do Iraque, a rejeição crescente do "projecto europeu" pelos povos envolvidos, as explosões de violência (como as que agitaram em Novembro 2005 os subúrbios das cidades francesas) e muitos outros fenómenos já quotidianos o testemunham. Isto posto, não concluo que uma saída aceitável "se imporá necessariamente". O mundo de amanhã — mesmo no horizonte próximo de 2020 — será diferente do de hoje, mas não necessariamente melhor. Poderia ser igualmente pior. 

Os cenários interessantes e úteis para o avanço da reflexão são portanto os que imaginam o pior e o melhor e identificam as condições da emergência. 

O método e os preconceitos sobre os quais se funda a visão das classes dirigentes (e em particular o establishment dos Estados Unidos) não o permitem. Não que os julgamentos severos a respeito dos Estados (e das sociedades) tanto europeias como do terceiro mundo não sejam fundamentados. São-no, e aqueles que me proponho examinar a seguir não o são menos. Mas a severidade em si não chega. È preciso agarrar a natureza dos verdadeiros desafios com os quais as sociedades se defrontam, precisamente o que os preconceitos que caracterizam a ideologia dominante proíbem fazer. 

2- É viável o projecto europeu? 

1- Os discursos eufóricos que dizem respeito ao "projecto europeu" são o pão de cada dia da grande maioria dos políticos do continente, tanto da esquerda como da direita. Só, segundo parece, os extremistas do "populismo" (partilhado pela extrema direita e pela extrema esquerda) rejeitariam o projecto que não teria alternativa para o futuro dos povos respeitantes. E no entanto os indicadores de uma decepção crescente desses povos não faltam. 

Pois de facto o projecto europeu é muito curioso: procura, principalmente depois do tratado de Mäestricht (1992) reduzir as margens das políticas económicas nacionais sem fazer surgir em contrapartida uma governação de substituição ao nível da União! Ou como quem diz a União Europeia funciona na realidade como a região do mundo mais perfeitamente "globalizada" no sentido mais brutal do termo (aniquilação da margem de autonomia dos Estados). O que não é de certeza o caso dos Estados Unidos, nem mesmo o de outras regiões do mundo em que o Estado, mesmo frágil e vulnerável, se mantêm em princípio senhor das suas decisões, limitado "apenas" pelas regras da OMC (estas tendo pelo menos em perspectiva igualmente o aniquilamento progressivo dos direitos e prerrogativas dos Estados). A Europa está assim, à frente do resto do mundo, no grande salto para o salto atrás. 

Esta mutilação que os Estados europeus se infligiram diz respeito a todos os domínios da vida económica: já não existe na Europa nem política monetária, nem política de mudanças, nem política orçamental, nem política de emprego, nem política industrial. 

O Banco Central Europeu (BCE) proíbe-se de efectuar uma política monetária qualquer, à qual ele substituiu o objectivo exclusivo da garantia da "estabilidade dos preços", pela proibição absoluta feita aos Estados de financiarem o seu défice através do recurso aos "seus" bancos centrais. Este, operando nessas condições, já não tem interlocutor público (nem os Estados, nem a União) junto dos quais seria obrigado a justificar a sua política. Esta opção deflacionista por princípio constitui um obstáculo suplementar permanente à dinamização da economia. 

O BCE também não pode executar nenhuma política de activa de mudança, cujos objectivos (euro "forte" ou euro "fraco") deveriam ser definidos por um interlocutor público que já não existe. O governo dos Estados Unidos, ao contrário, conservou todas as suas prerrogativas no domínio da gestão monetária. É assim que Washington decide se o dólar será forte ou fraco, enquanto o euro só pode registar a decisão e ajustar-se a ela. Acrescentemos que o padrão dólar é de facto um padrão petro-dólar: os preços do petróleo estão fixados em dólar e os Estados Unidos actuam, pela intervenção militar se necessário (como foi o caso do Iraque), para impedir os países produtores de petróleo de oferecer o seu petróleo contra o pagamento em euro. De resto os Estados europeus tem, até agora, recusado entrar nesse jogo e "afligir" o seu amigo d'além Atlântico. Assim mutilado, o euro não pode tornar-se uma moeda internacional como o dólar. 

O "Pacto de estabilidade" anunciou o fim de qualquer possibilidade de pôr em acção políticas orçamentais. Esta opção foi justificada pelo recurso a uma teoria duvidosa da equivalência da cobertura de um défice das finanças públicas por imposto ou empréstimo. Justificação de resto supérflua visto que o Pacto limitou a 3% o défice máximo autorizado e a 60% do PIB o tecto de endividamento! Nem os Estados Unidos nem qualquer outro país do mundo (excepto as semi-colónias submissas à administração do FMI!) não se infligiram uma tal mutilação, qualificada de simplesmente "estúpida", com razão, por Prodi. 

A abolição por princípio de toda a forma de política industrial nacional (sob o pretexto de que a "competição" transparente — ou seja, sem protecção ou subvenção — implica a alocação mais eficaz dos investimentos) e de toda a política de emprego, abandonada apenas às leis do mercado (supondo-se que a flexibilidade resolva os problemas!), reforçada pelo desmantelamento dos serviços públicos e pelas privatizações, não foi compensada — ainda que parcialmente — por políticas comunitárias. Na ordem do dia não existe nem a "Europa industrial" nem a "Europa social". Deste ponto de vista aproxima-se sem dúvida do modelo que sempre foi o dos Estados Unidos, que se empenharam muito antes na ruptura com todas as tradições que no século XIX e depois no XX estiveram na origem do seu êxito. Ainda que nos Estados Unidos exista uma estratégia do complexo militar-industrial fortemente apoiada pelo Estado (apesar do discurso "liberal") sem igual na Europa. É divertido notar que os dois únicos avanços da tecnologia europeia (o Airbus e o foguetão Ariana) foram o resultado de intervenções de serviços públicos e que, deixadas à iniciativa privada, estas duas realizações simplesmente nunca se teriam realizado! 

Num domínio particular — o da agricultura — a Europa efectuou uma política activa, comunitária, liberta do liberalismo doutrinário. Esta política deu resultados invejáveis; permitiu a modernização da agricultura familiar, o aumento das superfícies e a intensificação do equipamento, uma especialização mais forte, garantiu preços que asseguram a equivalência entre a receita do trabalhador do campo e do trabalhador urbano, e finalmente libertou excedentes de exportação importantes (demasiado!) Que custou? Sem dúvida a metade do orçamento da comunidade europeia, mas este é insignificante (menos de 1% do PIB dos países interessados). Hoje, como se sabe, a PAC está posta em questão. 

Beneficiando do segundo posto de despesas da União (um terço do orçamento) as políticas regionais assentam em graves ambiguidades e veiculam ambições políticas discutíveis. O objectivo não é tanto a redução das desigualdades (entre os Estados da União no seio destes entre as regiões de que são constituídos) e sim o apoio à sua capacidade de "manter a concorrência", sendo esta supostamente portadora de progresso para todos (o liberalismo doutrinário nunca foi posto em questão apesar dos desmentidos contundentes que o passado e o presente lhe infligem). Os apoios aos Estados menos desenvolvidos são de resto destinados a perder importância (pelo menos relativa) depois da incorporação dos Países da Europa Central e Oriental (PECO) na União. Articulados principalmente nos apoios às regiões para as suas despesas de infra-estrutura e de educação, as políticas de regionalização postas em acção acentuaram ainda mais as desigualdades e favoreceram as "regiões portadoras do futuro" sobre os terrenos abertos à concorrência global (como a Baviera, a Lombardia ou a Catalunha). O objectivo político aqui tentado é de resto reduzir o alcance de "unidades nacionais" em benefício de fidelidades "regionais". O liberalismo globalizado prefere sempre os pequenos Estados aos grandes, porque o desmantelamento das funções do Estado é mais fácil nos primeiros . Na União europeia prefere-se a afirmação "bávara", "catalã" ou "lombarda" à das Nações (sempre supostamente capazes de se tornarem "chauvinistas"). 

Definitivamente as concepções que dominam as visões do alargamento da União não são de natureza diversa daquelas nas quais os Estados Unidos fundaram o seu projecto de integração da América Latina numa vasta zona de livre comércio das Américas. Estas formas foram chamadas a acentuar a ruptura junto os parceiros periféricos (aqui a América Latina e lá a Europa de Leste) entre pequenas zonas bem integradas e avantajadas, controladas pelo capital dominante dos centros (aqui os Estados Unidos, lá a Alemanha) e vastas reservas ao abandono. O discurso — que pretende que a "recuperação" se fará por si graças ao fluxo progressivo de investimentos privados directos estrangeiros — só tem evidentemente funções de propaganda. Mas, enquanto os povos da América Latina rejeitam a extensão do livre comércio à escala continental e combatem os Estados Unidos nesse terreno a Europa oriental acolhe com a maior ingenuidade o projecto análogo cozinhado pelos centros capitalistas da Europa ocidental. 

As políticas de cooperação da União com a África subsahariana nunca foram senão "neocoloniais", e perpetuaram o encerramento do continente num estatuto "pré-industrial". O alinhamento liberal da União que comanda os acordos do Cotonou (2000) e os aqueles ditos de "parceiros económicos regionais" (APER) agrava esta evolução desfavorável. A África é, nesta perspectiva, objecto de uma "exclusão programada" (Amin e alii, Afrique exclusion programmée ou renaissance? 2005). De facto, "a globalização aberta" associada à conservação do continente num estatuto pré-industrial é uma estratégia executada para dar ao capital transnacional dominante os meios de pilhar o mais possível os recursos naturais do continente. Mas é preciso saber que esta pilhagem beneficiará mais as transnacionais dos Estados Unidos do que as da Europa. Nesta perspectiva de manutenção do declínio da África as políticas de cooperação (hoje qualificada como "parceria"!) entre a União Europeia e os ACP estão destinadas a perder progressivamente a sua importância em proveito de outras iniciativas na direcção da América Latina, da Ásia e da região mediterrânica. Mas até hoje nada indica que as iniciativas poderiam inovar e distanciar-se das lógicas de expansão do capital transnacional. Os projectos ditos euro-mediterrânicos estão esvaziados de todo o alcance potencial pela junção de facto dos europeus às iniciativas de Washington e de Tel Avive, apesar de algumas contorções retóricas aqui e ali. (Cf. S. Amin e A. El Kenz, Le monde arabe 2005). 

2- O projecto europeu tal como é leva ao absurdo o alinhamento com as lógicas sistematicamente desfavoráveis ao êxito de um desenvolvimento económico do continente. Deve colocar-se então a questão do porquê dessas opções (que Prodi qualificou justamente como idiotas). 

A única resposta razoável que podemos dar a este problema é que a escolha foi feita pelo grande capital dominante porque era o meio — o único possível — de ele de quebrar a força social que os trabalhadores europeus (classes trabalhadoras em primeiro lugar) haviam adquirido ao fim de dois séculos de lutas. O afundamento do sistema soviético proporcionou esta ocasião. A opção era assim perfeitamente "racional", mais evidentemente relevante de uma lógica política de curto prazo, que sempre beneficiou espontaneamente da preferência do capital. Comportamento absurdo é o dos partidos socialistas e social-democratas europeus que acreditaram que o desmoronamento dos partidos comunistas lhes conviria, ao passo que a estratégia liberal visava liquidar uns e outros. 

O projecto portanto, tal como é, convêm aos Estados Unidos, e é realmente a razão porque Washington não vê qualquer "ameaça" desenhar-se vindo de uma Europa com "eficácia competitiva". De resto a estagnação relativa em que a Europa se instalou por esta forma extrema da opção liberal facilita o financiamento do défice dos Estados Unidos, provocado pela liderança com que Washington se esmera em afirmar. A estagnação produz com efeito um excedente de lucros que, não podendo encontrar saída na expansão dos sistemas produtivos europeus, são colocados nos mercados financeiros dos Estados Unidos.

O discurso dominante atribui o problema da Europa à dificuldade que as suas sociedades teriam em adoptar franca e integralmente os princípios do liberalismo "à americana", sem nunca fazer a menor alusão à assimetria que caracteriza as relações entre as duas margens do Atlântico. De facto, se os europeus decidissem utilizar em sua casa o excedente que emprestam aos Estados Unidos — e só esta decisão poderia levar o continente a sair da estagnação — os Estados Unidos seriam então confrontados com a obrigação de reajustar a sua economia e reduzir o esbanjamento do seu modo de consumo e de despesa militar. Isso não aconteceria sem uma crise política maior. 

As políticas realizadas pela Europa não seguem o curso requerido para que o seu poder económico potencial possa afirmar-se, mas exactamente no sentido inverso. A privatização e os desmantelamento dos serviços públicos de grande eficácia na Europa (a SNCF, EDF e outros são bons exemplos) oferecem ao capital financeiro dos Estados Unidos, principalmente aos Fundo de Pensões, uma ocasião excepcional de tirar a nata dos lucros nos segmentos mais interessantes das economias em questão, reduzindo assim os meios de saída da crise à disposição dos europeus. 

Deve-se então desesperar e aceitar o prognóstico de Washington segundo o qual nada porá em causa as escolhas europeias por mais absurdas que sejam? O risco existe e não deve ser subestimado pelos movimentos alter-globalistas. A classe dirigente dominante no sentido estrito do termo — o grande capital dos oligopólios — está fortemente tentada a fechar-se nesta via sem saída para os povos europeus. Pois em contrapartida beneficia das vantagens que a sua participação no imperialismo colectivo da tríade lhe proporciona. Sem dúvida o polícia que neutraliza os efeitos do caos que este desenvolvimento imperialista implica — os Estados Unidos — estão em condições de fazer pagar o preço dos seus serviços aos seus parceiros subalternos. Mas estes não têm alternativa e por isso aceitam as posturas servis que lhes são destinadas. Depois de tudo, não será a primeira nem a última vez no mundo actual que isso acontece. 

Acrescento que é preciso tomar a medida das aflitivas opções geopolíticas em curso, que reduzem as margens de autonomia da Europa e lhe impõem navegar na esteira de Washington. A Europa não escolheu construir uma Eurásia diante da qual os Estados Unidos não pesariam muito, o que implicaria a reaproximação com a Rússia e com a China. Pelo contrário a Europa escolheu apoiar — e até encorajar — os chauvinistas "anti-russos" bálticos e poloneses (pensaríamos ter voltado a 1920 e ao "cordão sanitário" anti-soviético de Versalhes!). Ela aceita o expansionismo de Israel e valida a presença militar dos Estados Unidos no Iraque, na Ásia Central e no Cáucaso. 

O mais grave é sem dúvida o alinhamento da Europa nas posições do projecto de controle militar do Planeta pelas forças armadas dos Estados Unidos. Este alinhamento foi assinado no dia em que, no momento das guerras jugoslavas, a Europa aceitou que a NATO fosse investida de novas funções de polícia do mundo, associada às forças dos Estados Unidos. Poder-se-ia acreditar que com o desmoronamento da URSS, a NATO perdesse a sua razão de ser ("a defesa da Europa contra uma eventual agressão soviética"). A decisão tomada foi exactamente no sentido inverso: substituir a ONU pela NATO, tornada responsável pela gestão de relações políticas internacionais. A partir daí a deriva era difícil de evitar. 

Esta deriva atingiu proporções que a opinião pública na Europa geralmente ignora. Pois o que se seguiu foi nada menos que a anulação unilateral pelas potências ocidentais da Carta das Nações Unidas que haviam proscrito a guerra. Os Estados Unidos na realidade outorgaram-se o "direito" de tomar a iniciativa de "guerras preventivas" sem que os seus aliados da NATO reagissem como deviam, desolidarizando-se oficialmente desta decisão. É mais grave ainda visto que Washington se deu o direito de um primeiro ataque nuclear, se o considerar "útil". Daniel Ellsberg fez saber nessa ocasião que os documentos oficiais do Pentágono calculando as "vítimas possíveis" de tais iniciativas em nada menos que 600 milhões de seres humanos! (cem holocaustos escreveu D. Ellsberg). A Europa e a NATO, calando sobre esta decisão, tornam-se assim cúmplices do projecto criminoso dos Estados Unidos. A única resposta eficaz que pode ser dada a esta deriva é a organização de uma campanha mundial para a total interdição do uso de armas nucleares (e sem dúvida também as químicas). Pois é evidente que o tratado de "não proliferação" que as potências da NATO promovem é, nestas condições, inaceitável para os povos da Ásia e da África, perfeitamente conscientes que estão todos ameaçados de holocausto pelos Estados Unidos e pela NATO. 

Este servilismo dos segmentos dominantes das classes dirigentes e dos seus papagaios políticos (de esquerda e de direita) poderá impor-se indefinidamente às sociedades europeias? Duvido muito, porque precisamente — e é aí que se situa o essencial da minha tese sobre o assunto — as culturas políticas europeias não o deveriam permitir. Não voltarei aqui a esta tese, que desenvolvi em Le virus libéral e em Pour un monde multipolaire cujas conclusões resumi na frase seguinte: o desenvolvimento da lógica dos oligopólios dominantes aproxima os Estados Unidos e a Europa, o das suas culturas políticas separa-os. 

3- Não creio pois que o projecto europeu, tanto na sua dimensão liberal extrema como no seu alinhamento na geoestratégia de Washington, seja viável. 

A questão de saber como será ele posto em causa, aos constrangimentos de quais evoluções será submetido permanece em aberto. 

Volto aqui ao ponto da minha análise que diz respeito às "culturas políticas". As de uma boa parte do continente europeu pode ser lida como uma sucessão de desenvolvimentos maiores que modelaram a ruptura direita/esquerda: a Filosofia das Luzes, a Revolução Francesa e principalmente a Convenção da Montanha, a formação do movimento operário e socialista do século XIX, o marxismo e a Comuna de Paris, a Revolução Russa e a formação dos partidos comunistas. A direita constitui-se como contraponto no decorrer da Restauração (a "Santa Aliança"), pela formulação de ideologias "antimarxistas" (derivando para os fascismos), pela corrupção ideológica pro colonial (e racista), o anti-sovietismo. As etapas da formação da cultura política dos Estados Unidos nada tiveram a ver com esta história. Esta cultura constitui-se numa sucessão diferente de desenvolvimentos maiores: a imigração na Nova Inglaterra de seitas anti-Iluminismo, o genocídio dos índios e a escravidão dentro da sociedade (cujo impacto é diferente do da escravatura praticada nas colónias longínquas), o abortamento da consciência de classe, política em lugar da qual as vagas sucessivas de imigrantes substituíram os comunitarismos. A cultura política produzida por esta história não é muito um contraste entre esquerda (potencialmente socialista) e direita, mas de um "consenso" pro-capitalista relativizando fortemente a bipolaridade eleitoral (Democratas/Republicanos). 

O problema que hoje se coloca na Europa é saber se a herança da cultura política está destinada a esboroar-se (e a esquerda a desaparecer enquanto portadora de um projecto pós-capitalista) em benefício da "americanização" em curso (os partidos sociais-liberais aderem ao concerto dos defensores do "capitalismo eterno"), ou se uma "nova esquerda" será capaz de cristalizar-se em torno de programas à altura dos desafios. Na minha opinião as duas evoluções são possíveis. 

A ofensiva ideológica da nova direita (que integra a maioria da esquerda eleitoral) desenvolveu um agressivo discurso "anti-francês", porque, a falar verdade, esta direita vê na França — que desempenhou um papel maior na cristalização das culturas políticas na Europa — "o elo fraco" do sistema europeu, empenhado no caminho da americanização. "Colbertismo" (ou seja um sistema que no seu tempo construiu -- com a Monarquia absoluta -- as bases da modernidade capitalista que ultrapassava o feudalismo), "jacobinismo" (que entendera que sendo o liberalismo económico o inimigo da democracia, a Revolução deveria ser popular e não estritamente burguesa como fora a da Inglaterra), "laicidade" (portanto o "radicalismo" impede a maturação das identidades "comunitárias" desejadas pelo modelo de direita pro-americana), ou seja o gaulo-comunismo" (ao qual o Sr. Cohn Bendit prefere sem dúvida o petanismo anti-soviético!) constituem todos temas repetidos até ad nauseam por esta propaganda mediática. Ora é preciso constar que todos estes temas são dominantes nos discursos "europeus" (no sentido de pró União Europeia tal como ela é e tal como a querem). 

Para além da prática do projecto europeu seria bom fazer a análise do discurso com o qual esta se veste. Neste discurso toda a referência à herança da cultura política europeia é qualificada de "provocadora"("ringardise"): a defesa dos interesses de classe (incansavelmente tratada de "corporativismo"!), o respeito pelo o facto nacional (preferem os regionalismos impotentes diante do capital, os comunitarismos, mesmo as etnocracias à báltico, à croata, etc). São "modernos" no contra: o elogio da competição entre trabalhadores, regiões e países (seja qual for o preço social), ou o de conceitos anti-laicos da religião (como a papolatria à polonesa). 

A reconstrução de uma esquerda europeia exige logo a crítica radical de todos estes discursos. Ela exige principalmente que identifiquem os princípios na base dos quais a alternativa pode ser construída, e que se tirem concretamente as consequências em termos de programas a curto e a longo prazo. 

As considerações precedentes constituem uma leitura severa não apenas do "projecto europeu" tal como é mas ainda das reacções que suscita mesmo no seio dos movimentos sociais progressistas engajados. O projecto tal como é deveria sem dúvida ser qualificado não de "projecto europeu" mas de "tabuleiro europeu do projecto atlantista colocado sob a hegemonia dos Estados Unidos". As reacções maiores críticas do projecto parecem-me ser principalmente articuladas na busca de um equilíbrio menos assimétrico no seio da tríade imperialista (por uma arrumação neste quadro das relações entre a Europa e os Estados Unidos) do que de um equilíbrio mundial menos desvantajoso para o "resto do mundo". 

Nestas condições o problema mantêm-se: o projecto europeu pode "mudar de direcção", ou deve, para que isso seja possível, passar pela fase de reconhecimento aberto do seu fracasso? 

3- O Sul pode fazer recuar o imperialismo? 

O imperialismo colectivo da Tríade (Estados Unidos, Europa, Japão) está na ofensiva e empenha-se activamente em refazer o mundo em função dos seus próprios objectivos. Na quase totalidade dos países do Sul já conseguiu reduzir os seus poderes ao estatuto de "compradores". Nesse quadro os Estados Unidos, porque constituem a ponta de lança desta ofensiva, estão em posição de alargar o seu projecto hegemónico específico. Este projecto passa pelo estabelecimento de um "controle militar do Planeta" (os verdadeiros termos em que Washington expressa sem pudor as suas ambições). 

Para a realização deste projecto Washington escolheu o Médio Oriente como região de primeiro choque, por diversas razões que enumerei noutro lado (S. Amin L'hégémonisme des Etats Unis et l'effacement du projet européen 2000). Mas o projecto visa, muito para além do Médio Oriente, o "Sul" no seu todo, ou seja, toda a Ásia, a África e a América Latina. O novo imperialismo colectivo não tem outro meio para impor a prazo a manutenção dos países mencionados no seu estatuto de dominados, e é por isso que os parceiros da Tríade estão definitivamente alinhados neste projecto, por mais demente e criminoso que seja, apesar das reservas expressas de vez em quando. O "Sul" permanece "a zona das tempestades" no sentido de que as revoltas dos seus povos vítimas de devastações sociais sem precedentes estão destinadas a multiplicar-se. É preciso então reduzi-las pela violência militar — uma verdadeira nova guerra dos "cem anos" entre o "Norte" (enquanto continuar imperialista) e o "Sul". 

Nesta perspectiva o establishment dos Estados Unidos considera que a China constitui o seu grande adversário estratégico. Este establishment está no entanto dividido quanto a este ponto central. Uma fracção pensa que a China poderia prosseguir o seu desenvolvimento económico acelerado inscrevendo-se na globalização liberal tal como está, e que, desta maneira ela aceitará jogar o jogo e acomodar-se à liderança dos Estados Unidos. Nesse caso a China seria mais um aliado do que um adversário, mesmo que esse aliado possa exigir (e obter) concessões particulares em proveito próprio. Uma forma de complementaridade construir-se-ia entre a China que cobriria uma proporção crescente das importações de bens de consumo manufacturados dos Estados Unidos e estes últimos, fornecedores de tecnologias de ponta e capitais. Mas uma outra fracção da classe dirigente de Washington teme que a China faça o seu próprio jogo, tente apropriar-se das tecnologias avançadas e simultaneamente reforçar as suas capacidades militares. Seria preciso então encarar uma guerra preventiva contra este adversário estratégico antes que seja demasiado tarde. 

Pode-se, ao olhar o que se passa na sociedade chinesa para identificar as contradições que ali se desenvolvem, esclarecer melhor a questão colocada quanto ao lugar da China no sistema das suas relações com os centros imperialistas do sistema de um lado e com as periferias deste de outro lado? 

São questões que não são consideradas no discurso de economia convencional, que se satisfaz com verdades simples e superficiais como o crescimento do PIB. As classes dirigentes dos países em causa — a China no caso — têm elas próprias tendência a satisfazer-se com a imagem do futuro que se julga poder deduzir deste género de "projecções", principalmente quando "as coisas correm bem" (que o crescimento registado é forte). Uns e outros só conseguem imaginar o sempiterno empenhamento na "meta de alcançar" ("chemin du raftrappage"). 

O momento actual é caracterizado de uma maneira geral pelo estilhaçamento do Sul, e o contraste crescente entre um grupo de países ditos "emergentes" (como a China, a Índia, o Brasil, mas também países de tamanho mais modesto, entre outros a Coreia) num polo e um "quarto mundo" estagnado. Podemos concluir que os países emergentes estão na via do desenvolvimento no sentido do alcance (rattrapage) ? Minha análise, que incide nas características no novo sistema centros/periferias, leva-me a uma resposta negativa a esta questão. Nesta análise as novas vantagens decisivas que definem as posturas de dominação dos centros não são mais constituídas pelo monopólio da indústria como no passado quando a contradição centros-periferias era praticamente sinónimo de países industrializados/países não industrializados, mas pelo controle das tecnologias, dos fluxos financeiros, do acesso aos recursos naturais, da informação e dos armamentos de destruição maciça. Por este meio os centros imperialistas controlam efectivamente as indústrias deslocalizadas nas periferias "emergentes" — as verdadeiras periferias do futuro. 

Há muita ilusão, nos países emergentes em causa, sobre o futuro que os desenvolvimentos em curso preparam. No caso da China o êxito da opção daquilo que poderia ser uma perspectiva capitalista nacional — a de um capitalismo poderoso transformado em actor activo no sistema mundial — embate em obstáculos que se tornarão cada vez mais sérios. Por um lado esta opção não pode associar as imensas massas populares camponesas e urbanas aos benefícios do crescimento económico. As resistências deste estão pois destinadas a manifestar-se com cada vez com mais vigor. Já aqui chamei a atenção sobre a resistência particular dos camponeses, beneficiários de uma revolução radical a seu favor, ameaçados pelo projecto de privatização do solo agrário (um projecto de "enclosure")(1). O desenvolvimento destas lutas poderia fazer inflectir o projecto chinês na direcção de um "socialismo de mercado" autêntico, ou seja uma combinação que dá toda a sua força à prioridade social (justiça social) no modelo de desenvolvimento, reorientado para a expansão prioritária da procura interna das classes populares. Haveria então um afastamento muito grande do modelo da China inscrito simplesmente na globalização liberal. Reenvio aqui aos debates sobre o assunto, vivos na China. (S. Amin, Theory and practise of Chinese market socialism, 2005). 

Por outro lado, é preciso ser ingénuo para pensar que as potências imperialistas dominantes aceitarão sem reagir ver um país do tamanho da China tornar-se um "parceiro igual". Quando a China pode pensar em comprar uma transnacional de petróleo para se inserir melhor na globalização liberal e assegurar-se neste quadro do seu abastecimento, os Estados Unidos — em violação de todos os princípios que só os doutrinários do liberalismo julgam ser os que regem a realidade das relações económicas — fizeram abortar a tentativa por uma intervenção política brutal. Os choques entre a China e as potências imperialistas em todos os domínios que dizem respeito ao acesso aos recursos naturais do planeta, o comando das tecnologias modernas, os direitos de propriedade industrial, passam a ser violentos. Maiores do que os conflitos que não deixarão de desenvolver-se à medida que a China se imponha aos mercados internacionais de produtos banalizados. 

As ilusões que alimentam uns e outros nos outros países emergentes são ainda mais grosseiras. No Brasil, por exemplo, mais frequentemente também na América Latina, segmentos importantes da esquerda acham possível a construção de blocos hegemónicos gerados na tradição da social democracia (a "boa" — a do Estado de Previdência do após-guerra na Europa, mas não a de hoje alinhada com o liberalismo). 

Esquecemos as condições realmente excepcionais que permitiram a social democracia do Estado de Previdência. As sociedades ocidentais envolvidas dispunham de um avanço sobre todas as outras que permitiam simultaneamente concessões do capital ao trabalho e o prosseguimento do seu domínio imperialista sobre o resto do mundo. A social democracia foi social-imperialista e até social-colonialista até ao fim, quando foi vítima dos movimentos de libertação. De resto a ameaça que constituía a alternativa comunista foi decisiva no deslize do poder em direcção ao compromisso histórico capital/trabalho que caracteriza este movimento excepcional da história. Pela primeira vez a causa das classes trabalhadoras havia adquirido uma "respeitabilidade" de que não beneficiara até então. Essas condições não são as das sociedades periféricas de hoje, mesmo nos países "emergentes" que estão longe de poder impor-se em igualdade com os centros imperialistas. Além disso, a página do compromisso histórico em questão foi virada nos próprios centros desenvolvidos. A social democracia tornou-se social liberal porque o liberalismo é o meio pelo qual os centros desenvolvidos prosseguem o seu domínio imperialista sobre o resto do mundo. A social democracia não sai do quadro da sua tradição social imperialista; e porque o social imperialismo hoje é social liberal, o deslize em questão era de esperar. Assim o liberalismo, ainda que algo atenuado pelos sociais liberais quanto aos seus efeitos devastadores, reconduz as classes trabalhadoras populares dos centros ao estatuto de dominados praticamente excluídos do poder que fora seu até 1945. As novas condições poderiam constituir assim a base objectiva da reconstrução de uma frente internacionalista de povos (do Norte e do Sul), naturalmente com a condição de que as forças políticas que, no Norte, têm a audiência dos trabalhadores, rompam categoricamente com as ambições do imperialismo. 

O destino que o projecto imperialista reserva aos povos das periferias "não emergentes" é ainda mais dramático. As regiões do mundo ditas "marginalizadas" são na realidade objecto de políticas sistemáticas das forças dominantes que qualifiquei de estratégias de "exclusão programada" dos povos afectados facilitando uma integração mais forte dos seus recursos naturais submetidos a uma pilhagem intensificada. A execução deste projecto passa pela agressão e ocupação militar (como no Iraque), a colocação sob tutela devido ao endividamento (caso dos países de África). Nesse quadro a Europa e o Japão estão praticamente alinhados com Washington. A conferência do Euro Med realizada em Barcelona (fim de Novembro de 2005) testemunha este alinhamento: a Europa tentou aí impor a agenda que Bush prefere — a prioridade da "luta contra o terrorismo". Os governos árabes, hoje dóceis ao extremo às exigências dos mestres do sistema, foram constrangidos a dizer que não era possível desprezar até este ponto os direitos dos povos palestiniano e iraquiano. A Europa deixou que os interesses dos Estados Unidos passassem à frente dos seus no projecto chamado "grande Médio Oriente". O mesmo acontece no que diz respeito à África subsaariana, como ilustram os acordos de Cotonou (2000) e os projectos chamados de parceria entre a União Europeia e as Comunidades regionais da África. O alinhamento de todos sobre os mesmos discursos insípidos a respeito da "redução da pobreza" ou "o bom governo", as tomadas de posição arrogantes do novo director geral da OMC (o "socialista" Pascal Lamy!) — a fazer empalidecer os embaixadores da administração Bush—, testemunham esta unidade de visão dos parceiros da tríade imperialista. 

Diante deste desafio de uma brutalidade sem igual as reacções do Sul em questão tanto são tímidas ao extremo como inapropriadas. Os governos, como os dos protectorados de outrora, não dispõem senão de uma margem de movimento limitado ao extremo, e escusam-se a por em causa o liberalismo económico de que os seus países pagam os custos. Desamparados, grandes sectores das classes populares seguem atrás das retóricas para-religiosas ou para-étnicas que se verificam entre os povos do Sul. 

Os povos do Sul são por vezes, nessas condições, confrontados sozinhos e brutalmente com intervenções violentas dos imperialistas. É o caso do Iraque em particular, assim como o da Palestina. Embora a sua resistência (parcialmente armada) seja heróica, esta não beneficia dos apoios morais e políticos que merece. Paga-se aqui o preço dos recuos da consciência progressista que caracterizam o momento actual tanto nos países europeus como nos do Sul. O isolamento relativo dos que combatem na primeira linha o projecto de desenvolvimento imperialista favorece por vezes derivas nos métodos da resistência que promovem. Por sua vez isso não facilita a reconstrução necessária do internacionalismo dos povos. 

Reconstruir a frente unida do Sul diante do imperialismo colectivo da tríade e da ofensiva militarista dos Estados Unidos constitui o desafio com que os povos da Ásia, da África e da América Latina são confrontados. 

Os povos da Ásia e da África tiveram êxito — durante a era de Bandung (1955-1975) — em fazer recuar o imperialismo da época, graças à frente unida que lhes opuseram. Mas as condições que permitiram este êxito já não são as que governam a conjuntura actual. Na época os poderes locais, saídos de movimentos de libertação nacional e por vezes de autênticas revoluções populares, beneficiavam por este facto de uma legitimidade certa e da confiança dos seus povos. Além disso os Estados que dirigiam podiam contar até certo ponto com o apoio da União Soviética, constrangendo os agressores imperialistas a uma certa retenção. Sabe-se agora que a seguir, após o desaparecimento da União Soviética, as potências imperialistas retornaram à sua tradição de agressão brutal. 

Através do Movimento dos Não Alinhados, a frente dos Estados e a dos povos afectados exprimia-se em simultâneo. Um remake de Bandung é hoje impossível. A erosão do populismo nacional que definia o conteúdo das políticas executadas na época e a ofensiva imperialista, iniciada nos anos 1980, redobrada depois de violência a partir de 1990, produziu a deriva compradora dos poderes locais. Estes perderam por isso largamente a sua legitimidade aos olhos dos seus povos. Além disso as esquerdas comunistas alinharam-se largamente no apoio (ainda que dito "critico) aos regimes de populismo nacional da era de Bandoung e, por isso, não pareciam críveis, capazes de oferecer uma nova alternativa autêntica. O vazio ideológico operou como uma chamada de ar, permitindo aos culturalismos para-religiosos e para-étnicos responderem à confusão com as ilusões perigosas veiculadas pelos seus discursos. 

A alternativa autêntica — que chamaria um Bandoung (e uma Tricontinental) dos Povos enfrenta obstáculos sérios. As tarefas que as esquerdas nos países do Sul têm de cumprir não são mais fáceis que os desafios com que as esquerdas europeias são confrontadas. 

4- Na frente cultural: tudo em recuo 

O recuo da cultura europeia e a americanização do mundo traduzem-se pela generalização do princípio do "grande consenso" fundado na afirmação forte da "identidade comunitária". Não se deve subestimar o perigo fatal para a civilização humana que constituiria o possível êxito de uma evolução — que qualificarei de deriva — nesta direcção. Esta deriva, que de resto já está esboçada, poderia constituir uma saída à direita para a crise do capitalismo senil e permitir a sua ultrapassagem não por avanços na direcção do socialismo mas pela construção de um novo sistema de tipo "tributário" ("neo-tributário") de que indicarei mais adiante as grandes características. Por outras palavras, não apenas "outro mundo é possível" mas "um outro mundo" é certo, que pode ser melhor mas igualmente pior do que aquele em que vivemos. 

A reflexão sobre este assunto que proponho fundamenta-se numa recusa da versão linear do "progresso humano fatal de etapa em etapa do desenvolvimento da história", quer esta versão seja fundada sobre a ideologia (europeia de origem) da Razão associada ao economismo da modernidade burguesa ou sobre a interpretação marxista vulgar da sucessão dos modos de produção. Nos pontos de viragem da história, ou seja quando o desenvolvimento de um sistema chega ao seu termo devido à acumulação das contradições que este produziu (ou seja quando esse sistema entra na idade da senilidade), o futuro possível conjuga-se no plural. Nesses pontos de viragem as bifurcações da evolução ulterior são múltiplas e as direcções da evolução possível diversas. Esta multiplicidade das bifurcações tornou-se o objecto de uma formulação matemática rigorosa (a teoria do caos). Podemos discutir a pertinência desta formulação (certamente estabelecida para certos objectos de estudo, como a meteorologia) para o domínio que nos interessa (a história das sociedades humanas). Pela minha parte, duvido muito desta pertinência. Em compensação chego à mesma conclusão (a diversidade dos futuros possíveis) por uma interpretação não doutrinária do materialismo histórico, fundada no que qualifiquei de "sub-determinação das instâncias" (S. Amin, Critique de l'Air du Temps  ). 

Na análise que proponho as instancias ideológicas e políticas conquistaram uma autonomia real nas suas relações com a instancia económica. Uma combinação particular destas diversas instâncias — entre outras possíveis — e a dominância de uma ou outra que caracteriza esta combinação permitem então qualificar o sistema que se constitui em resposta à crise do modelo actual tornado senil. 

Pretendo aliás que o sistema capitalista já entrou há muito neste tempo final da senilidade, no sentido de que a gravidade das contradições produzidas pela lógica do seu desenvolvimento é a partir de agora tal que a sua gestão implica um uso permanente da maior violência política e militar dos senhores do sistema, entre outras a guerra permanente do Norte contra o Sul. 

Não resulta desta constatação que a crise do sistema capitalista mundial senil em curso não acabe necessariamente na sua ultrapassagem pelo socialismo igualmente mundial. Isto é uma possibilidade. A qual exigiria na análise que proponho: (a) no plano das evoluções políticas e sociais a associação do progresso social, do aprofundamento da democracia e do reforço da margem de autonomia das Nações numa globalização multipolar negociada; (b) no plano ideológico e cultural a renovação dos valores do universalismo. 

Nesta segunda dimensão as evoluções dominantes em curso vão exactamente no sentido inverso. As manifestações deste grande salto para trás são visíveis no que propõe o "pós modernismo", pelo menos nas suas correntes dominantes, pela sua colocação em causa da "verdade objectiva" e da valorização da "multiplicidade dos discursos". Alan Sokal e Jean Bricmont propõem uma crítica cáustica desta demissão da Razão (A. Sokal, Pseudosciences et postmodernisme, 2005). 

A ciência pretende utilizar em simultâneo a Razão (a lógica) e a observação que lhe permitiria descobrir verdades objectivas, ainda que esteja perfeitamente consciente de que estas são sempre parciais e relativas (a ciência não procura conhecer a "verdade absoluta do todo"), que as suas descobertas e as teorias que deduz devem ser objecto de uma colocação em causa permanente que permita corrigir os seus erros e avançar. Nesta definição a ciência mergulha as suas raízes no comportamento humano desde a mais remota antiguidade de todas as sociedades do planeta. Acontece que a ciência deu um salto em frente qualitativo gigantesco na Europa moderna a partir da Renascença. Foi neste quadro que ela rompeu da maneira mais sistemática com os métodos do raciocínio por analogia, substituindo a metáfora pelo rigor de observação e do raciocínio, que caracterizava e (caracteriza sempre) as "para-ciências" (como a astrologia) e a magia. Não é por acaso que este salto em frente está estreitamente associado à crítica dos dogmatismos religiosos (fundamentados na interpretação de textos "sagrados"), nem que esteja associado ao nascimento do capitalismo. Simultaneamente este salto em frente está de facto associado a uma tendência forte ao eurocentrismo, que pretende que por uma razão ou outra só podia ter sido realizado pelos "europeus", tal como as demais características da sociedade moderna em que a ciência se desenvolve — em especial o machismo patriarcal. Todos estes limites da ciência tal como ela é podem perfeitamente ser o objecto eles próprios de uma crítica científica, ou seja, ela fundamenta-se também no uso da razão e da observação e da dúvida céptica. 

Mas a versão o pós moderna, que tem o vento em popa, não propõe este modo de crítica. Ela pretende recolocar em questão o estatuto privilegiado da ciência em matéria de conhecimento. Pretende que "verdade objectiva" simplesmente não existe, que a "verdade" é o que as "pessoas" pensam ser verdadeiro. Por outras palavras coloca o discurso científico (qualificado como narração) no mesmo plano das outras narrações (as da magia, das para-ciências, das religiões). Pretende mesmo que a multiplicidade de facto das narrações efectivamente em curso aniquila toda a pretensão à universalidade. Coloca todos estes discursos num mesmo plano e, coisa curiosa (mas não incompreensível) abstêm-se de submeter os que se auto qualificam de contra hegemónicos ao mesmo rigor crítico que reserva ao "discurso dominante". 

O discurso pós modernista acompanha e legitima as evoluções maiores em curso ou seja a emergência dos "culturalismos" (a conjugar sempre no plural). Entendo assim a afirmação que as "culturas" constituiriam realidades trans-históricas fundadas sobre valores diversos, incomensuráveis e permanentes. Nada na história real dos povos confirma este a priori aberrante. O "culturalismo" — que não se deve confundir com o facto banal e evidente que constitui a diversidade cultural — legitima o discurso de perseguir o absoluto de que se alimentam todos os movimentos para religiosos (o Islão político, o hindutva, o cristianismo fundamentalista dos Estados Unidos, as inumeráveis "seitas" de todo o género) ou para étnicas. Não se trata senão de discursos super reaccionários que em nada participam nas aspirações à libertação dos seres humanos e mais particularmente das classes e povos dominados, mas ao contrário os encerra no impasse e lhes faz aceitar a dominação real de que são vítimas — a do capitalismo senil. 

Os problemas respeitantes à diversidade cultural e os discursos contra hegemónicos são tais que facilitam muitas vezes a confusão que julgo necessário evitar. Sejamos portanto claros neste assunto. Sim, a modernidade realmente existente produzida pelo capitalismo imperialista é culturalmente enviesada, eurocêntrica, masculina e patriarcal, prometéica no sentido de que trata a natureza como objecto. Sim, os discursos contra hegemónicos que o demonstram (o feminismo, o ecologismo, o anti imperialismo cultural) constituem os elementos positivos incontornáveis de toda alternativa humanista. Mas esta alternativa, longe de ser a negação da modernidade, é o desenvolvimento racional e radical abolindo o eurocentrismo, a ditadura machista e o desprezo das nações. 

Diante deste desafio, pedir para renunciar à aspiração universalista é fundamentalmente reaccionário. É aceitar que seja dado um lugar aos discursos contra hegemónicos na condição de que fiquem fechados nos guetos que lhes são destinados. A democracia estilo Estados Unidos encoraja esta "diversidade" impotente. Alinhar-se-ão os "women studies", os "black studies" aos quais serão autorizadas todas as proclamações, enquanto o discurso convencional da economia dominante prosseguirá a sua rota sem experimentar o menor incómodo. Esta ideologia dita pós modernista não pode inspirar o radicalismo necessário para mudar o mundo. 

Todos os comunitarismos se singularizam pelo facto de que tratam o grupo no qual se identificam como "homogéneo". Há "os" negros, "os" croatas, "os" muçulmanos, etc. Ou se a pertença aos grupos mencionados define por vezes — mas nem sempre — uma identidade real em certas circunstâncias, esta identidade nunca é exclusiva, mesmo quando é vivida como tal nos casos extremos de alienação. 

Certas interpretações feministas e ecologistas — mas certamente não todas — aderem aos comunitarismos neste disparate. As mulheres não constituem um grupo homogéneo — tal como os homens —, mesmo se, de um modo geral, todas elas sofrem com a posição de dominadas nas quais o sistema, fundado na dominação masculina, as encerra. Certos ecologistas tratam igualmente dos interesses comuns da humanidade pela salvaguarda da vida sobre o Planeta como se a humanidade em questão constituísse uma realidade homogénea. 

Todas estas correntes de pensamento e de acção que ocupam lugares importantes nos "movimentos" da nossa época fazem referência a realidades incontestáveis. Sem os racismos, as dominações masculinas, o desprezo pela natureza, elas simplesmente não existiriam. Estas realidades que se deve combater estão portanto na origem da sua força. Mas este combate não será eficaz a menos que integre todas as dimensões do problema numa análise de conjunto (evitando as reduções vulgares simplificadoras — será necessário lembrar?) e saiba daí derivar estratégias à altura dos desafios. 

É a razão pela qual esta "ideologia" é aquela que promovem as forças dominantes e mais particularmente o establishment dos Estados Unidos. Nada de mais funcional para a busca das dominações locais que esta ideologia, porque ela dá forma a consensos aparentes de conjuntos de indivíduos que se definem pela sua "identidade particular irredutível". Exprimirei a realidade desta funcionalidade pela seguinte imagem: se tiver na mão uma garrafa de coca-cola e na outra o emblema da nossa identidade pretendida (o Corão, a Bíblia ou uma insígnia étnica) não será perigosos (mesmo que julgue ser!). 

Em contraponto a afirmação da necessidade de ciência e de universalidade como únicos fundamentos possíveis para a civilização humana, não exclui de modo algum qualquer culto da "modernidade". Pois se a data de nascimento e as condições da formação da modernidade realmente existente podem ser reconhecidas, esta não é alcançada no termo do seu percurso (de resto não há termo, a história não tem fim). E como a modernidade realmente existente até hoje é aquela do capitalismo cabe às sociedades do planeta ultrapassá-la por uma modernidade pós capitalista superior. 

As involuções reaccionárias em curso, se elas devessem tornar-se dominantes e reduzir ao silêncio os seus contraditores, contribuiriam então para uma ultrapassagem pós capitalista que qualificaria de construção de um sistema "neo-tributário". 

A analogia na escolha da qualificação faz referência aos caracteres pelos quais identifiquei a especificidade dos sistemas pré-modernos (pré capitalistas), em contraponto com o capitalismo (moderno). Pretendo de resto que esta distinção seja a que Marx propõe no Capital, Crítica de economia política, como no conjunto dos seus escritos (principalmente em A ideologia alemã ). A determinação em última instancia pelo económico não exclui a diversidade de formas de domínio das diferentes instancias: no capitalismo o económico é a instancia dominante (e deste facto a forma de alienação que define o sistema é a alienação economista — do mercado em termos vulgares), nos sistemas anteriores a instância dominante é o político (e a forma de alienação que o permite é alienação religiosa). 

A nova ideologia prepara um retorno ao domínio do político. A do económico, própria do capitalismo, é com efeito necessariamente posta em questão pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas, isto é pelo que se chama a nova revolução tecnológica em curso. Mas o domínio do político (ou melhor e mais precisamente do político/cultural) pode tomar diferentes formas associadas a conteúdos sociais eles próprios diversos. 

Ela pode tomar a forma (superior) de um domínio da socialização pela democracia (em contra ponto da socialização pelo mercado), de um domínio da solidariedade (em contra ponto da competição) e dar assim um pedestal sólido para uma sociedade comunista. Era, creio a visão de Marx; e é nesse sentido que escrevi que o comunismo se define pelo domínio do cultural ( Critique de l'air du temps ). 

Mas este domínio pode tomar uma outra forma, a definida no programa dos neocons dos Estados Unidos: ditadura absoluta de mercado (ou seja do grande capital dos oligopólios), "democracia" consensual esvaziada de todo o alcance contestatário e renovador, afirmação violenta da pertença identitária às comunidades (religiosas e "raciais" para empregar a própria linguagem dos Neocons). Seria errado subestimar o perigo que estas opções representam. Pois mesmo se se evidencia que a sua expressão pelos Neocons é extrema e raia por vezes a extravagância, as tendências da evolução vão nesse sentido por toda a parte, nos Estados Unidos, na Europa, no resto mundo. O modelo da "democracia/direitos do homem" proposto pelas classes dirigentes constitui o pedestal e a mascarada, que na realidade está longe de aparecer como tal para muitos. Este modelo de domínio do político é reforçado — e não contrariado — pela redução do papel do Estado, que a doutrina liberal pretende legitimar em termos de reforço da democracia posta em acção pela sociedade civil. Esta está concebida e construída numa pirâmide de subconjuntos de para-cidadãos que se dão a aparência de serem activos quando na realidade estão despojados de todo poder real, trabalhando em conjunto na construção de consensos vazios de conteúdo. O modelo trata igualmente a "cultura" no modo plural, tendo rejeitado o universalismo, glorificado a "diferença" e adaptado o ponto de vista do "culturalismo". Permite então à política de dominação que procura instrumentalizar as "diferenças" em questão. 

Os principais caracteres prováveis do modo de gestão económica desta alternativa ultra reaccionária transpareciam já na "nova era do capitalismo": financeirização que reforça a centralização dos postos de comando em benefício de pequenos grupos, afirmação de novas formas "mafiosas" da classe dirigente tornando a sucessão dos valores burgueses tradicionais, etc. No plano mundial a economia em questão é a do "apartheid à escala mundial". Ela implica assim, como prevê expressamente o projecto de Washington e da NATO, a "guerra permanente" do Norte contra o Sul. D. Ellsberg lembra-nos que o seu custo poderia ser de seiscentos milhões de vítimas! 

5- Reconstruir o internacionalismo dos povos perante o imperialismo 

O liberalismo económico e o imperialismo constituem as duas faces indissociáveis da mesma realidade do capitalismo dominante da nossa época. Que o qualifiquem de "novo capitalismo" (para de certa maneira o elogiar), de capitalismo "cognitivo" ou de outro modo nada muda à natureza do desafio com que os povos se defrontam. 

Não haverá saída humana para o sistema mundial "pós liberal" sem que esta se abra para as relações internacionais realmente "pós imperialistas". À falta disso a crise desembocará num futuro ainda mais sombrio, um sistema neo-tributário e certamente super imperialista. 

Conjugando as análises que aqui propuz tanto no que diz respeito à Europa como aos Súis (les Suds), verifica-se que os "movimentos" de protesto e de luta estão longe de ter desenvolvido uma visão estratégica alternativa coerente e forte, à altura dos desafios. É preciso ter a coragem lúcida de o dizer. Demasiados "movimentos" autocongratulam-se mutuamente pelas suas acções (perfeitamente legítimas) sem julgar necessário ir mais longe, ainda menos colocar ênfase nas insuficiências. Uma certa ideologia do "movimento" pretende que a soma de todas estas resistências e lutas produza por si mesma a alternativa. Nem a história nem a reflexão teórica e a observação da realidade confirmam este ponto de vista fácil. 

Os povos fazem a sua história, mas nos limites das possibilidades objectivas oferecidas na sua época, tem sido dito. Ora acontece justamente que as possibilidades objectivas oferecidas pelo desenvolvimento tecnológico moderno são imensas: todos os problemas materiais maiores de toda a humanidade poderiam ser resolvidos. O obstáculo é constituído pelas lógicas da rentabilidade financeira que o capitalismo impõe. Libertos da sua submissão a estas lógicas os povos dariam à crise do sistema a saída humana desejada. Por outras palavras, o futuro depende das opções ideológicas e da invenção de formas de organização política adequadas. Ou ainda: o socialismo mundial não é apenas necessário, é objectivamente possível. 

Esta proposição não significa que a resposta ao desafio seja "fácil". A inversão necessária no sistema das ideias e dos valores dominantes que a proposição implica é com efeito de uma amplitude gigantesca. Supõe que os povos dos centros do sistema — em particular os europeus — reinventem uma cultura de esquerda autêntica, em ruptura com o capitalismo e o imperialismo. Que à longa série dos capítulos sucessivos que constituíram a "cultura política da esquerda europeia" (as Luzes, a Revolução francesa, o movimento operário e o marxismo, a Revolução Russa) o imaginário dos povos europeus se revele capaz de inventar um capítulo novo. Supõe que os povos das periferias — a zona de tempestades — se libertem por sua vez das ilusões de um desenvolvimento possível no quadro da globalização capitalista e dos fantasmas de alternativas passadistas e que formulem alternativas de uma nova desconexão que responda aos desafios e às possibilidades da nossa época. Supõe que uns e outros reinventem formas de organização e de acção políticas adequadas e eficazes, pois a agenda das exigências é pesada de perguntas ainda sem respostas convincentes. 

Indicarei aqui apenas, em termos muito breves, alguns dos eixos principais do desafio tal como os vejo: 

  1. definir novos assuntos históricos capazes de dominar as evoluções e de lhes dar as direcções desejadas. 
  2. definir o desafio estratégico político que proponho "resumir" nos termos seguintes: conceber programas capazes de associar (e não dissociar)   a) o progresso social;   b) avanços democráticos,   c) o respeito das Nações e dos povos. Isto implica entre outras coisas conceber uma União Europeia respeitosa das Nações e não construída contra elas. 
  3. combinar a socialização pelo mercado e uma socialização pela democracia chamada a afirmar-se cada vez mais progressivamente. 
  4. combinar a "competição" e a "solidariedade", tomando a medida da superioridade da solidariedade, que, através da história, esteve mais na origem do progresso do que a concorrência. 
  5. traduzir em termos concretos as políticas de regulação e de protecção eficazes para avançar em direcção a um desenvolvimento multidimensional, socialmente equitativo, e de duração ecológica, o que implica que se atribua à "lei" uma autoridade superior à do contrato" (conforme com a tradição europeia que também aqui está em conflito com a dos Estados Unidos). 
  6. tomar a medida exacta das evoluções demográficas do continente europeu (o "envelhecimento" que não é "negativo" — excepto para aqueles a quem só interessa a maximização do lucro — mas o produto do progresso da humanidade), dar-lhes respostas correctas em termos de migrações (fundadas na rejeição da perspectiva comunitarista) e em termos de "financiamento de reformas" (fundadas sobre o princípio da repartição e não naquele dos Fundos de Pensões que opõem as gerações). 
  7. identificar os constituintes de blocos hegemónicos nacionais, populares e democráticos, anti-imperialistas nas condições concretas dos diversos países do Sul e formular objectivos estratégicos da etapa que lhes corresponde. 

Avanços nestas direcções tornam-se sinónimos de construção progressiva do internacionalismo dos povos. Trata-se com efeito de articular as lutas dos povos do Norte (através da recomposição da cultura de esquerda europeia) e as dos povos do Sul. Este internacionalismo necessário dos povos — de todos os povos — não se pode fundar sobre conceitos vagos de "solidariedade humana à escala mundial", que frequentemente frisam a caridade ou a indigência da análise. A luta contra a "pobreza", "a boa governação", a afirmação dos interesses comuns da humanidade diante dos desafios ecológicos (rarefacção dos recursos, deterioração dos climas) são emblemáticos deste método "idealista" (no sentido pejorativo do termo) que ignora os interesses dos grupos sociais afectados e os seus conflitos eventuais. O internacionalismo em questão deve ser fundado sobre a identificação de interesses comuns, diante de um adversário comum que não se pode qualificar senão de "capitalismo imperialista". 

No seu tempo, a Terceira internacional leninista depois maoísta havia construído alianças mundiais que respondiam — em teoria e em parte, pelo menos — a um desafio análogo, formuladas nas condições e nos limites da sua época. Não se trata de produzir um remake deste capítulo da história, definitivamente encerrado. A nova articulação das lutas anti-imperialistas no Norte e no Sul está para inventar praticamente de A a Z. 

Sem pretender estar à altura de formular mais do que a questão que nos aqui nos preocupa, proporei considerar que esta construção passa primeiro pela derrota do projecto dos Estados Unidos de controle militar do planeta. Esta é, na minha análise, a condição necessária sem a qual todo o avanço democrático ou social realizado aqui ou ali permanecerá extremamente vulnerável. 

O internacionalismo dos povos não exclui o reconhecimentos de "contradições do seio do povo". Sendo o povo que se trata aqui é o do Planeta, estas contradições expressam-se não apenas no seio de um povo em especial mas igualmente entre os povos do mundo. É a razão pela qual o respeito da autonomia das Nações constitui o único pedestal sobre o qual pode ser construído o internacionalismo. O argumento aqui desenvolvido não é do "culturalismo" pelo qual se faz da singularidade cultural um motivo de rejeição da aspiração universalista. Sem dúvida a singularidade dos percursos históricos é uma realidade e como tal não deve jamais ser ignorada e desprezada. Mas para lá desta platitude, a modernidade construída pelo capitalismo sendo fundada sobre a inserção desigual dos povos na mundialidade, a emancipação (em nome dos valores universais que ela sublima) passa pela construção de um mundo multipolar. A receita liberal que consiste em submeter o planeta inteiro às mesmas "regras" (pelo menos na aparência senão na realidade — já que a realidade é sempre a "de dois pesos e duas medidas" em favor dos poderosos) produz necessariamente o aprofundamento das desigualdades. 

Se a construção do internacionalismo dos povos releva em definitivo da responsabilidade dos povos (por distinção dos "governos"), isto é, as classes trabalhadoras como os movimentos e as organizações que são as suas, o combate para avançar nesta direcção não pode negligenciar as contradições (embora "secundárias") entre as classes dirigentes (ou seja, os Estados). Reenvio às propostas de leitura que fiz dos conflitos Norte-Sul em curso de cristalização (entrevista de S. Amin por Rémy Herrera, 50 ans après Bandoung, Recherches Internationales 2004). 

Um outro mundo — melhor bem entendido — é possível. As condições objectivas existem para que possa ser assim. Não há determinismo histórico anterior à história. As tendências inerentes à lógica do capital embatem na resistência de forças que não aceitam os efeitos. A história real é então o produto deste conflito entre a lógica da expansão capitalista e as que decorrem da resistência de forças sociais vítimas da sua expansão. O desenvolvimento de lutas sociais pode levar ao poder blocos hegemónicos diferentes daqueles que governam a ordem neoliberal globalizada actual, fundadas sobre compromissos entre os interesses sociais de que se reconhece a diversidade e a divergência (blocos de compromisso capital-trabalho nos centros capitalistas, blocos nacionais-populares-democráticos anti-comprador nas periferias). Nesse caso o Estado encontra ampla margem de manobra no quadro de um sistema mundial fundado no princípio da multipolaridade negociada. É preciso trabalhar para que seja assim. A multipolaridade é então sinónimo de margem de autonomia real para os Estados. Esta margem será utilizada de uma maneira dada definida pelo conteúdo social do Estado em questão. 

O momento actual é caracterizado pelo desenvolvimento de um projecto norte americano de hegemonismo à escala mundial. Este projecto é o único a ocupar hoje toda a cena. Não há mais contra-projecto visando limitar o espaço submetido ao controle dos Estados Unidos, como era o caso na época do bipolarismo (1945-1990); para lá das suas ambiguidades de origem o próprio projecto europeu entrou numa fase de apagamento; os países do Sul (o grupo dos 77, os Não Alinhados) que tiveram a audácia no decorrer do período de Bandung (1955-1975) de opor uma frente comum ao imperialismo ocidental renunciaram a isso; a própria China, que se manteve isolada, tem a ambição quase única de proteger o seu projecto nacional (de resto também ele ambíguo) e não se posiciona como parceiro activo na modelação do mundo. 

O imperialismo colectivo da tríade é o produto de uma evolução real do sistema produtivo que produziu a solidariedade dos oligopólios nacionais dos centros do sistema que se expressa no seu cuidado de "gerir em conjunto", e em seu proveito, o mundo. Mas se a "economia" (entendida como a expressão unilateral das exigências dos segmentos dominantes do capital) aproxima o país da tríade, a política divide as suas nações. O potencial trazido pelo conflito das culturas políticas, apelando efectivamente a pôr fim ao atlantismo, fica então hipotecado pelas opções das esquerdas majoritárias (em termos eleitorais, os partidos socialistas europeus), aliados ao social-liberalismo. 

A Rússia, a China e a Índia, são os três adversários estratégicos do projecto de Washington. Os poderes em vigor nestes três países tomam provavelmente uma consciência crescente. Mas parecem acreditar que podem manobrar sem ferir directamente a administração dos Estados Unidos. Uma aproximação euro-asiática (Europa, Rússia, China e Índia) que então certamente arrastaria o resto da Ásia e da África e isolaria os Estados Unidos, é certamente desejável. Há alguns sinais nesse sentido. Mas estamos ainda longe de ver a sua cristalização por fim à escolha atlantista da Europa. 

Finalmente, o Sul em geral já não tem projecto próprio como foi o caso na era de Bandung (1955-1975). Sem dúvida as classes dirigentes dos países ditos "emergentes" (a China, a Coreia, a Ásia do Sudeste, a Índia, o Brasil e alguns outros) perseguem objectivos que elas parecem definir bem e para a realização dos quais os seus Estados agem. Estes objectivos resumir-se-iam na maximização do crescimento no seio do sistema da globalização. Estes países dispõem — ou julgam dispor — de um poder de negociação quer lhes permitiria tirar melhor proveito desta estratégia "egoísta" do que numa vaga "frente comum" construída com os mais fracos que eles. Mas as vantagens que podem obter dessa forma são particulares aos domínios singulares que os interessam e não põem em causa a arquitectura geral do sistema. Eles não constituem portanto uma alternativa e não dão a este vago projecto (ilusório) de construção de um "capitalismo nacional" a consistência que define um verdadeiro projecto societário. Os países do Sul mais vulneráveis (o "Quarto mundo") nem têm projecto próprio de natureza análoga, e o produto eventual de "substituição" (os fundamentalismos religiosos ou etnicistas) não merece este qualificativo. Também é o Norte que toma a iniciativa única de avançar "para eles" (dever-se-ia dizer "contra eles") os seus próprios projectos, como a associação União Europeia - ACP (e os "acordos de parceria económica" chamados a substituir os acordos de Cotonou com os países de África, das Caraíbas e do Pacífico), o "diálogo euro-mediterrânico", ou os projectos americano-israelenses respeitantes ao Médio Oriente e mesmo o "grande Médio Oriente".


Notas de rodapé:

(1) Enclosures: A expressão designa o processo de expulsão das suas terras dos pequenos proprietários britânicos no fim do século XVIII, que pôs uma grande massa de gente na miséria e a vaguear pelo país. Esta massa de gente tornada miserável foi a base do capitalismo, pois veio a constituir o proletariado da Revolução Industrial. Para uma explicação melhor ver Ellen Meiksins Wood, The Origin of Capitalism, Monthly Review Press, 1999, 138 pgs., ISBN 1-58367-000-9. (retornar ao texto)

Inclusão: 21/06/2020