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Primeira Edição: O ‘Apelo de Bamako’ é o documento programático mais completo, detalhado e articulado que conhecemos, saído do grande movimento agregado sob a denominação de Forum Social Mundial. A nosso ver é uma referência para a criação de uma alternativa política revolucionária genuinamente alterglobalizadora. O texto tem a reconhecível marca pessoal de Samir Amin, tendo sido aliás, curiosamente, publicado como um ensaio de sua autoria no seu livro ‘Pour une cinquième internationale’, Le Temps des Cerises, Pantin, 2006 e na sua tradução em inglês, ‘The world we wish to see’, Monthly Review Press, Nova Iorque, 2008.
Fonte: vhttp://www.ocomuneiro.com/nr08_05_ApelodeBamako.html#_ftn0
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A experiência de mais de cinco anos de convergências mundiais das resistências ao neoliberalismo permitiu criar uma nova consciência colectiva. Os forums sociais mundiais, temáticos, continentais e nacionais e a assembleia dos movimentos sociais foram disso os principais artífices. Reunidos em Bamako a 18 de Janeiro de 2006, véspera da abertura do Fórum Mundial policêntrico, os participantes desta jornada consagrada ao 50º aniversário de Bandung exprimem a sua preocupação em definir outros objectivos de desenvolvimento, em criar um equilíbrio nas sociedades que desemboque na abolição da exploração de classe, de género, de raça e de casta, assim como em traçar a via para o estabelecimento de uma nova relação de forças entre o Sul e o Norte.
O Apelo de Bamako concebe-se como uma contribuição à emergência de um novo sujeito popular histórico e à consolidação dos adquiridos desses encontros: o princípio do direito à vida para todos, as grandes orientações de uma vivência em comum na paz, na justiça e na diversidade; as maneiras de realizar estes objectivos no plano local e à escala da humanidade.
Para quer nasça um novo sujeito histórico – popular, plural e multipolar – é preciso definir e promover alternativas capazes de mobilizar forças sociais e políticas. O seu objectivo é a transformação radical do sistema capitalista, pois que a sua destruição do planeta e de milhões de seres humanos, a cultura individualista de consumismo que o acompanha e que o alimenta, bem como a sua imposição por forças imperialistas, não são mais aceitáveis. Da sua recusa depende a própria vida da humanidade. Essas alternativas devem apoiar-se sobre a longa tradição das resistências populares e tomar também em conta os pequenos passos indispensáveis à vida quotidiana das vítimas.
O Apelo de Bamako, está concebido à volta de grandes temas discutidos em comissões, afirmando a sua vontade de:
A nossa época é dominada pela imposição da concorrência entre os trabalhadores, as nações e os povos. No entanto, o princípio da solidariedade desempenhou na história funções muito mais construtivas para a organização eficaz das produções materiais e intelectuais. Queremos dar a este princípio o lugar que lhe pertence, relativizando o da concorrência.
O cidadão deve tornar-se responsável em última instância pela gestão de todos os aspectos da vida social, política, económica, cultural. É a condição de uma democratização autêntica. À falta disso, o ser humano estará reduzido aos estatutos justapostos de portador de uma força de trabalho, de espectador impotente face às decisões dos poderes, de consumidor encorajado aos piores desperdícios. A afirmação, de direito e de facto, da igualdade absoluta dos sexos é uma parte integrante da democracia autêntica. Uma das condições desta última é a erradicação de todas as formas confessas ou veladas de patriarcado.
Para o neoliberalismo, a afirmação do indivíduo – não do cidadão – permitiria o desenvolvimento das melhores qualidades humanas. O isolamento insuportável que a competição impõe a este indivíduo, no sistema capitalista, produz o seu antídoto ilusório: o encerramento nos guetos das pretensas identidades comunitárias, frequentemente, de tipo para-étnico ou para-religioso. Nós queremos construir uma civilização universal que encare o futuro sem nostalgias passadistas. Nesta construção, a diversidade política cidadã, e a das diferenças culturais e políticas das nações e dos povos, torna-se o meio de dotar os indivíduos de capacidades reforçadas de desenvolvimento criador.
As políticas neoliberais querem impor um só modo de socialização, pelo mercado, do qual, todavia, os efeitos destruidores para a maioria dos seres humanos já não carecem de ser demonstrados. O mundo que queremos concebe a socialização como o produto principal de uma democratização sem . Neste quadro, em que o mercado terá também o seu lugar (mas não todo o lugar), a economia e a finança devem ser postos ao serviço de um projecto de sociedade e não ser submetidos unilateralmente às exigências de uma expansão incontrolada das iniciativas do capital dominante, que favorece os interesses particulares de uma ínfima minoria. A democracia radical que queremos promover restitui todos os seus direitos ao imaginário inventivo da inovação política. Ela funda a vida social sobre a diversidade incansavelmente produzida e reproduzida, não sobre o consenso manipulado que apaga os debates de fundo e encerra as dissidências em ghettos.
O modelo capitalista neoliberal postula como seu objectivo submeter todos os aspectos da vida social, quase sem excepção, ao estatuto da mercadoria. A privatização e a mercantilização desabridas acarretam efeitos devastadores sem precedentes: a destruição da biodiversidade, a ameaça ecológica, o desperdício de recursos, renováveis ou não (petróleo e água, em especial), o aniquilamento das sociedades camponesas ameaçadas de expulsão maciça das suas terras. Todos estes domínios devem ser geridos como outros tantos bens comuns da humanidade. Nestes domínios, a decisão, no essencial, não releva do mercado, mas sim dos poderes políticos das nações e dos povos.
As políticas neoliberais conduzem à mercantilização dos produtos culturais e à privatização dos grandes serviços sociais, nomeadamente da educação e da saúde. Esta opção acarreta a produção em massa de produtos para-culturais de baixa qualidade, a submissão da pesquisa às prioridades exclusivas da rentabilidade a curto prazo, a degradação (ou mesmo exclusão) da educação e da saúde para as classes populares. O renovamento e alargamento dos serviços públicos devem ser guiados pelo objectivo de reforçar a satisfação das necessidades e dos direitos essenciais è educação, à saúde e à alimentação.
As políticas neoliberais negam as exigências específicas do progresso social – que se pretendem produzidas espontaneamente pela expansão dos mercados – como a autonomia das nações e dos povos, necessária à correcção das desigualdades. Nestas condições, a democracia é esvaziada de todo o seu conteúdo efectivo, vulnerabilizada e fragilizada em extremo. Afirmar o objectivo de uma democracia autêntica exige que se dê ao progresso social o seu lugar determinente na gestão de todos os aspectos da vida social, política, económica e cultural. A diversidade das nações e dos povos, produzida pela história, tanto nos seus aspectos positivos como nas desigualdades que a acompanham, exige a afirmação da sua autonomia. Não existe uma receita única nos domínios político ou económico que permita . O objectivo da igualdade a construir passa pela diversidade dos meios para a pôr em prática.
A solidariedade do todos os povos – do Norte e do Sul – na construção da civilização universal não pode ser fundada sobre a assistência nem sobre a afirmação de que, estando todos embarcados neste planeta, é possível negligenciar os conflitos de interesse que opõem as diferentes classes e nações que constituem o mundo real. Esta solidariedade passa pela ultrapassagem das leis e valores do capitalismo e do imperialismo que lhe é inerente. As organizações regionais da globalização alternativa devem alinhar-se pela perspectiva de um reforço da autonomia e da solidariedade das nações e dos povos nos cinco continentes. Esta perspectiva contrasta com a dos actuais modelos dominantes de regionalização, concebidos como outros tantos blocos constitutivos da globalização neoliberal. Cinquenta anos após Bandung, o Apelo de Bamako exprime assim a exigência de um Bandung para os povos do Sul (vítimas da expansão da globalização capitalista realmente existente), da reconstrução de uma frente do Sul capaz de colocar em guarda o imperialismo das potências económicas dominantes e o hegemonismo militar dos Estados Unidos. Esta frente anti-imperialista não opõe os povos do Sul aos do Norte. Pelo contrário, constitui o alicerce para a construção de um internacionalismo global que os associe a todos na construção de uma civilização comum na sua diversidade.
Para passar da consciência colectiva à construção de actores colectivos, populares, plurais e multipolares, é ainda necessário identificar temas precisos, para formular estratégias e proposições concretas.
Estes temas do Apelo de Bamako, apresentados abaixo mais em detalhe, sobrepõem-se, sem todavia se recobrir totalmente, sendo as interconexões entre eles múltiplas. Eles cobrem os dez seguintes domínios, em função de objectivos a longo prazo e de proposições de acção imediata: a organização política da globalização; a organização económica do sistema mundial; o futuro das sociedades camponesas; a construção da frente unida dos trabalhadores; as regionalizações ao serviço dos povos; a gestão democrática das sociedades; a igualdade dos sexos; a gestão dos recursos do planeta; a gestão democrática dos media e da diversidade cultural; a democratização das organizações internacionais.
O Apelo de Bamako é um convite a todas as organizações de luta representativas das vastas maiorias que constituem as classes trabalhadoras e os excluídos do sistema capitalista neoliberal, assim como a todas as pessoas e forças políticas que aderem a estes princípios, para trabalhar em conjunto em prol do prossecução efectiva destes objectivos.
A constituição de sinergias e de solidariedades para lá das fronteiras geográficas e sectoriais é a única maneira de agir num mundo globalizado e de chegar à definição de alternativas. Os grupos de trabalho continuarão ao longo deste ano a aprofundar e a concretizar os temas aqui abordados, para de novo fazer o ponto aquando de um próximo encontro e propôr as prioridades estratégica de acção.
Para pensar um sistema mundial multipolar autêntico, que rejeita o controlo do planeta pelos Estados Unidos da América e garante o conjunto dos direitos dos cidadãos e dos povos a dispor dos seus destinos, é necessário:
Para lá dessas campanhas, poderiam ser concebidas:
Na perspectiva de uma estratégia de acção para transformar o sistema económico mundial, é necessário:
Partindo da constatação que o livre comércio, favorecendo os mais fortes, é o inimigo da integração regional e que esta última não pode ser realizada segundo as suas regras, é necessário fixar as condições de uma cooperação alternativa no seio de cada região, assim como de uma renovação da Tricontinental, em ligação estreita com a acção dos movimentos sociais.
Para os países norte-africanos da faixa mediterrânica, os acordos Euro-Mediterrâneo constituem um exemplo suplementar de regionalização levada a cabo a expensas do Sul.
Em consequência, parece oportuno recomendar, para lá da intensificação das campanhas contra as guerras e as ameaças de guerras, a seguintes proposições:
Para ser eficaz, a cooperação entre países do Sul deve exprimir a solidariedade dos povos e dos governos que resistem ao neoliberalismo e procuram alternativas na perspectiva de um sistema mundial multipolar.
O conceito de “recursos naturais” deve ser subordinado ao do vivente e, portanto, do direito à vida, a fim de se parar com a devastação e a depredação do planeta. Trata-se portanto de um princípio vital e não de uma simples gestão de recursos naturais. Estes últimos não podem ser utilizados para lá da sua capacidade de renovação, de acordo com as necessidades de cada país. Os critérios da sua utilização devem ser definidos para garantir o desenvolvimento e preservar a biodiversidade e os ecossistemas. Impõe-se, portanto, encorajar o desenvolvimento de substitutos aos recursos não renováveis. A mercantilização da vida traduz-se por guerras pelo petróleo, a água, etc.. O agro-negócio privilegia a cultura de renda sobre a cultura de subsistência, enquanto impõe modalidades técnicas que produzem dependências e destruição do ambiente (contratos de exploração para impor certos materiais, adubos e sementes, nomeadamente a geneticamente modificadas).
Concretamente, dois níveis de acções sobre o ambiente devem ser combinadas: micro e macro. Ao nível macro, que diz respeito aos Estados, seria desejável que um quadro inter-estadual de concertação multilateral tenha os meios de acção e de pressão política sobre os Estados para tomar medidas globais. O nível micro, por sua vez, diz respeito às acções locais ou regionais, onde a sociedade civil tem um importante papel a jogar, nomeadamente pela difusão de informação e mudar as práticas a fim de economizar os recursos e proteger o ambiente. O nível local deve ser reforçado, pois que as decisões são frequentemente pensadas apenas ao nível macro.
As seguintes acções poderiam daí resultar:
No domínio da agricultura camponesa, existem desde logo objectivos a médio e a longo prazo, ligados à soberania alimentar e que se situam aos níveis nacional, internacional, multilateral (o da OMC) e bilateral (acordos de parceria económica negociados entre os países ACP e a União Europeia). De seguida, ao nível nacional, isto concerne tanto à política dos preços e mercados agrícolas como a política das estruturas, o acesso dos agricultores aos meios de produção e, desde logo, à terra. A muito curto termo, trata-se de fazer fracassar a finalização da ronda de Doha, o que facilitará a recusa de concluir acordos de parceria económica. Para este efeito, as proposições aqui expostas dividem-se em dois eixos: os meios para impor a soberania alimentar a médio prazo e, como preâmbulo, o fracaso da ronda de Doha e dos acordos de parceria económica.
1. Proposições para impor a soberania alimentar
A soberania alimentar é o direito que deve ser reconhecido a cada Estado (ou grupo de Estados) de definir a sua política agrícola interior e o tipo de inserção que ele deseja estabelecer no mercado mundial, com o direito de se proteger eficazmente das importações e de subvencionar as suas agriculturas, na condição de se interditar toda a exportação de produtos agrícolas a um preço inferior ao custo de produção total médio, sem subvenções directas ou indirectas (a montante ou a jusante). Ela é o braço de alavanca que deverá permitir a todos os países recuperar a sua soberania nacional em todos os domínios. É também um utensílio de promoção da democracia, pois que necessita de implicar fortemente os diferentes actores das fileiras agro-alimentares na definição dos seus objectivos e meios, a começar pelos agricultores familiares.
Ao nível nacional:
Os Estados devem garantir o acesso das explorações camponesas aos recursos produtivos, desde logo à terra. É preciso parar de promover a agricultura do agro-negócio com o açambarcamento das terras por parte das burguesias nacionais (desde logo funcionários) e das firmas multinacionais, em detrimento das explorações camponesas. Isto implica facilitar os investimentos das explorações familiares e transformar os produtos locais para os tornar mais atractivos aos consumidores. O acesso à terra de todos os camponeses do mundo deve ser reconhecido como um direito fundamental. A sua colocação em prática exige reformas adequadas dos sistemas fundiários e, por vezes, reformas agrárias.
Para fazer partilhar o objectivo da soberania alimentar aos consumidores urbanos – condição indispensável para que os governos nisso se empenhem – três tipos de acção são a empreender:
Ao nível sub-regional:
Para que os Estados possam recuperar a sua plena soberania, e desde logo a sua soberania alimentar, a integração política regional revela-se incontornável para os pequenos países do Sul. Para esse efeito, é preciso reformar as instituições regionais actuais, nomeadamente, em África, a UEMOA e a CEDEAO, demasiado dependentes dessas diversas mega-potências.
Ao nível internacional:
Fazer pressão para que as Nações Unidas reconheçam a soberania alimentar como um direito fundamental dos Estados indispensável para pôr em prática o direito à alimentação definido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e o Pacto Internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais de 1996. A este nível, quatro instrumentos de regulação das trocas agrícolas internacionais são a instaurar para tornar a soberania alimentar efectiva:
2) Proposições a curto termo para pôr em causa a ronda de Doha e os acordos de parceria económica:
Um ensinamento maior da conferência ministerial da O.M.C. em Hong Kong é que o Brasil e a Índia - e com eles o G-20 - distanciaram-se dos interesses das populações do Terceiro Mundo e se revelaram os mais determinados promotores da globalização neoliberal. Como a ronda de Doha é um “pacote global”, há maneiras de o colocar em causa. A sociedade civil internacional, e desde logo as organizações camponesas do Norte e do Sul, poderão, numa campanha mediática, mostrar que as subvenções (particularmente da “caixa verde”) são um instrumento de dumping bem mais considerável que as subvenções explícitas à exportação. Sê-lo-ão ainda mais a partir de 2014, quando estas últimas houverem sido eliminadas.
Duas das principais armas nas mãos dos trabalhadores são o direito de voto e o direito de constituir sindicatos. A democracia e os sindicatos, até ao presente, têm sido construidos sobre bases nacionais. Entretanto, a globalização neoliberal é um desafio para os trabalhadores do mundo inteiro e o capitalismo globalizado não pode ser afrontado unicamente ao nível nacional. Hoje em dia a tarefa é dupla: reforçar a nível nacional e simultaneamente globalizar a democracia, bem como reorganizar uma classe operária mundial.
O desemprego massivo, com o aumento constante do trabalho informal, são uma outra razão maior para repensar as organizações existentes das classes trabalhadoras. Uma estratégia mundial do trabalho deve considerar não somente a situação dos operários com trabalho, munidos de contratos estáveis. O emprego fora dos sectores formais concerne uma parte crescente dos trabalhadores, mesmo nos países industrializados. Na maior parte dos países do Sul, os trabalhadores do sector não formal – trabalhadores com empregos temporários, trabalhadores dos sectores informais, auto-empregados, os desempregados, os vendedores de rua, os que vendem os seus próprios serviços – formam no seu conjunto a maioria das classes trabalhadoras. Estes grupos estão em crescimento na maior parte dos países do Sul por causa do desemprego elevado e do duplo processo de conduz, por uma parte, à rarefacção e informalização dos empregos garantidos e, por outra parte, ao êxodo rural contínuo. A tarefa mais importante será, para os trabalhadores de fora do sector formal, a de se organizarem, e, para os sindicatos tradicionais, a de se abrirem a eles, a fim de realizarem uma acção comum.
Os sindicatos tradicionais experimentam dificuldades para responder a este desafio. Nem todas as organizações de trabalhadores fora dos sectores formais serão sindicatos, ou organizações similares, enquanto os sindicatos tradicionais deverão, eles próprios, tranformar-se. Novas perspectivas de construção em conjunto, fundadas sobre ligações horizontais e o respeito mútuo, devem se desenvolver entre os sindicatos tradicionais e os novos movimentos sociais. Para esse efeito, as seguintes proposições deverão ser consideradas:
Só um movimento assim global e renovado dos trabalhadores, agindo em conjunto com outros movimentos sociais, poderá transformar o mundo presente e criar uma ordem mundial fundada na solidariedade e não na concorrência.
As forças progressistas devem reapropriar-se do conceito de democracia, pois que uma sociedade alternativa, socialista, deve ser plenamente democrática. A democracia não se decreta do alto. Ela é um processo de transformação cultural, pois que as pessoas se transformam através das suas próprias práticas. É pois indispensável que os actores dos movimentos populares e dos governos de esquerda ou progressistas compreendam que é preciso criar espaços de uma real participação, tanto ao nível dos lugares de trabalho como ao nível dos lugares geográficos de vida. Sem a transformação das pessoas em actores protagonistas da sua história não se poderá resolver os problemas dos povos: saúde, alimentação, educação, alojamento… A queda dos países socialistas da Europa teve muito a ver com esta ausência de participação. Os cidadãos destes países não estavam minimamente motivados a defender os regimes onde eram apenas observadores e não actores.
A luta pela democracia deve também estar ligada à luta pela erradicação da pobreza e de todas as formas de exclusão. Com efeito, se queremos resolver esses problemas, é preciso que o povo se torne sujeito de poder. Isso implica a luta contra a lógica lucrativista do capital e colocar em funcionamento, nos espaços que se possam conquistar, uma lógica diferente, humanista e solidária. É que a simples afirmação da necessidade de uma sociedade diferente já não chega, sendo necessário propor iniciativas populares que sejam alternativas ao capitalismo e que procurem quebrar a lógica mercantil e as relações implicadas por esta dinâmica.
Mas trata-se também de organizar lutas que não se reduzam a simples reivindicações económicas (mesmo sendo estas últimas necessárias) e que proponham um projecto social alternativo, incluindo reais níveis de poder e democracia, ultrapassando as formas actuais de democracia representativa, parlamentar, eleitoralista. É pois necessário lutar por um novo tipo de democracia, vinda de baixo, para os de baixo, por meio dos governos locais, das comunidades rurais, das frentes de trabalhadores, de cidadãos… Esta prática democrática, solidária, será a melhor maneira de atrair de novo sectores sociais para uma luta pela sociedade alternativa plenamente democrática.
A fim de concretizar os princípios enunciados, as seguintes grandes linhas são propostas:
1) A democracia na empresa é uma reivindicação maior. Ela implica o reconhecimento do poder dos trabalhadores, dos utentes e das colectividades públicas territoriais e nacionais. Ela necessita da recusa da ditadura dos accionistas e da lógica destruidora do capital financeiro. Ela desemboca sobre o controlo das decisões, nomeadamente das deslocalizações. A colocação em uso de formas inovadoras de auto-organização e de mutualização é uma das maneiras de reivindicar a pluralidade das formas de produção e de recusar a falsa evidência da eficácia da empresa capitalista privada. O movimento pela responsabilidade social e ambiental das empresas apresenta um grande interesse, apesar dos riscos de recuperação, na condição de desembocar em normas públicas constrangedoras no direito internacional.
2) A democracia local responde à procura de proximidade e de participação. Ela repousa sobre instituições locais que devem garantir os serviços públicos e que auguram uma alternativa ao neoliberalismo, preferindo o nível local e a satisfação das necessidades ao ajustamento de toda a sociedade ao mercado mundial. Ela permite renovar a cidadania, nomeadamente através da de residência e das suas consequências em termos de direitos de voto.
3) A democracia nacional mantém-se o escalão estratégico. As questões de identidade, das fronteiras, do respeito dos direitos das minorias, da legitimidade das instituições, participam todas elas nos fundamentos da soberania popular. As políticas públicas podem ser espaços de afrontamento contra o neoliberalismo. A redistribuição das riquezas fundada sobre a fiscalidade é dgna de defesa e de se extensão. Medidas como o rendimento mínimo e a protecção social fundada sobre a solidariedade entre gerações não são reservadas aos países ricos, antes decorrem das condições específicas a cada sociedade de partilha entre remunerações do trabalho e lucro.
4) As grandes regiões podem ser tanto vectores da globalização neoliberal, com é o caso da União Europeia, como contra-tendências e locais de resistência, como o mostram as evoluções do Mercosul e a derrota da ALCA. Deste ponto de vista, os forums sociais continentais têm muito em jogo.
5) A democracia mundial é uma perspectiva de resposta à globalização neoliberal. Na situação actual, as mobilizações prioritárias trazidas pelo movimento altermundialista são: a anulação da dívida, a fundamental colocação em causa da O.M.C., a supressão dos paraísos fiscais, a taxação internacional e, em particular, a do capital financeiro (transferências de capital, lucros das firmas transnacionais, eco-taxas), uma reforma radical das instituições financeiras internacionais (nomeadamente através do princípio um país, um voto), a reforma das Nações Unidas no respeito dos direitos dos povos e da recusa da guerra preventiva.
Seria pois necessário: dotar-se de um Observatório da Democracia, que esteja à altura de resistir à hegemonia dos países dominantes, na primeira linha dos quais estão os Estados Unidos e aos seus discursos falaciosos sobre a democracia; encorajar o controlo cidadão; promover as formas democráticas inventadas e postas em prática pelos movimentos sociais e cidadãos.
As formas do patriarcado são múltiplas, como o são as suas ligações com o imperialismo e o neoliberalismo. É importante e necessário analisar o seu impacto sobre as mulheres. O conceito de patriarcado refere-se à dominação do pai/patriarca e serviu para descrever um modelo familiar dominado pelos homens que têm autoridade sobre todos os outros membros da família. O modelo não é certamente universal, muitas sociedades africanas tendo sido matrilineares ou de regime dualista, com linhagens paternais e uterinas que têm o seu papel para o indivíduo. Este sistema patriarcal estendeu-se com a expansão das religiões abraâmicas e das ideologias e legislações coloniais. Hoje em dia, o patriarcado designa sobretudo a dominação masculina, a desigualdade entre os sexos em detrimento das mulheres e as suas múltiplas formas de subordinação. A família que socializa a criança mantém-se como o primeiro lugar da “domesticação” das raparigas e das mulheres. Esta hierarquização dos sexos é tanto mais marcada quanto ela é sustentada por normas culturais e valores religiosos que levam à apropriação das capacidades produtivas e reprodutivas das mulheres. O Estado reforça este poder patriarcal com as suas políticas e os seus códigos de família. As discriminações persistem nas suas relações no seio da esfera familiar, na educação, no acesso aos recursos naturais, materiais e financeiros, no emprego, na participação no poder político, etc.. Apesar de um sensível avanço dos direitos das mulheres, a dominação masculina inscreve-se ainda duravelmente com a “masculinização” das instituições que reproduzem as organizações neoliberais.
A análise das relações entre patriarcado e imperialismo e o balanço, mitigado, das lutas das mulheres contra estes sistemas leva a propor várias acções:
1 – Pelo direito à educação:
A montante do direito à cultura, do direito à informação e do direito de informar, põe-se o problema fundamental do direito à educação. Este direito, se é oficialmente reconhecido por todo o lado, mantém-se sem efectividade em numerosos países, e muito particularmente para as raparigas. É pois uma tarefa prioritária para todos os movimentos sociais fazer pressão sobre os governos para que eles cumpram as suas obrigações mais elementares neste domínio.
2 – Pelo direito à informação e o direito de informar:
Iniciativas na direcção dos grandes media
O direito à informação e o direito a informar entram em contradição com a lógica geral do sistema mediático. Pela sua concentração crescente à escala mundial, ele é, com efeito, não somente parte directa e beneficiária dos mecanismos da globalização neoliberal, mas igualmente vector da sua ideologia. É preciso, portanto, lutar passo a passo para colocar alguns grãos de areia nesta empresa de “formatação” dos espíritos, que pretende fazer aceitar como inevitável, e mesmo como desejável, a ordem neoliberal. Para este fim, devem ser lançadas campanhas em cada país, no quadro de uma coordenação internacional:
Favorecer os media alternativos
Os media alternativos e de fim não lucrativo, sob todas as suas formas (papel, rádio, televisão, Internet), jogam um papel importante para uma informação pluralista e não submetida aos diktats da finança e das multinacionais. É por isso que é preciso exigir dos governos que esses media beneficiem de condições regulamentares e fiscais privilegiadas. Um Observatório dos Media alternativos poderia identificar as legislações mais avançadas que existem actualmente no mundo. A exemplo do que fazem os proprietários e directores dos grandes media, seria útil organizar cada ano um encontro de responsáveis dos media alternativos do mundo inteiro, eventualmente no quadro do processo dos Forums Sociais Mundiais.
Não deixar o monopólio das imagens do mundo às televisões do Norte
As grandes cadeias internacionais de televisão do Norte, como a C.N.N., beneficiaram, durante longo tempo, de um monopólio de facto, dando uma visão do mundo correspondente aos interesses das potências dominantes. No mundo árabe, a criação da Al-Jazeera permitiu, com um grande profissionalismo, romper com a visão unilateral dos conflitos do Próximo-Oriente. O recente lançamento da Telesur permite à América Latina não mais se ver somente através do prisma dos media norte-americanos. A criação de uma cadeia africana responderá a uma necessidade idêntica, e todas os esforços devem ser desenvolvidos para que ela veja a luz do dia.
3 – Pelo direito a exprimir-se na sua própria língua:
Para todas as elites off-shore do planeta, o uso do inglês é o primeiro dos sinais de reconhecimento. Existe uma ligação lógica entre a submissão voluntária ou resignada à hiper-potência estadunidense e a adopção da sua língua como único utensílio de comunicação internacional. Ora, o chinês, as línguas romanas – promovendo-se a intercompreensão no seio da grande família por elas formado – e amanhã o árabe têm tanta ou mais vocação a desempenhar paralelamente esse papel. É apenas uma questão de vontade política. Para lutar contra o “tudo-inglês”, as seguintes medidas deveriam ser encorajadas:
Criar um fundo internacional de apoio a tradução do máximo de documentos nas línguas dos países de fracos recursos, em particular para que elas estejam presentes na Internet.
As Nações Unidas constituem uma instituição dos povos, que representa a este título um adquirido. Mas trata-se de um campo aberto para o estabelecimento de relações de força entre Estados, cujo impacto pode se revelar ambivalente, senão mesmo negativo, no caso de certos povos ou em certas circunstâncias. São pois necessárias transformações, na medida em que a hegemonia dos países mais poderosos tem por efeito a instrumentalização em seu proveito da O.N.U.. Em consequência, são propostas as iniciativas seguintes: