História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo I - O fim da Idade Média


1. O declínio do Papado e do Império

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O Império romano desmoronou-se em consequência da decomposição econômica da sociedade sobre a qual repousava, O fim da Idade Média, pelo contrário, foi determinado pelo desabrochar de novas forças econômicas. Os sintomas da decomposição já eram bem visíveis no final do século XIV. As duas grandes potências mundiais da época — o Império e o Papado – cuja rivalidade enchera toda a Idade Média, foram abaladas até os alicerces pelo aparecimento de uma nova potência no cenário histórico: o Estado nacional e os principados soberanos. No seio desses dois organismos surgiram novos germes. Tais germes, por sua vez, engendraram outros organismos econômicos e culturais menores, porém mais sólidos e que começaram a viver independentes. Eles também procuraram, através de esforços cada vez maiores, destacar-se dos organismos centrais. Estes novos centros da vida econômica e cultural eram as cidades. Para melhor resistir à pressão das duas grandes potências mundiais – o Império e o Papado — as cidades, a princípio, aliaram-se aos príncipes e aos reis. Ao contrário do que aconteceu na Itália, onde entraram em conflito, ora com o Papado, ora com o Império, na França, na Inglaterra e na Alemanha as cidades viram no Papado o principal inimigo. No decorrer dessas lutas pela independência, a literatura dos diferentes países abandonou a língua latina – até aquele momento a língua universal, — e elaborou uma língua nacional própria. Tanto na Europa central, como na ocidental, todos os grandes criadores de idiomas nacionais foram antipapistas. Foi também nessa época que os estadistas começavam a pôr em prática uma politica nacional inspirada unicamente nos interesses dos seus próprios países. Os dirigentes das várias igrejas nacionais lançaram as bases da Reforma, principalmente na Inglaterra, na Boêmia e na Alemanha. Na França, o calvinismo desempenhou papel semelhante. É preciso ainda notar, a esse respeito, que foi um rei de França quem aprisionou o chefe da Igreja e que, pela primeira vez, submeteu o clero a um poder laico. No período que medeia entre os séculos XIV e XVIII, o papa teve, contra si, não só Estados nacionais, como também os Concílios eclesiásticos, que pretendiam submetê-lo ao seu controle.

Pior ainda foi a sorte reservada ao Império. Pode dizer-se que morreu de uma verdadeira inflação imperialista. Teoricamente, a sua ação estendia-se, ainda, a territórios imensos, mas, na realidade, já não possuía a menor parcela de autoridade política. Isso, aliás, era inevitável, porque o Império se esquecia por completo dos interesses nacionais dos países dominados. Inteiramente entregue a sonhos de hegemonia mundial, não prestava a menor atenção à nova economia, ao capitalismo nascente, da Alemanha do sul. Parecia até ignorar-lhe a existência, a não ser quando necessitava de grandes capitais, que aplicava unicamente em empresas estrangeiras. Os mais enérgicos elementos da nação, os dirigentes da nova economia urbana procuravam dilatar a esfera das próprias relações comerciais; mas eram obrigados a limitar a sua atividade ao reduzido campo das empresas municipais. Quando, afinal, o espírito nacional neles despertou, criaram ligas entre as cidades e passaram a apoiar o imperador nas suas lutas contra o papa. Mas a política do Império, dirigida unicamente no sentido da hegemonia mundial, dispersava a energia das nações e, por isso, não permitia a menor concentração política. Depois da morte de Luís da Baviera (1347), o Império decaiu progressivamente, tornando-se apenas uma sombra do que fora. Desapareceu completamente dos horizontes nacionais, transferindo sua sede para os confins orientais de seu território, para a Áustria, Viena e Praga.

Chegou, assim, o momento dos príncipes soberanos satisfazerem suas antigas aspirações. Começaram por reforçar a própria independência, com a fragmentação territorial da Alemanha, destinada a durar tantos séculos, justamente porque, nesse momento, o Estado nacional francês, no Ocidente, se centralizava cada vez mais, formava um exército permanente, e orientava toda a sua política para a conservação dessa divisão da Alemanha. Foi nessa situação que irromperam os graves conflitos internos e as lutas entre as classes, inevitáveis em todos os momentos em que a sociedade está prestes a passar de uma a outra etapa do seu desenvolvimento.

2. Antagonismos sociais

O aparecimento constante de novas cidades, o aumento crescente da população e o desenvolvimento do comércio e da indústria deram origem a violentos antagonismos entre a burguesia e a aristocracia feudal. A nova forma de produção, criada pelas ghildes(1) e pelas corporações artesãs, era intoleravelmente entravada pelo sistema feudal. Não se podia desenvolver dentro dos limites da velha sociedade. A nova economia trouxera consigo a necessidade da livre locomoção popular. As novas relações econômicas reclamavam a mais ampla liberdade de comércio, o direito de cada qual se dedicar ao ofício que lhe parecesse melhor e de alugar a sua força de trabalho ao proprietário de qualquer empresa de produção. Ora, o sistema feudal baseava-se justamente nas restrições, na permuta periódica das terras, ou na proteção militar, a troco de determinados tributos. Obrigava a maior parte da população – os camponeses — a viver eternamente fixada às terras dos senhores medievais. Esta parte da população não possuía, portanto, a menor liberdade de locomoção. Era, além disso, obrigada a pagar tão pesados tributos aos senhores, que só com imensa dificuldade podia adquirir os produtos das cidades. Desse modo, o sistema feudal não só impedia o afluxo de trabalhadores para as cidades, como ainda restringia consideravelmente a procura de produtos manufaturados. Toda a população interessada no desenvolvimento da economia urbana estava naturalmente disposta a lutar contra o sistema feudal.

Mas esse estado de coisas não prejudicava apenas o trabalho e o consumo. A própria produção reclamava uma transformação profunda do regime existente porque todas as matérias primas necessárias às profissões urbanas estavam nas mãos dos senhores feudais, proprietários das florestas, isto é, da madeira e das forragens, assim como do gado, isto é, do couro e da lã. O linho e o cânhamo, indispensáveis à atividade têxtil artesã, eram também cultivados nas terras da nobreza. Os senhores feudais, além disso, exigiam o pagamento de impostos pelo trânsito de matérias primas pelos caminhos e pontes dentro de suas propriedades. Tinha, desse modo, não só a possibilidade de dificultar os transportes, como de interromper completamente todas as comunicações. Este monopólio feudal da força de trabalho, das matérias primas e das vias de comunicação originou, rapidamente, um antagonismo profundo entre a burguesia das cidades e a classe feudal. As cidades eram, evidentemente, partidárias da supressão do regime feudal, que se baseava na fixação dos camponeses á terra, isto é, na servidão. Nas cidades, refugiavam-se os camponeses foragidos. Mais ainda: as cidades eram um mercado consumidor de produtos agrícolas e graças ao qual a população camponesa podia obter os recursos necessários para a compra de sua própria liberdade, desde que os nobres se dispusessem a trocá-la por dinheiro. Ora, os nobres estavam cada vez mais necessitados de dinheiro para manter suas forças armadas, seu luxo e suas viagens. Estas despesas, aliás, haviam aumentado consideravelmente, depois que os nobres, nas cruzadas, conheceram o mundo, seus prazeres e seus encantos.

Parecia, pois, que os camponeses podiam esperar melhores dias. Mas, na realidade, essas circunstâncias, aparentemente favoráveis, mais lhe agravaram a situação material e social. Necessitando, cada vez, de mais dinheiro, a nobreza passou a explorar, mais intensamente ainda, as suas fontes habituais de renda. Redobrou a pressão sobre os servos, obrigando-os a pagar maiores tributos. Apoderou-se dos bens das comunas e reclamou a posse exclusiva das florestas, dos rios, das pastagens e dos campos que, desde os mais remotos tempos, eram considerados bens coletivos da comunidade. Desse modo, a crescente população rural em pouco tempo ficou sem nenhum meio de subsistência. As constantes reduções da superfície cultivada não conseguiram impedir que grande número de camponeses ficassem sem terras.

No campo, esta situação provocou uma progressiva fermentação que, a partir do século XIV, se estendeu a toda a Europa ocidental e central, e adquiriu, de pouco em pouco, feições revolucionárias. Os camponeses começaram a reclamar a restauração da comunidade rural e a volta à primitiva democracia aldeã.

Tal situação foi agravada pelos conflitos que, nas próprias cidades, surgiram entre as diferentes camadas da população. A agricultura dera origem à aldeia. O comércio e a indústria construíram cidades. Destas, as que se haviam tornado sedes de assembleias administrativas ou eclesiásticas e as situadas no cruzamento das vias de comunicação se transformaram em centros comerciais e industriais. Mas, como as terras em que se achavam pertenciam aos senhores feudais, foram obrigadas a comprar a própria liberdade e o direito de se administrarem a si mesmas. Isto não se fez sem luta. Os mercadores e artesãos gruparam-se nas suas ghildes e corporações. Estas últimas trabalhavam, ora por conta própria, ora pela da clientela, e desempenhavam o papel de cooperativas de consumo na limitação da concorrência e fixação dos preços e salários. Inicialmente, até ao fim da primeira metade do século XIV aproximadamente, as relações entre mestres e companheiros foram, de maneira geral, boas. Já na segunda metade daquele século, começaram a surgir conflitos entre mestres e companheiros, greves mesmo, em certas corporações. Estas rusgas não possuíam ainda, é verdade, o caráter de antagonismos de classe. Os conflitos entre os mestres que haviam enriquecido e os colegas mais pobres eram, indiscutivelmente, muito mais graves. As antigas famílias apoderaram-se pouco a pouco de todos os postos administrativos. Formaram o patriciado, do qual se tirava o conselho, e o corpo legislativo; enquanto isso, as demais famílias iam sendo privadas do direito de votar. Durante o século XIV, houve grandes lutas eleitorais, que terminaram, algumas vezes, pela vitória dos elementos democráticos. Semelhantes embates políticos, pouco a pouco adquiriram caráter social, mesmo porque o desenvolvimento da economia privada cada vez mais dividia a população em duas frações antagônicas: proprietários e não proprietários. Os regulamentos das corporações não conseguiam impedir violentos conflitos sociais. Depois das primeiras revoltas camponesas, do século XIV, em toda parte as camadas mais pobres da população urbana apoiavam as lutas camponesas. Pode dizer-se até que, sob o título geral de “guerras camponesas”, são incluídos todos os levantes das massas laboriosas da época. Tais sublevações receberam a denominação de guerras camponesas, porque a população rural, na maioria das vezes, foi o elemento principal das revoltas. Mais adiante, veremos que o anseio de reformas e reivindicações comunistas, apesar de se manifestarem quase sempre sob Um disfarce religioso, também desempenharam papel apreciável em todos esses movimentos. Aliás, isto acontecia, ora porque os teóricos do movimento faziam parte do clero, ora porque, como particularmente na Reforma, o movimento era dirigido diretamente contra a Igreja.(2)


Notas de rodapé:

(1) GHILDE - associação que agrupava, em certos países da Europa durante a Idade Média, indivíduos com interesses comuns (negociantes, artesãos, artistas) e visava proporcionar assistência e proteção aos seus membros. Fonte Oxford Languages (Nota do MIA) (retornar ao texto)

(2) Explicação superficial e insuficiente. A forma pela qual se manifesta um movimento social qualquer deve ser explicada, não pela personalidade de seus teóricos, nem pela instituição contra a qual o movimento se dirige, mas pela sua própria ideologia. É evidente que, numa época em que a religião era a ideologia dominante, numa época em que a ciência ainda não existia como domínio independente da religião, todo movimento, fosse qual fosse a sua natureza, devia necessariamente manifestar-se sob forma religiosa. (Nota de Marcel Ollivier). (retornar ao texto)

Inclusão: 02/04/2021