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Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. Janeiro de 1997
HTML: Fernando Araújo.
“O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há e uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação da manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta para esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.” (Darcy Ribeiro – O Povo Brasileiro)
A grave questão agrária no Brasil é muito antiga, configurou-se, desde o início do período colonial, com o estabelecimento das capitanias hereditárias, quando as terras dos povos indígenas transformaram em propriedades da coroa portuguesa e seus habitantes originais foram escravizados. Em seguida, iniciou-se o tráfico de escravos africanos, que foi intensificando-se no curso dos séculos. A sociedade escravocrata cultivou um forte preconceito contra o trabalho – coisa para negros – e, enquanto sua força produtiva fundamental esteve presa a imobilismo das relações de produção senhor-escravo, limitou-se à monocultura e à pecuária, sem conformar um mercado interno, condição preliminar do próprio desenvolvimento capitalista, apesar do enriquecimento das oligarquias rurais e dos traficantes de escravos. A abolição da escravidão, nos estertores do Império, foi feita porque já havia sido consolidado o monopólio de fato da propriedade da terra, viabilizado pela Lei de Terras de 1850, além de ter sido impulsionada por pressões da Inglaterra, a quem interessava estimular o desenvolvimento do mercado interno para sua produção excedente.
Sancionada a abolição, o estímulo à imigração de europeus para o trabalho nas lavouras ao lado do processo de industrialização nos finais do século dezenove, atraía os escravos libertos para as cidades. Estes são, na verdade, os primeiros Sem Terras do país. Apesar das heroicas resistências ocorridas desde época da escravidão, como a da República de Palmares e, posteriormente, Canudos e Contestado, a população negra jamais teve acesso à terra. Assim começa a história do êxodo rural e dos cortiços urbanos.
Podemos dividir essa história em três capítulos:
O primeiro, é o do êxodo propriamente dito. Os ex-escravos eram expulsos do meio rural, mas a industrialização urbana, de certa forma, os atraía, pois a demanda de mão de obra era crescente. Essa etapa prolonga-se até o final da Segunda Guerra Mundial.
O segundo, inicia-se nos anos cinquenta, intensificando-se a partir da década de sessenta.
A revolução científico-tecnológica, que começa a processar-se durante a guerra, intensifica-se a partir do pós-guerra, especialmente no centro hegemônico do capitalismo mundial, os Estados Unidos. Tal revolução consiste em tornar a ciência em principal força produtiva e utilizar e utilizar a tecnologia desenvolver a automação, lançando as bases para o desenvolvimento posterior da robótica, da cibernética, da eletrônica e da informática. Tal desenvolvimento conduz, a ongo prazo, à retirada do trabalho físico humano do processo produtivo, tendendo, pois, a incentivar o desemprego estrutural.
Essa revolução foi conduzida em toda a América Latina, pelo capital estrangeiro, que possuía o controle monopólico dos novos processos produtivos e as patentes dos produtos. Com a penetração intensiva desse capital, ocorreu a desnacionalização da propriedade privada de importantes instrumentos de produção e a transformação de nossa classe dominante em dominante-dominada, ou seja, sócia menor do capitalismo nos países centrais.
A produção em série de máquinas agrícolas, que competem com o trabalho do homem, a estrutura fundiária monopolizada e o tradicional fenômeno da grilagem das terras, não só de terras devolutas, mas também de pequenos proprietários, intensifica o êxodo rural. Em meados dos anos cinquenta, surgem as Ligas Camponesas no Nordeste, que tendem a espalhar-se em outras regiões, bem como a CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.
Na mesma época, no meio-norte do Estado de Goiás, ocorre a “Revolta de Formoso” ou “Revolta de Trombas”. “Com a construção de Brasília (…) interessados nos lucros que poderiam obter com a valorização fundiária do meio-norte goiano, vários comerciantes e proprietários rurais, secundados por advogados e juízes, promoveram a grilagem da imensa quantidade de terras devolutas existentes na região (…). O conflito social explodiu quando os milhares de posseiros que habitavam as terras devolutas (…) não aceitaram ser expulsos pelos grileiros. Uniram-se, sob a liderança do camponês José Porfírio de Souza (…), organizaram-se, enfrentaram e venceram (…) as forças particulares dos grileiros (…) e policiais. Vitoriosos, os posseiros permaneceram nas terras e alguns, após eleição de Mauro Borges para o governo do Estado de Goiás, receberam os títulos definitivos de propriedade. Nos anos de paz, após os combates, os posseiros souberam aperfeiçoar em Trombas uma organização social ‘sui generis’ na qual toda a comunidade participava ativamente das decisões importantes (…). Após 1964, a área sob intervenção, muitos lideres foram perseguidos e presos e vários camponeses se viram obrigados a abandonar a região. A importância desse movimento foi a de que ‘milhares de camponeses lutaram na região’ e sua duração, ‘por mais de uma década, demonstrou o potencial de luta dos Sem-Terra no Brasil…”(1)
Ainda neste período, no Rio Grande do Sul, ocorre uma criativa reforma agrária durante o governo de Leonel Brizola. Esta reforma agrária baseou-se na formação de cooperativas de pequenos produtores. Tal experiência foi tão bem-sucedida que deu origem a um forte movimento cooperativista do Estado, que sobreviveu ao Golpe de 1964.(2)
No começo dos anos sessenta, sob influência da revolução cubana, a reivindicação da reforma agrária transforma-se na principal bandeira de luta dos movimentos sociais. Em 1962, realiza-se em Belo Horizonte o Primeiro Congresso Nacional Camponês, com a participação de mais de mil camponeses, de várias partes do país, com a presença do Presidente da República, João Goulart, e de importantes líderes nacionais, como Leonel Brizola e Francisco Julião. No seu término, provocadores da direita tentam tumultuar a sessão, um prenúncio de intransigência sombrio do que viria a ser o golpe de 1964.
O ex-Ministro de João Goulart, Almino Afonso, relembrou assim esse período:
“A reivindicação direta dos direitos trabalhistas, a partir da promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, passou a generalizar-se no campo, superando a velha estrutura senhorial.
Os sindicatos rurais, cuja criação foi estimulada pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, enquanto eu tive a honra de chefiá-lo e pelo brilhante Senador Amaury Silva que me sucedeu, multiplicaram-se logo às centenas. Em um ano de vigência do Estatuto eles organizaram-se em 1.200 sindicatos, valendo assinalar que seu âmbito de jurisdição, às vezes, era de vários municípios.
Mas, o fato que expressou melhor esse despertar da cidadania, além das fronteiras urbanas, talvez seja a greve nas cercanias de Recife, em maio de 1963, abrangendo um contingente de 300.000 trabalhadores rurais. O importante, nesse contexto, é destacar que a reforma agrária deixara de ser um problema da alçada de técnicos ou da preocupação de políticos de maior visão social, para transformar-se numa reivindicação inarredável do movimento de massa.”(3)
Desde o surgimento do movimento camponês, proprietários rurais se armaram e foram inúmeros os conflitos onde trabalhadores perderam suas vidas, apesar de que a figura central das Ligas Camponesas era sempre a de um advogado, pois a Liga se formava quando os camponeses sentiam que suas terras estavam ameaçadas e apelavam para a justiça.
Tão intensa era a luta pela reforma agrária que um dos estopins do golpe de Estado de 1964 foi o Decreto n° 53.700, de 12 de março de 1964, que desapropriava as terras compreendidas em um raio de dez quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, ditado pelo Presidente João Goulart.
Com a vitória do golpe, o movimento camponês foi esfacelado, seus líderes perseguidos e presos. Mas, o impacto desse movimento havia sido tão grande, que a própria ditadura, no mesmo ano do golpe, editou o Estatuto da Terra. Esta Lei teve como objetivo dar respostas políticas aos movimentos sociais anteriores ao golpe, tendo sido utilizada, na prática, para a promoção do processo de colonização e implantação do imposto territorial progressivo sobre as propriedades improdutivas. Buscava, pois, incentivar o desenvolvimento do capitalismo no campo e, deste sentido, eta progressista. Contido, esse instrumento legal praticamente não foi utilizado, pois as tentativas de colonização, na maior parte, foram um fracasso, devido ao fato de serem implantadas em regiões inóspitas e sem infraestrutura condizente.(4)
O Imposto Territorial Rural – ITR sempre foi sonegado por cerca de 70% dos latifundiários.
O próprio mentor intelectual do Estatuto da Terra, o então Ministro de Panejamento Roberto Campos, reconhece que o mesmo foi um “sonho tecnocrático”.(5)
Segundo a Receita Federal, em 1992, foi arrecadado, pelo ITR, a cifra irrisória de R$ 17,8 milhões; em 1993, a arrecadação foi de R$ 19,3 milhões e, em 1994, de apenas R$ 16,4 milhões.
A partir do golpe de 64, intensifica-se o fenômeno dos “boias-frias”, trabalhadores despojados de suas terras, que são empregados temporariamente na época do plantio ou das safras, sem nenhum direito trabalhista e que, nas entressafras, vivem na periferia das cidades do interior, fazendo pequenos biscates.
A partir de meados da década de setenta, quando se esgota o chamado “milagre econômico” e as obras públicas faraônicas vão perdendo o ritmo feérico, as grandes cidades, já superlotadas de favelas, não têm condições de oferecer empregos e atrair novos migrantes, mas a migração continua. Por isso, a partir desse momento, o que ocorre não é um êxodo rural stricto sensu, mas um processo de desruralização, vale dizer, o campo expele e a cidade não absorve. Desruralização, esse conceito novo, é simbiótico com a marginalização, o que significa violência urbana, miséria, insegurança, prostituição, neurose, stress, enfim, todas as maldições do capitalismo que o nosso povo tem de suportar, sobretudo os de baixo, mas também os de cima…
O terceiro capítulo começa a partir de 1984, com a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Este movimento surge como uma consequência da desruralização. O trabalhador rural sem-terra sabe que não tem a mínima chance de conseguir emprego na cidade e, por isso, resiste em sair do campo. Começam a surgir os primeiros acampamentos em beira de estradas e as ocupações. O MST surge no Rio Grande do Sul. Em 1981, famílias levantam um acampamento na Encruzilhada Natalino. Em 1985, mil e quinhentas famílias acampam na Fazenda Anoni e faze uma marcha até Porto Alegre. Posteriormente são assentados nessa e em outras fazendas. A partir daí, o movimento se espalha por todo o país.
O MST, em suas origens, foi influenciado pelas Comunidades Eclesiais de Base, formadas pelo setor progressista da Igreja Católica, que inspirava-se na Teologia da Libertação, que teve em Leonardo Boff seu principal elaborador no Brasil.(6)
Após o maciço movimento pelas “diretas já”, Tancredo Neves foi eleito, indiretamente, pelo Congresso, Presidente da República. Para compensar a frustração popular fez muitas promessas, entre essas a de implementar a reforma agrária. Com seu falecimento, o presidente José Sarney tratou de realizar um programa de assentamento de famílias. Sua meta inicial foi de 1.400.000, em seguida reduzida para 307.600, para, finalmente, assentar apenas 82.000 famílias.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte os latifundiários, sob liderança de Ronaldo Caiado, fizeram uma ampla mobilização visando pressionar o Congresso Nacional, no sentido de impedir que a reforma agrária constasse no texto constitucional. Conseguiram, em parte, seus objetivos: não conseguiram impedir sua inclusão na constituição de 1988, mas lograram restringi-la ao latifúndio improdutivo e atrasar sua regulamentação, que só foi feita através da Lei N° 8.629/1993.
Pari passu, com o desenvolvimento orgânico do MST, os latifundiários criaram a UDR – União Democrática Ruralista, que ficou conhecida pelos leilões de gado para financiar a eleição de candidatos com ela comprometidos e para a montagem de grupos paramilitares, que várias vezes foram utilizados para intimidar e reprimir trabalhadores rurais.
Quando o governo de Fernando Collor nomeou para Ministro da Agricultura o latifundiário Antônio Cabrera, que não desapropriou um hectare sequer, a UDR percebeu que sua existência não tinha mais sentido, pois havia chegado ao poder.
Pela lentidão da reforma agrária – no governo do Presidente Itamar Franco foram assentadas somente 18.900 famílias – o MST cresceu em todo o país, suas lideranças amadureceram, tornando-se mais orgânico e coordenado a nível nacional.
O Presidente Fernando Henrique Cardoso, em sua campanha eleitoral, desfralda a bandeira da reforma agrária como uma de suas metas prioritárias. Propõe assentar 280 mil famílias em 4 anos. No primeiro ano de governo, quarenta mil, no segundo sessenta mil, no terceiro oitenta mil e no último cem mil. Meta pífia, considerando-se que, calcula-se, no Brasil existem 4,8 milhões de famílias sem-terra, totalizando entre 10 a 12 milhões de trabalhadores (são considerados sem-terra, trabalhadores rurais acampados, boias-frias, posseiros, meeiros, arrendatários, filhos de minifundiários). Os ex-pequenos proprietários que perderam suas terras e migraram para as cidades não estão incluídos nestes cálculos e perfazeriam mais alguns milhões.
No Brasil, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, dos 5.147.000 imóveis rurais existentes em 1992, somente 96.274 com mais de 1000 hectares, vale dizer 1,9% dos mesmos, ocupam 55,3% das terras cadastradas. Os latifúndios por exploração e por dimensão abrangiam uma área de 424.977.150 hectares, representando 66,5% da área cadastrada do país. Estes imóveis improdutivos servem, em grande parte, como reserva de valor, quer dizer, para a especulação imobiliária. Se forem considerados os imóveis rurais com mais de 25 módulos fiscais de área aproveitável, que totalizam 58.905 imóveis, verificar-se-á que abrangem 261.724.710 hectares, dos quais 73.406.010 hectares são totalmente ociosos, isto é, aproveitáveis mas não explorados.(7)
O Atlas Fundiário Brasileiro, com base nos levantamentos cadastrais de 1966, 1972, 1978 e 1992, assinala que 2,8% dos imóveis rurais são latifúndios e ocupam 56,7% da área. Segundo o mesmo, “usualmente se adota o índice Gini como forma de quantificar a concentração fundiária. Historicamente, no caso brasileiro, o mencionado índice não tem apresentado mudanças expressivas desde 1940, mantendo-se a média nacional em torno de 0,80, situando-se entre as mais altas do mundo.(8)
Os minifúndios e pequenas propriedades perfazem 89,1% dos imóveis e abrangem 34,4% das terras.
No Brasil, a agricultura familiar representando cerca de 90% dos 5.800.000 estabelecimentos existentes, ocupa 80% da mão de obra e responde por 50% da produção total, segundo último Censo Agropecuário do IBGE, datado de 1985.
Esse quadro da concentração e improdutividade fundiária da terra explica por que a safra de grãos é tão medíocre, pois em um país tal magnitude de terras, poderia produzir, anualmente, no mínimo, o dobro do que e, geral se produz. (A safra de grãos foi de 79,3 milhões de toneladas colhidas em 1995 reduzindo-se para 72,4 milhões em 1996).
Esse quadro explica, também, porque o nosso mercado interno é reduzido e um quarto do nosso povo passa fome. Tal situação deve ser profundamente revertida, não apenas porque entrava o próprio desenvolvimento capitalista, mas, sobretudo, por uma questão de justiça social. Isso torna o desemprego ascendente nas cidades. Na Grande São Paulo, em março do presente ano, o desemprego se elevou em 100 mil pessoas, aumentando para 1,2 milhão, ou seja, pulou de 13,8% para 15% da população Economicamente Ativa.
É o insuspeito deputado Delfim Netto que diz: “O mais grave – e ainda fora das vistas da imprensa urbana – é o desemprego brutal que atinge o setor rural brasileiro. O problema dos ‘sem-terra’ exprime apenas uma faixa exígua da tragédia no campo. Políticas desestabilizadoras da economia de laboriosos agricultores, expulsos das áreas de produção de trigo (reduzida de seis milhões de toneladas/ano) e da agricultura algodoeira (250 mil catadores, arrendatários e pequenos proprietários postos fora do negócio somente em São Paulo e no Paraná entre 1985 e 1995)”. (…) “Não é preciso grande esforço para calcular o quanto aumentou o número de retirantes do setor rual nestes últimos anos expelidos dos campos de trigo e das lavouras de cacau e algodão e mais recentemente dos campos irrigados do sul, das plantações de banana do Vale da Ribeira e das bacias leiteiras do centro-sul.”(9) Calcula-se que que foram desempregados em 1995 um milhão de trabalhadores no setor rural.(10)
Quer dizer, o campo expele do emprego muito mais pessoas do que se quer assentar no programa proposto pelo presidente.
Naturalmente, o que preocupa Delfim não é propriamente a necessidade da reforma agrária, mas os resultados da aloprada política neoliberal de juros estratosféricos e câmbio sobrevalorizado, que são utilizados como âncoras da estabilização e que geram alarmante desemprego e a profunda estagnação. Mas essa situação por ele descrita, vale dizer, a irresponsável política econômica dos últimos governos, e, em particular, do atual, agrava os problemas no campo e na cidade. Securitizou-se a dívida dos grandes produtores, mas os pequenos já haviam falido…
A desruralização intensa da última década agravou a favelização, a violência e a marginalização nas cidades. Atirados nos grandes centros urbanos, o sem-terra torna-se um desempregado, um trabalhador informal, um biscateiro ou um marginal. Seus filhos crescem sem educação e, muitas vezes, tornam-se “pivetes”, meninos de rua ou prostitutas. Revoltados, vão engrossar o contingente de marginais, cujo destino é a prisão o a morte ainda jovem. Suas esposas compõem o contingente de três milhões de desempregadas domésticas existentes no país.
Os trabalhadores rurais sem-terra, que temam em permanecer no campo, atualmente são 37 mil famílias em mais de 160 acampamentos, pelos dados fornecidos pelo MST. O governo afirma que assentou quarenta e duas mil em 1995. Sobre isso, João Pedro Stedile, líder do MST, disse: “É uma mentira, inda que o governo não tenha culpa de divulgar informações erradas. Eles assentaram 12 mil famílias. Os outros 30 mil casos referem-se à regulamentação de títulos de posseiros já assentados.”(11) A mesma controvérsia ocorre quanto aos assentamentos realizados em 1996. O governo ostenta a cifra de 60 mil e o MST a reduz para 20 mil. O fato é que as cifras de famílias acampadas até o final de 1996, variam de 55 mil a mais de 100 mil, segundo declarações de líderes do MST divulgadas na imprensa. De onde provém tais famílias? Do campo mesmo, embora possa acentuar-se a tendência à incorporação de cada vez mais expressivos contingentes de ex-trabalhadores rurais radicados até então, precariamente, nas zonas urbanas.
Segundo o Relatório da Comissão Pastoral da Terra – CPT, de 1994, nos últimos cinco anos a média de mortes no campo, por ano, é de 35 pessoas. Durante o atual governo, até abril de 1996, já foram assassinados 55 trabalhadores rurais, e durante todo o ano de 1996, a cifra acenderia a quarenta e sete. Os responsáveis pelos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás até agora estão impunes. Segundo Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência na Universidade de São Paulo – USP e diretor da Comissão Teotônio Velela, constatou in loco que, no último massacre, as 19 mortes “foram execuções deliberadas e seletivas: resultado visado por cilada preparada pela Polícia Militar. Com a colaboração dos fazendeiros e empresários que os emprega nas horas de folga como seus pistoleiros e guardas.”(12) Depoimentos Colhidos pela Comissão Externa da Câmara dos Deputados, indicaram que outras mortes não foram consideradas devido ao desaparecimento dos corpos.
No Congresso Nacional, a poderosa bancada ruralista anda alvoroçada para deter as reformas que visam agilizar a aquisição de terras para a reforma agraria, pois sabe que o governo necessita de seus votos para privatizar a Previdência Social, que seria entregue aos banqueiros, e terceirizar a administração pública, por meio da demissão maciça dos servidores públicos e, a UDR renasceu na região do Pontal do Paranapanema, ostensivamente raivosa e ameaçadora, buscando defender, pela intimidação das armas, a grilagem de terras públicas.
Enquanto isso, o presidente FHC desabafa com Vicentinho: “Eu sei que a reforma agrária é necessária. Mas a reforma agrária não vai resolver os problemas do campo. Quanto mais famílias o governo assentar, mais famílias vão para as rodovias brigar por terras.”(13)
Tem razão o Presidente do Supremo Tribunal Federal, José Paulo Sepúlveda Pertence, quando diz que “falta vontade política” do governo para fazer a reforma agrária e que se poderia lançar mão de Medidas Provisórias para acelerar a mesma. Afinal, a MP é expediente “até mais poderoso do que o decreto-lei usado durante a ditadura” e, até agora, apenas no governo FHC, entre edições e reedições, já foram editadas 634 Medidas Provisórias por motivos menos “urgentes e relevantes”, como diz a Lei. A verdade é que a reforma agrária no governo FHC anda a ritmo de tartaruga. Não se admite que a compra de terras deva ser a regra, pois o latifúndio improdutivo deve ser desapropriado na forma de Lei, bem como as terras possuídas através da grilagem. Mas é válida essa reflexão: se o governo tivesse mesmo vontade política para equacionar a questão, teria destinado à reforma agrária, pelo menos, parte dos bilionários recursos que destinou a PROER – calcula-se que já chagam a R$40 bilhões – para salvar bancos falidos por esquemas de corrupção, e não apenas o mísero R$ 1,286 bilhão previsto no Orçamento de 1996 e de R$ 2,597 bilhões no ano de 1997.(14) A reforma não é só a entrega da terra, mas financiamento, apoio técnico, infraestrutura, como eletrificação, abertura de estradas vicinais, assim como escola, posto de saúde, construção de casas, etc.
Muitos argumentam, os latifundiários, sobretudo – e até, ingenuamente, pessoas de boa fé – que as terras devolutas deveriam ser o principal alvo da reforma agrária. Ocorre que, a maioria destas, estão localizada na Amazônia Legal e são de difícil acesso. Além disso, haver-se-ia de implantar projetos muito bem controlados e limitados, de forma a não se degradar o meio ambiente. Em suma, as terras devolutas não resolvem o problema. É importante destacar que o aproveitamento de terras devolutas da Amazônia só deve ser feito para assentar a população local, pois seria absurdo transferir habitantes de outras regiões, rompendo todos os laços de vida, as suas origens.
Em relação à participação dos estados no processo de reforma agrária, com delegação de competência aos governadores para a despropriação de terras, sempre pensamos que era uma boa iniciativa, desde que a União outorgue apenas a administração da mesma somente aos Estados cujos governos estão efetivamente comprometidos com a sua realização e mantenha a sua supervisão.
Quanto à participação dos municípios no processo de reforma agrária a descentralização de recursos e atribuições para apoio aos assentamentos existentes e futuros, resultaria na redução substancial dos custos das obras e serviços de infraestrutura, tanto de caráter econômico, quanto social (estradas vicinais, escolas, postos de saúde, etc).
Entendemos que a reforma agrária é, além de um imperativo de justiça social, um imperativo para a modernização e a pacificação da sociedade brasileira, pois é uma base fecunda de geração de empregos permanentes e a baixo custo. O custo médio total do assentamento de uma família é calculado em RS 16.000,00. Como disse Celso Furtado, “a reforma estrutural agrária (…) criará empregos de baixa capitalização. Aliás, o milagre brasileiro é que se pode colocar gente no campo com uma capitalização muito baixa, porque existe abundância de terra.”(15)
É significativa a renda obtida pelos assentamentos: ‘ renda média gerada por uma família de beneficiários da reforma agrária ao nível nacional foi de 3,70 salários-mínimos por mês, sendo que na Região Norte foi de 4,18 salários-mínimos mensais, no Nordeste de 2,33; no Centro-Oeste de 3,85; no Sudeste de 4,13 e no Sul, com a renda mais alta, foi de 5,63 salários-mínimos ao mês.(16)
No Brasil, onde 20 milhões de trabalhadores recebem menos da metade de um salário-mínimo, tais resultados são verdadeiramente espetaculares, pois permitem que os trabalhadores rurais possam viver com dignidade.
Todos os países que lograram um amplo desenvolvimento de suas forças produtivas realizaram, previamente, uma reforma agrária. Foi assim na França, nos Estados Unidos – onde a colonização se deu de forma a estimular a agricultura de base familiar – no Japão, na Coreia do Sul, Taiwan, etc. Em todos os países, como na ex-URSS, e nas nações situadas no Leste Europeu, bem como na China, Vietnã e Coreia do Norte, realizaram-se reformas agrárias, que terminaram com a fome nos campos e nas cidades, apesar de que as guerras revolucionárias e as invasões imperialistas os tenham deixado som escombros.
Na América Latina, com a exceção do Chile, onde a reforma agrária começou no governo de Eduardo Frei e foi continuada no de Salvador Allende, todas as experiências de reforma agraria ocorreram no bojo de um processo revolucionário e se aprofundaram após o seu triunfo. Foi assim no caso de Cuba, onde, em 1963, é promulgada a Lei da II da Reforma Agrária, quando fazendas foram agrupadas, através de plebiscito, dando origem a grandes complexos estatais e cooperativas de produção agropecuária. Também no México a reforma agrária é um produto da revolução, que se inicia em 1910, porém o seu auge é alcançado durante o governo de Lázaro Cárdenas, entre 1934-1940. Na Bolívia e na Nicarágua a reforma também é produto da revolução boliviana, no final da década dos cinquenta, e da revolução sandinista em 1979. No Peru, a situação é sui generis, pois a mesma se realiza a partir do golpe militar, comandada pelo general nacionalista Velasco Alvarado.
Na Guatemala e em El Salvador nenhuma reforma agrária foi realizada, mas em ambos países, a guerra civil ceifou milhares de vidas e os problemas ainda estão longe de serem solucionados.
No Brasil, não se tem uma tradição pacífica no campo: desde os massacres dos povos indígenas, passando pelo genocídio da República de Palmares, de Canudos e do Contestado, pelos cangaços – que não deixaram de representar a ira descontrolada e descabida de homens da terra contra o status quo oligárquico e repressivo – pelas Ligas Camponesas até as chacinas de nossos dias, a história é repleta de violências e, até agora, só foram feitos arremedos de reforma agrária.
Os sem-terra não são violentos, querem apenas terra para trabalhar, mas… poderão vir a sê-lo. Como disse um de seus líderes: “não estamos invadindo nada, estamos ocupando terras ociosas.”
A situação é alarmante. Já começa a configurar-se um êxodo urbano, vale dizer, a busca de suas origens por parte dos trabalhadores excluídos de suas profissões, de seus habitats originais. Estão cobertos de razão quando reivindicam o que lhes é de direito: um pedaço de chão para produzir, criar seus filhos, poderem ser felizes. Caso não seja implantada um profunda reforma agrária que questione de fato a coexistência de latifúndio improdutivo, minifúndio, grilagem e trabalhadores sem-terra, em um país de dimensões subcontinentais, nada poderá conter a revolta dos deserdados da terra.
Brasília, janeiro de 1997.
Notas de rodapé:
(1) Janaína Amado, Prefácio ao Livro de Sebastião de Barros Abreu, Trombas, A Guerrilha de Zé Porfírio, Editora Goethe, Brasília, 1985, pags. 9 e 10. (retornar ao texto)
(2) Veja-se Moniz Bandeira, Brizola e o Trabalhismo, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979. (retornar ao texto)
(3) Discurso proferido pelo Deputado Almino Afonso, como representante do PSDB, na Sessão Solene do Congresso Nacional, em 5 de dezembro de 1996, em homenagem ao Presidente João Goulart. (retornar ao texto)
(4) Aqui vale a pena, em um breve parênteses, tecer considerações sobre o Imposto territorial Rural – ITR, até nossos dias. Este sempre foi sonegado, por mais de 80% dos latifundiários, como mostra a tabela abaixo:
TABELA DE SONEGAÇÃO DO ITR EM 1994
Fonte: Receita Federal
Como fica patente na tabela, são os pequenos proprietários os que menos sonegam o imposto e, entre os grandes, onde incide a maior evasão. A Lei n° 9.393, de 12 de dezembro de 1996, que dispõe sobre o ITR, segundo autoridades governamentais, visa estimular a reforma agraria pela via tributária, pois os grandes latifúndios improdutivos terão de pagar até 20% sobre o Valor da Terra Nua – VTR. Os especialistas calculam que a arrecadação anual dos impostos poderá ascender aproximadamente a um bilhão e quinhentos mil reais, ao invés da receita de R$ 320.525.880 contemplada no Orçamento de 1996.
Contudo, há de se ter em conta que, segundo dispositivo constitucional, cinquenta por cento do ITR deve ser alocado aos municípios o que representa uma significativa restrição de receita federal. Além disso, pela mesma Lei, o ITR passa a ser declaratório, extinguindo-se o valor mínimo até então vigente, facultando ao proprietário o direito de reajustá-lo, mediante declaração, caso o imóvel seja objeto de processo desapropriatório. É usual, em situações de desapropriação, o dono da propriedade improvisar na área uma série de “maquiagens”, visando a revisão ou anulação da sentença judicial.
Tais considerações reafirmam o juízo de que a forte taxação das terras improdutivas não deve ser considerada mais do que um instrumento complementar de arrecadação de terras para a reforma agraria cuja porção fundamental tem de ser adquirida pela desapropriação por interesse social mediante pagamento de Títulos da Dívida Agrária – TDAS, como faculta a Lei. (retornar ao texto)
(5) Roberto Campos, Lanterna na Popa, Editora Top Books, Rio de Janeiro, 1994, pags. 694 a 696. (retornar ao texto)
(6) Veja-se Leonardo Boff, O Caminhar da Igreja com os Oprimidos; do Vale de Lágrimas à Terra Prometida, Rio de Janeiro, Condecri, 1980. (retornar ao texto)
(7) INCRA – Estatísticas Cadastrais Anuais. 1992. (retornar ao texto)
(8) INCRA, agosto de 1996. (retornar ao texto)
(9) Antônio Delfim Netto, “Os Deserdados”, Correio Braziliense, 04/02/96. (retornar ao texto)
(10) Herbert Levy, “Difíceis Dilemas das Finanças Públicas”, Gazeta Mercantil, 25/10/96. (retornar ao texto)
(11) Atenção, ano 2, °6, São Paulo, pag. 10. (retornar ao texto)
(12) Paulo Sérgio Pinheiro, “Massacre: Missão Cumprida”, Folha de S. Paulo, 25/04/96. (retornar ao texto)
(13) Folha de São Paulo, 25/04/96. (retornar ao texto)
(14) O Orçamento da União para 1997 destina para ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA o valor total de R$ 2.597.954.286,00 assim distribuídos:
A rubrica Inversões Financeiras aloca parcela significativa dos recursos do órgão. Segundo análise do economista Eugênio Fraga, Assessor Técnico do PDT na Câmara dos Deputados, a distinção entre Inversões Financeiras e Investimentos é puramente econômica. Enquanto se considera Investimentos aquelas despesas que geram serviços, e em consequência, agregam valor ao Produto Interno Bruto, Inversões Financeiras, ao contrário, são despesas que não geram serviços nem somam valor ao PIB. Ocorre apenas a troca de titularidade de um bem. A compra de um prédio já construído, por exemplo, para abrigar a sede do INCRA seria Inversões Financeiras. Por outro lado, a construção de um prédio com a mesma finalidade seria investimento.
Feita essa observação, vale registrar que do total de R$ 1,9 bilhão destinados a Inversões Financeiras, R$ 733 milhões refere-se a precatórios judiciais e os restantes R$ 1,2 bilhão destinam-se ao programa Organização Agrária, atividade fim do órgão.
Os principais grupos de despesa são:
Como é possível notar, elencados os grupos de despesa, os recursos efetivos para assentamento não são relevantes. (retornar ao texto)
(15) Veja, 8 de janeiro de 1997, São Paulo, p. 11. (retornar ao texto)
(16) Principais Indicadores Sócio-Econômicos dos Assentamentos da Reforma Agrária, FAO/PNUD,Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária, dezembro de 1992. (retornar ao texto)