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A situação política e moral dos judeus, nos dois séculos anteriores, fora imensamente trágica. Quando voltam do exílio babilônico, os judeus ainda vivem em comunidades religiosas e possuem uma Constituição teocrática. Mas, politicamente, a Palestina estava submetida ao Império persa. Mais tarde, tornou-se uma possessão do Império macedônio.
Após a desagregação deste Império, a Palestina cai sob o domínio dos selêucidas, que procuram, aos poucos, helenizar o país. Quando, porém, Antioco Epifânio, no ano 168, tenta destruir o culto de Jahvé, os elementos religiosos do país revoltam-se e, em combates encarniçados, vencem os selêucidas e reconquistam a independência política, sob a direção de Judas Macabeu. Surgem, então, três correntes entre os judeus.
O judaísmo reforça-se consideravelmente, em virtude desta rápida modificação na situação política dos judeus, que, de posição tão baixa, passavam bruscamente à condição de povo independente.
É quando surge o livro de Daniel, do qual prediz o aniquilamento das potências imperialistas e a instauração do reino de Deus, sob o domínio dos judeus:
"As quatro feras perderam o seu domínio. E eu vi o filho do homem que vinha nas nuvens do céu e que veio até a origem dos dias, e lhe deu o poder, a honra e o reinado, até o fim dos tempos... O povo santo dominará, e o seu reinado será um reinado eterno”.
É necessário implantar um reinado de Deus, sob o domínio judeu, em lugar do Império das rapaces feras imperialistas.
Tal era o ideal dos judeus.
O país estava sob o governo dos macabeus. Surgem então três correntes entre os judeus: os saduceus, os fariseus e os eseus. Os saduceus eram descendentes da nobreza, dos sacerdotes e dos meios cultos, partidários do helenismo. Não acreditavam que os judeus fossem um povo predestinado, com uma missão especial na Terra. Eram políticos realistas que consideravam a ideia dos judeus dominarem o mundo como um sonho irrealizável e ridículo. Formavam, entretanto, uma minoria insignificante. Os fariseus recrutavam-se entre as camadas médias. Estavam organizados em partido legal, estritamente judeu. Os judeus devem ser um povo santo, um povo de sacerdotes — diziam eles. O seu reinado será o de Deus. Nos fariseus, os fatores nacionais e religiosos estavam intimamente entrelaçados. Por último, os eseus formavam uma pequena minoria extremista, que não se orientava por nenhum princípio nacional ou religioso. Viviam em comunidade e esforçavam-se para constituir uma Humanidade puramente moral, um verdadeiro reino de Deus sem a menor sujeição ao Estado, sem leis civis ou religiosas, tendo como único objetivo o bem estar da coletividade. Mantinham-se escrupulosamente à margem das lutas entre os partidos. Repudiavam todas as tendências de domínio, e não se intrometiam nas discussões entre saduceus e fariseus.
A Judeia conservou-se independente, durante mais ou menos um século. Sua economia desenvolveu-se. A agricultura e a indústria progrediram. Os próprios intelectuais julgavam um dever trabalhar para a própria subsistência, dedicando-se a uma atividade manual qualquer. No país inteiro reinava o bem estar, a piedade. A vida era regida por princípios morais de caráter nitidamente pequeno-burguês. Mas este estado de coisas durou pouco. Pompeu conquistou a Síria e invadiu a Palestina. Aproveitando-se das disputas entre os sacerdotes que agitavam Jerusalém, as tropas romanas assaltaram a cidade. O país perdeu a independência. Pompeu entrou no Tabernáculo, ante os judeus assombrados. Os procuradores romanos exigiram da População pesados tributos. Mas os judeus logo reagiram, por meio da resistência passiva, ou de levantes isolados. Nesse momento, o antigo desejo do advento do reinado de Deus ressurge mais ardente que nunca. Não eram verdadeiros os vaticínios dos profetas? Não se orientava o judaísmo escrupulosamente pelos mandamentos de Deus? Fora derramado inutilmente o sangue dos mártires judeus? Não! O Messias, o rei designado por Deus, ia aparecer dentro em breve e reinar sobre o mundo. Os agitadores populares entraram em cena. Surgiram novos partidos. Novamente a nação ficou dividida em clãs opostos.
A Judeia tornou-se um imenso cadinho, onde se achavam em ebulição as mais ardentes paixões nacionais e sociais.
Foi nesta atmosfera incandescente que Jesus entrou no cenário da História. Descendia de uma família de artesãos de Nazaré, localidade situada ao norte da Palestina. Jesus frequentou a escola dos judeus, leu os profetas, ouviu as discussões na sinagoga, e, todos os anos, durante a Páscoa, ia em peregrinação a Jerusalém, centro da vida cultural judaica.
Desde logo, mostra os pendores de seu espírito. Muito jovem ainda, já toma parte nas lutas ardentes do povo. Admira Isaías, e frequentemente lê a notável passagem em que ele diz:
"Trago comigo o espírito de Deus, que me enviou para anunciar a boa nova aos pobres, para aliviar os corações amargurados, consolar os prisioneiros, dar vista aos cegos, libertar os oprimidos e pregar a redenção de Jahvé”.
Eis o prólogo. E já encerra toda a vida de Jesus.
Jesus rapidamente atraiu a atenção dos contemporâneos. A indiferença desaparecia diante da sua personalidade. Todos que dele se aproximavam sentiam-se atraídos. Jesus logo cria em torno de si uma atmosfera de simpatia, admiração e respeito. Muitos desejavam que se tornasse o futuro chefe da luta de emancipação contra os romanos, e procuraram conquistá-lo para a insurreição que se preparava. Para que o agraciara Deus com aqueles dons sobrenaturais? Poderia haver mais nobre missão que a direção da luta para a libertação de seu povo do jugo estrangeiro?
Inicialmente, Jesus, segundo todas as aparências, esteve disposto a atender a essas solicitações. Grande, numero de homens notáveis deixavam empolgar-se pela chama ardente de entusiasmo das paixões nacionais que crepitavam e aderiam à luta libertadora contra Roma. A célebre frase de Jesus:
"Eu não sou um emissário de Paz, mas de Guerra!”,
data certamente dessa época, porque nada a justifica no período em que o Evangelho de Mateus a situa. Mas, pouco a pouco, Jesus adotou ideias completamente diferentes. Não será mais pela espada, nem pela violência, mas pela ação pacífica do espírito, pelo sacrifício e pela purificação interior que a Judeia, da mesma forma que Roma, poderá libertar-se do mal. É esta a concepção que domina toda a teologia católica até muito mais tarde, até a Idade Média.
O plano de insurreição foi condenado por Jesus como uma tentação do diabo. Durante quarenta dias e quarenta noites, Jesus lutou contra ele no deserto.
Na hipótese de vencermos os romanos, que ganharemos com isso? A Humanidade lucrará alguma coisa se substituirmos o domínio de Roma pelo domínio dos fariseus, com suas leis e seus preceitos religiosos? Não! Porque está escrito: "Tu só deves adorar a Deus”. Os profetas já anunciaram aos homens o que Deus exige:
"Justiça social, redenção dos pobres e dos oprimidos, condenação e desprezo das riquezas, supressão de toda a violência, amor à Humanidade, a uma Humanidade que encerre em si, nos menores atos da vida, o reinado de Deus”,
Daí por diante, os patriotas e revolucionários-nacionais afastaram-se de Jesus. Mas o povo foi-lhe ao encontro. O número dos seus partidários crescia sem cessar. Quando a multidão se reuniu em torno dele, Jesus subiu à montanha e falou:
"Bem-aventurados os pobres, os oprimidos, os homens de voa vontade, os mártires da justiça! Bem aventurados os que não combatem os que não resistem ao mal, mas pagam o mal com o bem! Bem-aventurados os que não têm nem leis, nem tribunais, mas amam os seus inimigos e oram em favor de seus perseguidores! Porque os homens não têm mais do que um único Pai, que está no Céu. Que seu reinado se estabeleça e que sua vontade se cumpra! Porque a Força, a Potência e a Magnificência a ele pertencem para toda a Eternidade!”
Jesus dizia ainda:
"As lutas políticas, as insurreições, as guerras, as matanças, as reformas, o exercício do poder e o mais, não poderão ajudar-vos a realizar o ideal dos profetas. O reinado de Deus não corresponde ao domínio dos judeus sobre o mundo nem à observância aos ritos exteriores do culto, nem ao respeito às leis, nem à defesa dos interesses da pátria, porque todas essas coisas são transitórias. O reinado de Deus significa: a renovação de toda a vida na base do amor à Humanidade, da piedade para os fracos e os pecadores, da supressão de todas as diferenças de fortuna, do trabalho em comum de todos para todos. Somente assim os homens poderão libertar-se dos males que os afligem”.
Jesus continua a obra dos profetas. Toda a sua atividade se orienta num sentido claramente antinacional e antirreligioso. Sua doutrina é uma doutrina anarco-comunista, baseada na moral estoica, porém mais espiritualizada, mais rica de conteúdo e mais profunda, graças à influência de fatores inerentes ao desenvolvimento religioso dos judeus. Nos judeus contemporâneos de Jesus, a ideia do pecado e da divindade, o sentimento do temor a Deus e da alegria de Deus são muito mais intensos que os sentimentos equivalentes de um heleno influenciado pela moral estoica. E é justamente isto que explica a coragem com que os judeus sustentaram, heroicamente, durante muitos anos, sangrentas lutas contra o domínio de Roma.
Jesus Cristo foi um revolucionário acima de seu tempo. Ultrapassa o judaísmo. Atravessa as fronteiras nacionais e reduz a pó o edifício religioso tradicional que o seu povo havia erigido à custa de tantos sacrifícios e de tantas angústias. Os judeus, certamente, poderiam ter perdoado Jesus, se ele tivesse colocado a sua popularidade a serviço do movimento de emancipação nacional contra Roma. Os judeus não obtiverem o perdão para Barrabás, que fora condenado a morrer na cruz em virtude da sua atividade revolucionária contra o domínio de Roma? Mas Jesus e os seus partidários estavam, nesse ponto, tão distantes das massas judaicas, que o evangelista Marcos chegou a condenar a atividade patriótica de Barrabás como um "crime”, um incitamento à "matança”. Tanto do ponto de vista religioso como do político-social, Jesus se situava tão distante da civilização judaica como da romana. Eis porque foi condenado e morreu crucificado.
Jesus não deixou um só discípulo com capacidade para prosseguir a sua obra. Não teve tempo para formar homens capazes de substituí-lo, depois da morte, porque exerceu atividade durante um período muito curto. Só alguns anos mais tarde aparece Paulo, que se apresenta como o organizador do Cristianismo. Paulo desconhecia completamente os sentimentos e as aspirações das massas populares de seu país. Era um intelectual fariseu, que sofria terrível tortura moral por seus princípios teológicos e porque não podia cumprir à risca as várias prescrições da lei judaica. O capítulo 1.° da sua Epístola aos romanos mostra claramente e, de maneira emocionante, como Paulo, quando procurava compreender a essência e o valor prático da lei judaica, se sentia torturado por tremendas lutas interiores. É possível também que Paulo tenha sido influenciado pelas concepções estoicas, que afirmavam serem as leis sintomas de depravação do homem e da decadência da vida social primitiva. Paulo, no entanto, assimilou a doutrina de Jesus apenas na medida que um intelectual podia compreendê-la pelo espírito e pela consciência. As tendências da educação que recebera e do seu próprio caráter fizeram que Paulo emprestasse à doutrina de Cristo um caráter dogmático.
Paulo, em virtude de sua personalidade enérgica e da sua fé ilimitada, considerava os elementos anarco-comunistas da doutrina de Jesus como de importância secundária. Teve, por isso, de lutar, durante muito tempo, contra a resistência que lhe foi oposta pelas camadas mais pobres da população. Mas, graças à sua força de vontade, por meio de uma propaganda tenaz, acabou conquistando-as. Paulo vivia de tal modo afastado das questões terrenas e desprezava as instituições humanas a tal ponto, que não compreendia a necessidade de lutar contra elas. O essencial não era a salvação da alma pela fé em Jesus? Desde que os homens vivessem nesta fé, não era indiferente que este ou aquele estivesse no poder terrestre ou que o exercesse desta ou daquela maneira?
Entretanto, nos anos seguintes ao martírio de Jesus, as primeiras comunidades, compostas quase que exclusivamente de judeus proletários, viveram ou de acordo com um sistema comunista ou no espírito do ideal comunista. Havia judeus que se orgulhavam da pobreza. Eram os "ebionistas”, os miseráveis, os portadores da justiça social.
"Não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e a Mamon” — dissera Jesus, a seus discípulos, na sua linguagem simples e concisa.
E, quando eles quiseram servir a Deus, afastaram-se de Mamon. Nas comunidades cristãs vivia-se segundo regras comunistas ou, ao menos, procurava-se atingir esse ideal.
"Todos os que adotavam a fé cristã viviam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam os bens, e repartiam entre si o produto da venda, de acordo com as necessidades de cada qual”. (Atos dos Apóstolos). “A massa de crentes formava um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que os bens eram propriedade particular. Tudo pertencia a todos”.
Ser rico era vergonha. A pobreza era considerada um privilégio divino. Todos pensavam que o culto de Mamon, isto é, o amor às riquezas estava indissoluvelmente ligado ao pecado. Ser pobre, pelo contrário, significava renunciar a todas as alegrias e doçuras da existência.
O aumento progressivo do número de cristãos, o desenvolvimento das comunidades, a vitória da propaganda e das concepções de Paulo, atenuaram progressivamente os elementos comunistas do Cristianismo, que foram substituídos pela caridade. Pouco a pouco, entretanto, surgiram os antagonismos de classe no próprio seio do Cristianismo. Havia cristãos ricos e cristãos pobres, empreiteiros e operários. A antiga fraternidade já não existia mais. Os antagonismos de classe têm a sua expressão teórica no conflito entre a fé e as boas ações. Este conflito manifesta-se na Epístola de Tiago, na qual o autor contesta a doutrina de Paulo, em nome dos ensinamentos de Jesus.
"Para que serve a fé — diz ele — quando não se praticam boas ações? A fé por si mesma pode salvar-nos?”
O autor aponta o orgulho dos ricos, que pretendem receber honras especiais nas assembleias cristãs. Mostra a sua hipocrisia em relação aos cristãos pobres e declara:
"A fé, sem obras, nada vale”.
Lembra aos ricos que os pobres são os eleitos de Deus.
"Eis porque os ricos choram, quando se lembram da miséria que os espera. Vossas riquezas, oh! ricos, entrado em decomposição. Vossas roupas luxuosas ficarão podres e serão devoradas pelos vermes. Vosso ouro e vossa prata serão corroídos pela ferrugem. Porque todos os ricos acumulam tesouros roubando os salários dos operários que lavram os campos. E a queixa dos espoliados chegou aos ouvidos de Deus”.
Mas é preciso evitar cuidadosamente as generalizações precipitadas, porque, no decorrer dos três primeiros seculos, após a morte de Jesus, as ideias comunistas ainda exerciam certa influência no seio das comunidades cristãs. Os homens obedeciam passivamente às leis e às instituições romanas, mas isto não quer dizer que as julgassem justas. Os sacerdotes da Igreja, conservaram-se, ao menos em teoria, neste período, fiéis aos ensinamentos antinacionais, comunistas, de Jesus. Condenavam a propriedade privada, a opressão estatal, o serviço militar e o patriotismo.
Barnabás de Chipre escreve nas Epístolas:
"Tu terás tudo em comum com o teu próximo. Tu não deves possuir coisa alguma própria. Porque, se possues em comum o que é eterno, com muito mais razão deves também possuir em comum o que não é eterno!... ”
Justino, o Mártir, diz de seus correligionários:
"Nós, que dantes nos esforçávamos para adquirir a maior quantidade possível de riquezas, daremos agora à comunidade tudo o que possuímos, para que tudo seja repartido com aqueles que necessitam”.
Seu contemporâneo Clemente de Alexandria escreve:
"Todas as coisas são comuns. Elas não existem apenas para serem adquiridas pelos ricos”. "Eu tenho tudo em abundância; por que não devo aproveitar-me disso?” — dizem os ricos. — Este argumento não convém nem aos homens, nem à sociedade... Deus nos deu a possibilidade de usufruir livremente os bens da Terra, mas apenas na medida das nossas necessidades, e ordenou ainda que usufruamos tudo em comum”.
Tertuliano, por sua vez, declara:
"Nós, cristãos, somos irmãos em tudo o que se refere à propriedade que entre vós produz tantos conflitos. Unidos pelos corações e pelas almas, consideramos todas as coisas uma propriedade comum, de todos. Nós dividimos tudo em comum, com exceção de nossas mulheres. Entre vós, pelo contrário, as mulheres são a única coisa que está à disposição de todos... Deus despreza os ricos e protege os pobres. O reinado de Deus foi feito para os pobres e não para os ricos”.
Por outro lado, se admitirmos que a existência da propriedade privada é necessária, devemos limitar a propriedade: cada qual deve possuir apenas o indispensável para viver. Jeronimo declara:
“Todo aquele que possuir mais que o necessário para viver deve dar aos demais o excedente e considerar-se devedor de uma quantia igual à que deu”.
João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, pensa do mesmo modo:
“Ninguém pode enriquecer honestamente. Mas, poderão objetar-me, se um homem herdar riquezas de seu pai? Pois bem: ele herdará riquezas adquiridas desonestamente”.
Crisóstomo, aliás, estava convencido de que o comunismo poderia ser implantado em qualquer momento, desde que os homens realmente o desejassem.
“Porque — dizia ele — se o comunismo é impossível, como se explica que as primeiras comunidades cristãs tenham podido implantá-lo? O que nossos antepassados conseguiram, não seremos nós também capazes de o fazer?”
É interessante notar que os sacerdotes da Igreja defendiam os princípios do direito natural. Santo Ambrósio, por exemplo, escreve:
"O direito comunista foi criado pela natureza. O direito da propriedade privada foi instituído pela violência”.
Cirilo de Alexandria expressa-se de forma ainda mais categórica:
"A natureza e Deus não conhecem nenhuma diferença social. As diferenças sociais foram criadas pela cobiça dos homens”.
Santo Agostinho diz a mesma coisa:
“Não é em virtude do direito divino, mas em virtude do direito de guerra que um homem pode dizer: esta casa é minha, esta vila é minha, este escravo me pertence”. Deduz-se daí que a propriedade privada se apoia unicamente na força do Estado.
As velhas concepções e tradições cristãs contaram se por mais tempo principalmente nas comunidades cristãs do Egito e do norte da África. Naquela época, Alexandria era o principal centro da ciência cristã. Os grandes sacerdotes da Igreja, como Clemente, Orígenes e Tertuliano, surgem, ou em Alexandria, ou em Cartago. Certamente, foi ali que nasceu o “gnosticismo”, que considerava a religião cristã como uma simples filosofia (gnosis, em grego, significa: o conhecimento). O gnosticismo, embora conservasse uma moral ascética e desprezasse as riquezas, não aceitava os principais dogmas da fé cristã.
O gnóstico Carpocrata e seu filho Epifânio, homens de vasta cultura, viveram em Alexandria, onde fundaram uma seita cristã que foi denominada a seita dos carpocráticos em virtude do nome do fundador. Esta seita era inteiramente comunista e herética. Segundo Clemente de Alexandria, os carpocráticos explicavam o seu comunismo do seguinte modo:
A comunidade e a igualdade são as bases da justiça de Deus. No Universo, tudo é comum. O Céu estende-se igualmente em todas as direções e cobre a Terra do mesmo modo. A luz banha igualmente todos os seres. A natureza proporciona seus benefícios a todos os organismos vivos. O próprio Deus deu tudo a todos. Só depois da queda dos anjos inferiores é que surgiram desigualdades entre os homens. Só neste momento é que a propriedade coletiva cede lugar à propriedade privada e às leis destinadas a protegê-la. Do mesmo modo, a principio, as relações sexuais eram inteiramente livres. Só mais tarde surgiu a regulamentação da vida sexual e, com ela, a interdição do adultério. O próprio Paulo afirmou:
“Foi pela lei que eu reconheci o pecado”.
Os carpocráticos interpretavam esta frase da maneira seguinte: As leis só surgem quando a sociedade se divide em vários grupos antagônicos. Estas leis foram criadas para denunciar como pecados todos os atentados praticados contra a propriedade privada. Jesus então desceu à Terra para reparar o mal causado pelos anjos decaídos. Fez novamente surgir sobre a Terra o espírito da comunidade, que Deus criara para todo o Universo, e tornou todas as leis inúteis.
Fieis às suas teorias, os carpocráticos viviam em comunidade absoluta, mesmo no domínio das relações sexuais. Sua seita fez prosélitos até em Roma.
Durante os três primeiros séculos da nova era, entre os cristãos estava muito difundida a crença de que Jesus voltaria dentro em breve à Terra para nela instaurar o reino de Deus. Este reino de Deus era concebido de um modo bastante material, ou seja, como a volta dos homens à Idade de Ouro, ao comunismo primitivo, ao regime de igualdade completa entre todos os homens, no qual a natureza, liberta da maldição do pecado original e do jugo cruel de Júpiter, de novo proporcionaria com liberdade todos os seus benefícios aos homens. Quem já leu o que dissemos atrás, compreende logo que as fontes desta crença podem ser facilmente encontradas nos profetas judeus, em Hesíodo ou em Virgílio. Os profetas haviam dito que os judeus, depois de se purificarem pelo sofrimento, pela opressão e pelo arrependimento, seriam chamados para dominarem o mundo, sob a direção de Jahvé. Este domínio seria a instauração da justiça social, da paz eterna na sociedade e na natureza e o advento da felicidade perpétua para todos os seres vivos. A Revelação de S. João, escrita depois que Nero perseguiu os cristãos, dá-lhes esta crença. Aí se lê que Deus acorrentará o diabo (isto é, as forças naturais) e o lançará ao fundo de um abismo pelo espaço de mil anos. Depois disso, os mártires ressuscitarão e governarão com Cristo o reino milenar. Eis porque esta crença foi chamada o “quiliastismo” (chilioi, em grego, significa mil). Os cristãos gregos e romanos ligaram o quiliastismo à ideia da volta da Idade de Ouro, como Hesíodo e Virgílio a descreveram. Não é de estranhar, portanto, que os homens, na época, concebessem o reino de Deus como um período de bem estar material e intelectual, como uma sociedade inteiramente comunista, na qual os cristãos, puros como os primeiros homens, teriam, afinal, a recompensa de todos os seus sofrimentos e de todos os seus infortúnios. As massas conservaram-se fieis à crença do advento deste reinado milenar, representando-o como um estado de coisas em que os homens teriam todas as vantagens possíveis e imagináveis. Certos sacerdotes da igreja tais como Irênio, bispo de Lião, e Latâncio, consideravam as descrições do reinado de Deus como verdades dignas de crédito.
Mas a crença quiliástica a pouco e pouco enfraqueceu, Por outro lado, os teólogos esforçaram-se para eliminar tudo o que nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos pudesse dar margem a interpretações comunistas.
No seculo IV, o Cristianismo já se tornara uma religião conservadora. Os elementos comunistas do Cristianismo refugiaram-se nos claustros ou foram perseguidos como hereges. Mas as tendências comunistas e quiliásticas vão ressurgir mais tarde em todos os movimentos da Idade Média e dos Tempos Modernos, particularmente entre os anabatistas e na Revolução inglesa.
O Cristianismo era, entretanto, a única organização exequível no Império romano. A partir do século III, os imperadores de Roma começaram a compreender-lhe claramente a força, porém não observaram que ele sofrera uma profunda transformação interna; não compreenderam que já não era mais um movimento social-revolucionário como por ocasião de seu aparecimento, e sim uma poderosa força conservadora. Por isso, tentaram, por várias vezes, destruí-lo pela violência. Mas logo, compreendendo melhor as coisas, abandonaram esta tática e concederam ao Cristianismo direitos iguais aos de qualquer outra religião (313). No final do século IV, o Cristianismo torna-se a religião do Estado. Mas ele só triunfa porque se adapta às instituições econômicas e políticas do Império romano. Nesse momento, o Cristianismo não prega mais um ideal comunista. Limita-se apenas a discutir os dogmas e os artigos de fé. As massas ficaram silenciosas. Doravante só falam os teólogos.
A decadência cultural do Império romano processa-se com a força de uma lei inexorável. A feudalização da propriedade agrária, a fixação do pequeno agricultor ao seu pedaço de terra, a organização em corporações do artesanato das cidades, foram em parte as causas, em parte os efeitos, da paralisação e da decadência da vida econômica. O agravamento das condições de vida da população rural impedia que as massas populares das cidades emigrassem para os campos. Aconteceu justamente o contrário: à medida que a população rural vai caindo sob o jugo da servidão, verifica-se um êxodo dos campos e o consequente aumento da população urbana. Mas nas cidades havia possibilidades de trabalho relativamente reduzidas.
A redução da população e a escassez de meios de subsistência tiveram como resultado a diminuição da população. Isto acontece precisamente no momento em que as tribos bárbaras — godos, alemães, vândalos, burgondos e francos — começam a exercer uma pressão cada vez maior sobre as suas fronteiras. O Império necessitava de soldados. A terra exigia agricultores. E essas duas necessidades não podiam ser satisfeitas.
A propriedade rural acabou vencendo. Em consequência dessa vitória, a defesa do país ficou prejudicada. Os germanos, os hunos, os avares e outros povos bárbaros conseguiram, assim, penetrar na Itália e apoderarem-se de Roma. No fim do seculo III e no começo do IV, o imperador soldado Deocleciano tentou energicamente reorganizar o país. Deocleciano transformou o Império romano numa autocracia militar, obrigou a população a agrupar-se em castas, nas quais as profissões se transmitiam como herança de pais a filhos, regulamentou minunciosamente a vida dos cidadãos, etc. Mas o Império estava tão doente que não podia mais ser curado. A vitória da Igreja romana verifica-se justamente no momento em que o Império agoniza. No fim do século IV, o Império divide-se em duas partes: o Império romano do ocidente e o Império romano do oriente. O primeiro não pôde resistir aos assaltos dos germanos e sucumbiu. O segundo continuou ainda a vegetar com o nome de Império bizantino.
Nos capítulos precedentes, examinamos as diferentes fases do Império romano, caracterizando-as como fases do mundo antigo. Dissemos que este Império agonizava, vítima de um mal incurável. Mas não estabelecemos ainda a causa profunda da moléstia que acabaria aniquilando este poderoso organismo político. Nem as tribos germânicas, nem os hunos, do ponto de vista numérico ou do de organização, eram superiores ao Império romano. Só venceram porque o Império romano estava gravemente enfermo e sem meios para recuperar a saúde. Qual foi, pois, a verdadeira causa que determinou a dissolução do Império romano, e, com ele, a do mundo antigo?
Ei-la: o Império romano não mais podia desenvolver as forças produtivas, nem aumentar a produção, nem satisfazer as necessidades materiais de sua numerosa população. Se Roma ainda fosse um Estado baseado numa numerosa população camponesa, ou tivesse conseguido desenvolver, progressivamente, ao lado da grande produção rural, uma vida industrial, poderia fornecer à população meios de subsistência em quantidade necessária. Teria, assim, aumentado continuamente a população, podendo, portanto, dispor de tropas em quantidade suficiente e providas dos meios técnicos necessários para uma defesa eficaz das fronteiras do Império.
Ora, Roma não só ficou encerrada nas formas de produção primitivas, como ainda o desenvolvimento da grande propriedade rural fez desaparecer o camponês que era toda a sua força. Disto resultou uma redução dos meios de vida, assim como uma diminuição constante da população. A ditadura de Deocleciano, seu sistema de regulamentação minuciosa da vida do país, não só não podiam remediar o mal, como, pelo contrário, o agravaram, reduzindo a base, já por si demasiadamente restrita, sobre a qual repousava toda a vida do Império.
Mas, por que motivo Roma ficou limitada às primitivas formas de produção? Porque toda a produção estava baseada no trabalho servil: escravidão, e, em Seguida, servidão, que imprimiram ao trabalho produtivo o estigma da infâmia. As maiores inteligências e os artistas mais bem dotados afastaram-se dos trabalhos produtivos, visto julgarem-nos indignos de homens livres. Nestas condições, Roma não podia realizar qualquer progresso técnico. Quando os meios de subsistente faltavam, não se procurava criar novos métodos de trabalho, nem inventar novos instrumentos de trabalho ou melhorar os antigos. Apelava-se apenas para a violência, para a guerra e para a pilhagem. Depois que Roma conquistou e saqueou todo o mundo antigo, depois que devorou as riquezas tomadas ao inimigo, a base material do Império restringiu-se a tal ponto, que já não podia mais suportá-lo. Então, para destroçar o último grande Império do mundo antigo, bastaram as arremetidas dos povos bárbaros. Sobre as ruínas do Império romano, os germanos edificaram novas organizações políticas.
Inclusão | 04/06/2015 |