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Primeira Edição: ....
Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Conferência. Rio de Janeiro. 29 de julho de 1985.
HTML: Fernando Araújo.
Eu dividi a exposição em três partes. Vou falar da política internacional da Revolução Russa, centrando fundamentalmente no pensamento de Lênin, que me parece paradigmático de toda concepção de política internacional do socialismo. Depois vou tomar o caso da Iugoslávia, que se caracterizou por ter uma política original, diferente. E finalmente, concluir com a política internacional da Revolução Cubana.
Começando pela União Soviética e o que propõe Lênin como política internacional para o Terceiro Mundo, não posso deixar de situar o contexto em que essa política foi concebida e implementada. Não podemos esquecer que, quando houve a Revolução Russa, a União Soviética foi bloqueada, invadida por 14 países. Foi o mundo imperialista que armou uma cortina de ferro em torno dela, em que o comércio internacional da União Soviética chegou a ser zero. E, só em 1921, esse comércio vai ser retomado, centrado basicamente com a Alemanha. Porque a Alemanha é massacrada com o Tratado de Versalhes e tinha interesse em comerciar com a União Soviética. Lênin elabora, em 1921, um grande plano de concessão ao capital estrangeiro, oferecendo ao capital estrangeiro explorar recursos de petróleo, minerais, etc. E nem assim ele consegue retomar o comércio, porque realmente as potências imperialistas, Estados Unidos, França, Inglaterra, boicotaram e não aceitaram as concessões. E ele inclusive havia formulado no sentido de salvar a Europa. Digamos que é um “Plano Marshall” do Lênin em 1921 o que ele oferece para o reerguimento da Europa. E, ainda assim, ele não consegue atrair capital estrangeiro para a União Soviética.
Quer dizer: o contexto é esse. Devemos observar também que essa situação de bloqueio e boicote vai ocorrer com todas as revoluções socialistas do mundo, exceto a Iugoslávia. E a gente vai ver depois porque. De qualquer maneira, apesar de tudo isso, Lênin coloca muito claramente que a política internacional do socialismo deve estar fundada no apoio, em primeiro lugar, ao movimento revolucionário, proletário, nos países avançados. E ele diz que todos os demais interesses da nação socialista deveriam estar subjugados a isso. E ele coloca isso não só como uma necessidade ética, mas sobretudo porque isso era o juízo dele, a condição de sobrevivência da própria revolução socialista. Agora, é interessante observar que, nessa primeira etapa, ele está convencido da viabilidade, do triunfo da revolução socialista nos países desenvolvidos, ele e toda liderança bolchevique. E é exatamente por isso que eles tentam “tocar fogo” na Europa. Eles estimulam diretamente, através de recursos humanos e materiais, as três insurreições na Alemanha: em 1919, a primeira tentativa que fracassa; em 1921, a segunda tentativa que também fracassa; e finalmente em 1923, já quando Lênin está fora de órbita, está doente, mas o partido bolchevique estimula a revolução e finalmente fracassa.
Mas ele chama atenção que a prioridade da política internacional do socialismo deveria ser a de estimular a revolução nos países capitalistas desenvolvidos, mas ao mesmo tempo não se deveria descuidar do apoio ao movimento democrático e revolucionário de todos os países em geral, fosse nas colônias ou nos países capitalistas dependentes. Ele coloca que se devia apoiar os movimentos de autodeterminação das colônias. E quando ele coloca isso, ele coloca com toda moral, porque foram os bolcheviques os primeiros que concederam os direitos de autodeterminação para os povos anteriormente subjugados pelo tzarismo, como foi o caso da polônia, da Estônia, da Finlândia, da Letônia, etc. Isso inclusive foi um fator fundamental de sobrevivência da Revolução Russa, porque a neutralidade de países como a Finlândia, na época da guerra civil, foi definitiva para que a contra-revolução não derrubasse o governo soviético.
Devo destacar também que, em Lênin, nós encontramos uma visão integrada da dimensão internacionalista e nacionalista da revolução. Para ele esses dois aspectos não são unívocos. Ser internacionalista não é negar o nacionalismo, os dois aspectos que são interligados, não são antagônicos a seu juízo, são interdependentes, pois a consolidação do socialismo internacional passa pela solidariedade internacional. Ele inclusive reconhece que, se bem a Revolução Russa não dispôs do apoio ativo estatal do proletariado europeu fazendo as revoluções nacionais, foi por causa desse apoio que a Revolução Russa não foi massacrada. Por exemplo, a classe operária inglesa fez inúmeros boicotes ao governo inglês para que não enviassem armas e tropas para tentar derrotar o poder soviético. A classe operária francesa, classe operária italiana… Então, esse apoio não estatal, porque não conseguiu tomar o poder, mas um apoio ativo, e foi fundamental para que a revolução sobrevivesse.
Analisando a questão do nacionalismo e do internacionalismo, Lênin fala o seguinte: é muito diferente o nacionalismo revolucionário do patriotismo estreito típico da ótica pequeno-burguesa do camponês médio. Para ele, essa questão do nacionalismo estreito é uma questão de segunda ou terceira ordem, se bem que ele entendia a importância tática do patriotismo pequeno-burguês, do camponês médio, porque foi esse patriotismo também tipicamente pequeno-burguês uma das condições de sobrevivência da Revolução. Ademais, Lênin está muito alerta para as limitações do Chauvinismo, porque ele enfrenta o problema do chauvinismo entre as próprias repúblicas soviéticas, porque era uma federação em que apareceriam muitas repúblicas brigando umas contra as outras devido a questão das nacionalidades. Ele concebia que a federação era uma forma de transição para uma unidade completa e que isso deveria também ser válido como meta: a União das Repúblicas Socialistas. Isso não era o ideal, o ideal era a integração completa, mas ele entendia que isso passava por etapas, deveriam ser cumpridas até que se conseguisse uma unidade completa e que essa concepção era válida também para os países coloniais e dependentes do Terceiro Mundo. Ele visualizava, como tendência, a criação de uma economia mundial única no futuro, regulada naturalmente pela classe operária, que unificasse todas as nações como um todo integrado e que seria regida por um planejamento mundial comum. Quer dizer, isso se todo o mundo já fosse no seu conjunto socialista.
No II Congresso da Internacional Comunista Lênin já percebe que não havia muitas chances de as revoluções triunfarem nos países capitalistas avançados. Então, ele volta a sua visão para os países do Terceiro Mundo, para os países mais atrasados. O documento dele, as teses para o II Congresso da Internacional Comunista, sem nenhuma dúvida é uma obra, é um texto belíssimo, quando ele diz que é importante ajudar os movimentos de libertação democrático-burguesa do Terceiro Mundo, através do apoio aos camponeses na sua luta contra os latifundiários, através de uma luta contra tentativas de dar um matiz comunista às lutas democráticas burguesas. Ele achava que ainda não estavam maduras as condições para o socialismo nesses países. Então ele propõe uma aliança com setores democráticos burgueses, mas não uma fusão. Ele chama o movimento proletário a resguardar a sua independência. E, ao mesmo tempo, ele insiste que se devia respeitar os sentimentos nacionais e inclusive fazer concessões aos sentimentos nacionais pequeno-burgueses nos países coloniais e dependentes. E ele dizia, “a questão do nacionalismo não pode ser formulada no sentido abstrato, o nacionalismo é concreto, é diferente o nacionalismo da nação opressora, do da nação oprimida. A nação opressora é nacionalista no sentido chauvinista, no sentido de querer impor aos demais povos os seus interesses hegemônicos. Enquanto que o nacionalismo da nação oprimida é um nacionalismo de auto-defesa, é uma luta por seus ideais de auto-determinação.” Então ele diz que as nações oprimidas tendem a se identificar, a irmanarem, e isso vai aplainando o caminho para unificação. Esse nacionalismo, portanto, já contem um germe de internacionalismo.
E aqui eu gostaria de fazer um parêntese e ilustrar com o exemplo da Revolução Cubana. O cubano é um nacionalista típico, é um nacionalista extremado, e o maior exemplo disso é a figura do Martí. Porém, assim como ele é um nacionalista extremado na defesa intransigente da sua pátria, da sua terra, da sua gente, dos seus direitos, ele é ao mesmo tempo um internacionalista, e aí vem um grande exemplo do Che Guevara. Isso está no transfundo da política de solidariedade de Cuba com Angola, em Moçambique, África em geral, na Nicarágua, etc. Quer dizer, toda essa concepção da integração nacionalismo e internacionalismo que Lênin elabora é viva na Revolução Cubana, é muito viva na Revolução Cubana. Eu diria que Cuba é o leninismo vivo, ao contrário do que os revisionistas contemporâneos, eurocomunistas, tentam mostrar: que “Lênin está superado…”. Mas cada revolução que se afirma é uma afirmação do leninismo.
Agora, é muito interessante que, em Lênin, não podemos encontrar ainda a noção de Terceiro Mundo, ele não maneja a noção de Terceiro Mundo. Para Lênin existem dois mundos a partir do triunfo da Revolução Russa: um velho que tende a morrer, que é o capitalista decadente, mas que não se renderá voluntariamente, e o novo que é o socialista, que vai se desenvolver a partir do triunfo da Revolução Russa, que ainda é muito débil, mas que tende a expandir, que tende a crescer, que tende a se desenvolver. Nele, a divisão é muito clara entre países coloniais e dependentes, Lênin já maneja a categoria dependência. Ele é o precursor da teoria da dependência sem nenhuma dúvida. Agora, o fator definitivo da divisão do mundo, a juízo dele, é a existência de dois sistemas antagônicos: por um lado o capitalista. E por outro lado o socialista. Quer dizer, pra ele são dois mundos que existem, não existe Terceiro Mundo. Daí que a sua ideia de relacionamento do socialismo com todos os países capitalistas era a mesma: coexistência pacífica, fosse com país imperialista, fosse com país colonial ou dependente pobre. Claro que ele intuiu, a partir de 1921, o ascenso da luta revolucionária no Terceiro Mundo, mas ele não conseguiu em sua vida vislumbrar os desdobramentos da luta no Terceiro Mundo e a tendência que o Terceiro Mundo viesse a formar um bloco. Quer dizer, é por isso que pensava que o relacionamento com o capitalismo deve ser feito através da coexistência pacífica. Qual é o conceito de coexistência pacífica de Lênin? É muito abrangente, é uma norma de relacionamento do socialismo com o mundo capitalista tanto no plano econômico, político, cultural e diplomático. A coexistência pacífica para ele diz respeito às relações com os povos e se estende também aos Estados nacionalistas. Agora, na realidade, podemos distinguir no pensamento de Lênin dois aspectos. Se bem que ele fala que a coexistência deve ser geral tanto com os povos como com os Estados, na realidade ele pensa em propor coexistência pacífica no relacionamento com os Estados; e, no relacionamento com os povos, o que ele propõe é o internacionalismo. Quer dizer, ajudar os povos que estão lutando pela sua libertação de maneira efetiva, tanto através de recursos humanos quanto materiais. Podemos perguntar: então a coexistência pacifica é uma mera tática? Não, a coexistência pacífica é uma forma de relacionamento superior entre os dois mundos: entre o mundo socialista e o mundo capitalista. E, mais do que isso, é uma estratégia para evitar a guerra. Quer dizer, ela não deve ser nem uma panacéia para encobrir a luta de classes, nem uma política em função dos interesses do Estado socialista para impedir a luta de classes e garantir a sobrevivência. Ela era efetivamente concebida por ele como uma etapa mais avançada, uma etapa mais elevada da luta pelo socialismo e o desenvolvimento de sua economia, porque essa era a condição da existência do internacionalismo, era a contrapartida. Quer dizer, sem internacionalismo o socialismo não se mantém porque não pode existir, não pode se desenvolver, o socialismo fica isolado. Então ele diz: não se pode esquecer do objetivo estratégico do imperialismo que sempre foi o de destruir e de liquidar o socialismo. Só não conseguiu isso devido à solidariedade do movimento operário em todo o mundo. Quer dizer, a Revolução Russa recebeu sempre um apoio rápido, direto, efetivo de solidariedade do movimento operário europeu. E o mesmo vai acontecer com todas as revoluções que triunfaram, pois o imperialismo as tentou liquidar e não conseguiu devido à solidariedade internacional que se armou em favor delas.
Porém, nunca a revolução russa conseguiu relações econômicas estáveis com o mundo desenvolvido, com o mundo capitalista. Lênin pergunta: o bloqueio, por exemplo, nós não sabemos para quem foi pior, para bloqueadores ou para bloqueados, porque de qualquer maneira o mundo capitalista é prejudicado ao bloquear um país tão importante e forte que é a União Soviética. Ele diz, por exemplo, “nós pagávamos muito mais do que o valor do produto que nós importávamos”, mas ainda assim, na medida que a gente conseguia importar alguma coisa do mundo capitalista isso estava ajudando o desenvolvimento da nossa economia, porque as mercadorias eram muito bem aproveitadas e portanto produziam o desenvolvimento das forças produtivas. A União Soviética pagou mais que o valor efetivo pelas mercadorias que conseguia importar do campo capitalista, mas ainda assim valia a pena porque eram muito bem aproveitadas e produziam, portanto, o desenvolvimento das forças produtivas. Isso devido à superioridade da economia planificada, que é uma economia racional baseada no cálculo e no controle global dos percursos. Por isso, Lênin chega inclusive a formular em 1921 uma declaração de reconhecimento da dívida. Ele está disposto a pagar a dívida, à condição de que os países capitalistas aceitassem comerciar com a URSS. E nem assim o imperialismo aceita! O que leva ele a dizer que “o imperialismo é pior que o diabo”, e jamais se assinou um acordo de reconhecimento da dívida. Então, qual é a tática de Lênin nesse momento? Ele opta pela divisão do mundo burguês através de acordos bilaterais, partindo do pressuposto que ambos os lados precisam comerciar. Por exemplo, ele consegue comércio com a Alemanha, que estava completamente espremida pelo Tratado de Versalhes. Numa reunião em Gênova, em 1922, é muito interessante como Lênin dá instruções para a delegação que vai partir, que vai participar dessa reunião. Ele fala: “vocês decorem os livros de Keynes, sobretudo o livro Consequências Econômicas da Paz”, porque Keynes tinha muita influência nas reuniões de cúpula europeias, era um dos assessores principais da Inglaterra e ele era favorável ao reatamento de relações com a União Soviética. Então ele fala: “vocês vão com os textos do Keynes decorados e citem o Keynes a toda hora”, para ver se conseguia trazer alguma possibilidade de comércio com a União Soviética. E a tática era essa, “dividam os países capitalistas, façam com que eles briguem entre si porque isso nos beneficia”. Em Gênova, em 1922. E vocês aprendam a comerciar, dizia Lênin para a delegação, “nós temos que aprender a negociar porque o socialista é um péssimo negociante, mas acontece que nós dependemos do comércio com o capitalista, então nós temos que aprender a comerciar”. Agora, toda essa estratégia de relações econômicas internacionais, a juízo dele, deveria ser desenvolvida – não só no caso da União Soviética – como um principio para todas as revoluções socialistas posteriores, baseadas num pressuposto fundamental: a existência do monopólio estatal do comércio exterior. E isso é importante porque, por exemplo, na União Soviética existia um setor liderado por Bukhárin que preconizava o fim do monopólio estatal do comércio exterior, e ele insiste que esse é o pressuposto básico do relacionamento dos países socialistas com o mundo capitalista…
O fato é que a União Soviética não consegue romper o seu isolamento, apesar das grandes propostas que ela fazia e de vantagens que ela oferecia para os países capitalistas. O isolamento da União Soviética explica, em última instância, porque vence a posição de Stálin: “o socialismo em um só país”, “não havia uma outra opção”. Isso é o que leva Lênin a dizer que o imperialismo teve uma grande vitória na sua derrota frente à União Soviética: não logrou liquidar a Revolução Russa, mas também impediu que ela pudesse se desenvolver e dar aqueles resultados contundentes de progresso e desenvolvimento das forças produtivas. Na medida que o imperialismo manteve a Revolução Russa isolada, ele teve uma grande vitória na derrota, porque a Rússia teve que se voltar para dentro de si mesma, a mentalidade camponesa tendeu a predominar, o que era péssimo, e ele dizia: o que nos faz falta é o desenvolvimento do capitalismo, nós não temos nem o desenvolvimento do capitalismo, nós temos o desenvolvimento feudal… Finalmente insistamos: foi uma vitória na derrota do imperialismo, porque apesar de que o imperialismo não conseguiu liquidar a Revolução Russa, de uma certa forma ele triunfou, porque ele impediu que a Revolução Russa se desenvolvesse, que as forças produtivas se desenvolvessem e que ela pudesse mostrar de maneira contundente, categórica ao mundo a superioridade da economia planificada, a superioridade do socialismo tanto interna quanto externamente. Isso é o contexto que explica porque triunfou o stalinismo, o stalinismo é um produto do isolamento, do nacionalismo e do chauvinismo, mas não havia outra opção. Apesar de tudo isso, no período Stálin a concepção de relacionamento da União Soviética com o mundo e, sobretudo com o Terceiro Mundo, com os movimentos democráticos, vai ser orientada pela concepção de Malinoviski, que vocês bem conhecem, a chamada linha do terceiro período. Malinoviski faz uma análise dizendo que havia três etapas: a primeira foi de 1917 a 1923, que foi de ascenso do movimento revolucionário, em função do exemplo da Revolução Russa. A partir de 1923 até 1928 vem um descenso (e aí as tentativas de revolução na China são liquidadas e nenhuma outra revolução se processa nesse período). E que finalmente a partir de 1928 estava começando um terceiro período, que era um período de revoluções em todo o mundo, particularmente no Terceiro Mundo. Então surge a proposta do terceiro período, que consistia no pressuposto de que todo movimento revolucionário e que a classe operária de todo o mundo deveria se preparar para tomar imediatamente o poder, criando soviets de operários e camponeses. O caso mais extremado disso foi que em Cuba, em 1930, quando a classe operária está derrubando o ditador Machado, o Partido Comunista lança a palavra de ordem de parar a greve geral porque ainda não tinha condições de fazer um governo soviético operário-camponês, mas a classe operária despreza o PC cubano, passa por cima de uma orientação e derruba o Machado. Bom, naturalmente que uma orientação dessa não ia poder dar certo, o transfundo de tudo isso foi um profundo erro do Lênin quando ele concebe a Comintern, a Internacional Comunista, como um partido mundial. Porém, Lênin percebeu esse erro e tentou corrigir, o erro é do Lênin porque a concepção da Comintern é dele. Um dos poucos erros que se pode atribuir a Lênin foi a concepção da criação da Comintern como um partido mundial. Então, naturalmente, como a sede desse partido mundial era a União Soviética, o partido comunista na realidade se transformou no orientador de todos os partidos comunistas do mundo, e isso, no período stalinista, foi um desastre. E o maior desastre foi essa linha, por exemplo, achar que o movimento revolucionário ia ser da mesma forma em todos os países do mundo, seguindo direitinho o “modelo” soviético de fazer soviets operário-camponeses. Foi um fracasso absoluto, isso isolou os partidos comunistas das massas, transformou os partidos comunistas em partidos dependentes da orientação da União Soviética, sem a capacidade de uma análise concreta e, portanto, sem nenhuma capacidade efetiva de direção da luta de classes. E isso vai durar até a segunda guerra mundial quando a COMINTERN se arrebenta definitivamente. Quer dizer, foi a tentativa exportação de um modelo revolucionário que naturalmente não podia dar certo.
Eu acho que em grandes linhas isso seriam os grandes aspectos mais interessantes para a gente discutir sobre a política internacional, sobre a linha de relacionamento internacional do primeiro país socialista com o mundo, em particular com o Terceiro Mundo.
Vou agora fazer algumas referências às especificidades da posição da Iugoslávia e aí eu estou baseada no E. Kardelj, que me parece um dos marxistas mais consequentes e sólidos e pouco conhecido. Em geral as pessoas não conhecem as coisas do Kardelj (inclusive eu comecei a lê-lo há pouco tempo), e realmente é um dos pensadores marxistas mais sólidos que eu já li. Ele diz que a Iugoslávia tem uma posição internacional diferente de todos os países socialistas. E ela pode ter essa posição diferente porque ela lutou sozinha na guerra, sem nenhuma ajuda, ela não recebeu nem ajuda do socialismo e nem do capitalismo. Então ela pode encontrar os seus caminhos, calcar a sua política com uma absoluta independência, ela não deve nada a ninguém e portanto ela pode sozinha decidir os seus destinos. Mas ele fala que, na realidade, ela pode se impor sozinha porque ela despertou uma simpatia enorme por parte de todos os povos do mundo, e essa simpatia não foi gratuita, ela se deveu a cinco razões. Em primeiro lugar, os povos do mundo adquiriram um profundo respeito pela forma de luta antifascista tenaz do povo iugoslavo frente à capitulação de muitos diante de Hitler. Foram quatro anos de luta nos quais ela não recebeu ajuda de nenhum lado. O segundo fator é que os povos do mundo ficaram com uma simpatia enorme pelo exército de libertação iugoslavo, porque o exército de libertação iugoslavo era o povo em armas, o povo escondeu as armas abandonadas pelo exército iugoslavo mercenário que capitulou, e o povo se transformou em exército, então o exército iugoslavo tinha um caráter democrático e popular e, nesse sentido, Kardelj diz que isso é um fato único no mundo. Em terceiro lugar, a Iugoslávia soube resolver, assim como a União Soviética soube resolver, corretamente, a questão nacional no país, e isso determinou a coesão do movimento de libertação nacional na medida em que o governo iugoslavo reconheceu o direito de autodeterminação, o direito de separação ou união voluntária por parte de uma série de repúblicas antes dominadas. Em quarto lugar, as práticas democráticas do movimento de libertação nacional, pois estes foram criados de maneira original e desenvolveram uma forma de democracia autogestionária e participativa. E finalmente, em quinto lugar, essa estrutura democrática do movimento de libertação nacional se transformou num movimento de todo o povo. Em outros países onde tinha movimentos antifascistas, eram coligações partidárias temporárias que se dissolveram logo depois que foi vencido o fascismo e que, ademais, originaram uma série de lutas internas. Na Iugoslávia não houve isso. Quer dizer, era um movimento do povo, não coligações artificiais, partidárias.
Bem, onde reside a origem da concepção de não alinhamento na Iugoslávia? Nós sabemos que a Iugoslávia é a precursora, a pioneira do movimento de não-alinhamento na Europa. A origem está na constatação de que não é positiva a situação de que um grande número de Estados siga cegamente a posição política de uma grande potência da qual dependa economicamente, seja ela socialista, seja ela capitalista. Então, os iugoslavos começam a preconizar que é necessário mudar essa prática internacional, inclusive para que a ONU tenha um mínimo de eficácia. Eles questionam e não aceitam a posição de que é obrigatório eleger entre a hegemonia de uma potência ou de outra potência e colocam que existirá outra via. E, ademais, eles não admitem que se possa identificar a paz com a luta pela preservação de um ou outro sistema e que, para que exista a paz, seja necessário que um sistema prevaleça sobre o outro. Eles acham errado o raciocínio que diz que só quando o mundo for socialista que não haverá mais ameaça à paz. Então o autor dizia o seguinte, “que a paz não será preservada com cruzadas antissocialistas e nem com imposição do socialismo, o socialismo não se impõe, o socialismo é um resultado de um avanço concreto de cada povo, não pode se impor pela força”. É muito interessante não se esquecer que toda essa política está sendo elaborada na época que está vigente o stalinismo e que todos os demais países tinham que aceitar a orientação de Stálin, seja em sua política, em sua economia e tudo isso. A Iugoslávia é o primeiro país que se rebela. Então ele coloca o seguinte: a paz só será preservada pela coexistência pacífica, quer dizer, a cooperação plena entre Estados com sistemas políticos diferentes, e aí resgata a concepção leninista da coexistência pacífica. E insiste que é necessário haver princípios democráticos nas relações internacionais, e esses princípios democráticos significam a autodeterminação, o direito de cada povo definir, a seu critério, que tipo de sistema e que forma de sistema vai escolher. E, se não houver esse respeito, haverá guerra, inclusive entre Estados com sistemas idênticos, sejam socialistas, sejam capitalistas. Bom, daí que ele chama à coexistência pacífica, que é a concepção de Lênin e chama ao mesmo tempo a evitar o nacionalismo mesquinho. Mas falar em relações internacionais justas, diz ele, é ao mesmo tempo falar em independência política e econômica, vale dizer: em luta pelo desenvolvimento das forças produtivos nos países subdesenvolvidos. Então, ele propõe que deve haver um financiamento internacional para o desenvolvimento e isso é a posição básica para a paz. Então ele propõe que isso seja feito através da ONU. Sim: a coexistência pacífica significa a luta pelo desenvolvimento das forças produtivas nos países atrasados, nos países pobres. E os iugoslavos creem que é obrigação dos países ricos criarem um financiamento internacional para o desenvolvimento dos países pobres e que esse financiamento pode ser feito, por exemplo, via ONU. Creem, ademais, que os países capitalistas desenvolvidos têm a obrigação de cooperar equitativamente com outras nações, pois só pode haver a paz, a segurança completa de paz, quando se terminar com a dependência econômica e a exploração dos países pobres. Eles pensam também que o mundo tende, como dizia Lênin, a se tornar um todo econômico, porém isso a longo prazo. Esta é uma questão que só vai se concretizar quando o mundo for socialista, mas que todas as tendências mostram, apontam nesse sentido, de uma economia internacional integrada. Agora, essa integração pode seguir dois caminhos: a via da cooperação equitativa entre os povos independentes ou a via da imposição da hegemonia por um, dois ou três Estados poderosos. Quer dizer, essa integração vai acontecer de qualquer maneira, ou através de um acordo entre nações independentes; ou através da imposição da hegemonia de grandes Estados sob o resto do mundo. Ele parte daí para criticar as teorias sobre as federações mundiais ou regionais, porque essas teorias stalinistas, digamos assim, encontram-se a serviço de potências e são, portanto, reacionárias. E aí ele chama Stálin, sua cara, de reacionário. Então ele diz que, não entender a questão assim é tentar praticar um pseudointernacionalismo que fala na unidade do bloco socialista, mas que na realidade se traduz na imposição dos interesses hegemônicos da União Soviética sobre os países socialistas mais débeis. Aí ele solta realmente a crítica furiosa no Stálin e diz que a exacerbação da contradição entre países desenvolvidos e atrasados é um dos problemas centrais do mundo contemporâneo. E daí vem a base, já, da concepção de não alinhamento. Eles dizem: o socialismo deve se desenvolver livremente, sem imposição de formas ou modelos, para isso o princípio da soberania nacional é uma arma indispensável na defesa dos povos contra os domínios hegemônicos. Porém, os povos não devem se encerrar sobre si mesmos, isso é prejudicial para o progresso da humanidade. E aí ele afirma que o desenvolvimento dos estados socialistas tem sido desigual devido ao desigual desenvolvimento das forças produtivas. E que um país que pode fazer a revolução depois que outro, se ele tem forças produtivas mais intensas para se desenvolver, ele pode superar o modelo da revolução que triunfou 20 anos antes e chegar a uma forma de socialismo muito mais aperfeiçoada e muito mais desenvolvida. O que ele quer dizer com isso? A União Soviética é uma revolução que triunfou em 1917, a revolução iugoslava triunfou em 1945, “mas nós temos através de nosso sistema autogestionário uma forma de socialismo muito superior que o soviético, então nos deixem tranquilos para que nós desenvolvamos a nossa experiência “sui generis”, porque cada povo tem direito de fazer isso”. Quer dizer, não aceitamos “modelo”, não existe “modelo”, não se pode impor “modelos”. Eu acho que aí, por exemplo, ele está pensando no caso da Tchecoslováquia, que era muito mais desenvolvida que as outras repúblicas democráticas e que teve que aceitar a imposição do modelo soviético, cujos resultados só foram conhecidos depois, o acirramento das contradições internas dentro do próprio campo socialista. Então, ele diz que a Iugoslávia defende a sua independência, o seu direito de desenvolver o socialismo como bem entende e, portanto, ela ocupa uma posição específica no mundo porque ela foi a única que disse não à imposição da hegemonia soviética sobre ela.
Agora, ele crê que a disputa com Stálin tem origem, a seu juízo, na estrutura social dos dois países. Quer dizer, a Rússia era um país atrasado, criou uma forma atrasada de socialismo e, a Iugoslávia era um país mais avançado, criou uma forma mais avançada de socialismo e não aceitou nenhuma forma de imposição. Por isso ele pensa que a revolução Iugoslava é paradigmática das futuras revoluções socialistas. De todos esses princípios se chegou à política de não alinhamento. As suas origens são no período de Guerra Fria, como expressão de resistência de vários países à divisão do mundo em blocos e do perigo de uma nova guerra que isso trazia. Mas não se limitou a isso a concepção de não alinhamento iugoslavo: ela pretende ser a expressão das aspirações à independência por parte das nações, numa época em que os impérios coloniais estão chegando ao fim e que a prática vai mostrando que os fracos necessitam se unir e cooperar para sobreviverem diante da ameaça de serem tragados pelas grandes potências. E ademais, essa política é inspirada pela busca de soluções progressistas e democráticas para os povos e a necessidade de implementar uma efetiva coexistência pacífica. Kardelj resalta que essa só é possível por parte dos povos verdadeiramente independentes, só povos independentes podem praticar a coexistência pacífica, mas que isso não significa não apoiar os movimentos de libertação revolucionários de cada país. E, nesse sentido, a posição iugoslava, como a de Lênin também, é meridianamente diferente da coexistência pacífica de Kruschov, porque a posição de Kruschov era coexistência com os Estados e a paralisação da luta de classes. A posição de Kruschov não tem nada que ver com a posição leninista, a iugoslava, sim, é a posição leninista. Finalmente, ele diz que existem mais dois aspectos que é importante destacar na posição de não alinhamento: que não alinhamento não é uma política de neutralidade frente aos blocos ou de hostilidade aos blocos, mas uma política que procura criar condições internacionais para a segurança coletiva de todas as nações, com base na independência e na igualdade de direitos, cujo objetivo fundamental é impedir a divisão do mundo em dois blocos gerados por potências hegemônicas. Insiste que é uma política que busca mudanças radicais nas relações econômicas internacionais, porque busca o fim da exploração e o desenvolvimento econômico do Terceiro Mundo. Busca liquidar os empecilhos ao desenvolvimento por parte dos países atrasados para que eles tenham o direito de processar em cada país a revolução científica e tecnológica. E diz que os problemas do desenvolvimento hoje no mundo são problemas universais, que os países isoladamente não conseguiram jamais resolver os seus problemas de desenvolvimento.
Posso resumir. A origem da posição de não alinhamento foi, no período da Guerra Fria, uma expressão da resistência dos países pobres frente à divisão do mundo entre dois blocos: bloco socialista liderado pela União Soviética e bloco capitalista liderado pela hegemonia que os Estados Unidos afirmam depois da Segunda Guerra. Devido a tal situação, os países tendem a se unirem, a cooperarem para poder resistir, para não serem engolidos por um bloco ou outro. A expressão da independência das nações, na época do fim dos impérios coloniais, é a necessária unidade dos fracos e sua cooperação para a sobrevivência através da busca de posições progressistas e democráticas para os povos e da coexistência pacífica. A coexistência pacífica só pode ser desenvolvida entre países independentes.