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A sociedade tribal patriarcal se formou como consequência da aparição de novos métodos de produção, que asseguravam ao homem os meios de vida. A sociedade feudal teve sua origem no desenvolvimento ulterior de ditos meios de produção.
As condições técnicas do período feudal são: o predomínio da agricultura na produção; o papel subalterno da pecuária e a vida sedentária numa área limitada de terreno.
Quando as tribos nômades de pastores começaram a dedicar-se à agricultura, esta foi para eles um ramo secundário da produção, e a adaptaram às condições da pecuária, pelo que os terrenos cultivados mudavam com frequência. Mas como o aumento da densidade da população, a área de terra utilizável, foi ficando restrita e, por outro lado, a esfera da vida nômade se tornou reduzida com o retrocesso da pecuária devido à insuficiência dos pastos. A agricultura, então, passou a converter-se num importantíssimo elemento na luta pela existência, e a pecuária perdeu em relação com a vida nômade para adaptar-se às condições da agricultura e converter-se, por assim dizer, em uma sua ramificação.
Durante todo o período feudal a técnica agrícola realizou progressos quanto ao melhor aproveitamento das terras, chegando já a utilizar o esterco como adubo.
Os outros ramos das indústrias extrativas (a caça e a mineração) e as indústrias manufatureiras, ao contrário, pouco se desenvolveram, permanecendo num estado quase embrionário. A guerra desempenhou, neste período, um importante papel como meio necessário de proteger a produção em geral e como único processo de dilatar o território da sociedade.
Em geral, a variedade dos produtos era, entretanto, insignificante, devido às condições não serem favoráveis ao desenvolvimento da troca, enquanto que o trabalho suplementar constituía uma parte relativamente grande da produção, porque as condições eram favoráveis ao incremento da exploração.
O incremento da produtividade do trabalho levou a organização social a tal expansão, que a comunidade se viu formada, agora, não por centenas mas por milhares de indivíduos. Ao mesmo tempo, as inovações na técnica agrícola determinaram certa fragmentação da produção dentro da comunidade.
Já no grupo tribal-patriarcal se havia manifestado uma desagregação parcial em famílias, devido, como já dissemos, à impossibilidade do patriarca executar, por si só, todo o trabalho de organização, e à necessidade de delegar uma parte dela a organizadores subalternos. Estes últimos, entretanto gozavam de pouca independência e a produção se desenvolvia na comunidade com um caráter de verdadeira unidade. Mas ao prevalecer a vida agrícola sedentária, a produção em pequenas unidades econômicas (famílias) adquiriu uma importância considerável.
No trabalho agrícola costumam suprir-se os membros de uma só família sem necessidade de reclamar a cooperação de todo o grupo. Assim, pois, a comunidade agrícola dos primórdios do período feudal era formada por numerosos grupos familiares unidos pelo parentesco, cada um dos quais explorava as suas terras por sua própria conta. Por suas dimensões, estes grupos constituíam uma entidade intermediaria entre a antiga tribo patriarcal e a família moderna.
Não obstante, subsistiam ainda entre os grupos familiares muitas relações de produção. Em muitos casos famílias se ajudavam umas às outras na construção de habitações, no desbravamento de terras virgens para empreender novas culturas, etc.
Por outro lado, mesmo o direito de utilizar as terras lavráveis era regulado até certo ponto pela comunidade. De vez em quando era feita uma redistribuição das terras e então cada família recebia um terreno de dimensões iguais às de que possuía anteriormente, mas em uma parte diferente das terras comunais, quer dizer, as dimensões do lote eram modificadas de acordo com as proporções e a força de trabalho da família. Esta redistribuição se efetuava, a princípio anualmente e, depois, com espaços de vários anos. Não obstante, convém fazer constar que, a princípio as terras conquistadas à selva mediante o trabalho individual de uma família, não entravam na redistribuição, admitindo, pois, a comunidade a propriedade das terras comunais obtidas pelo desbravamento de terrenos incultos ou pela conquista. Deve frisar-se que, em certos casos, o trabalho conjunto das diversas famílias não apresentava em toda a parte as mesmas formas nem o mesmo grau de desenvolvimento, dependendo ele das condições naturais e históricas de cada localidade.
Na comunidade agrícola do início da época feudal havia também artesãos, que, entretanto, não se especializavam em seu ofício, mas combinavam-no com a agricultura. Por outro lado, cada família se entregava por sua conta a alguma indústria, sobretudo da fiação, tecelagem e confecção de vestidos. Quando a família não podia atender as suas necessidades com seu próprio esforço, recorria ao artesão. Os primeiros artesãos que apareceram foram os moleiros e os ferreiros. Depois, foram surgindo curtidores, tintureiros, padeiros, carpinteiros, oleiros e até "cirurgiões". Mas estes indivíduos não eram artesãos no sentido mais moderno da palavra. Nas primeiras fases da sua separação da comunidade não trabalhavam por empreitada nem, muito menos, produziam para a venda, mas eram funcionários públicos da comunidade agrícola. A principio os artesãos se dedicavam à agricultura e só em ínfimo grau consagravam algum tempo a seu ofício. Se, em consequência disso; o produto de seu trabalho agrícola fosse insuficiente para seu sustento, a comunidade inteira supria a diferença. Mais tarde os artesãos começaram a deixar de dedicar- se à agricultura e instalaram oficinas próprias, começando então a receber encomendas particulares. Deste modo surgiu a divisão social do trabalho, o germe dos modernos ramos da indústria. No feudalismo, a indústria não se desenvolveu senão muito pouco, mas já desde o começo deste período, alguns artesãos, como os moleiros e os ferreiros, serviram a varias comunidades vizinhas, deste modo criando certos vínculos de produção entre os diferentes agrupamentos.
A expansão da comunidade e a considerável individualização dos grupos familiares fizeram com que pouco a pouco desaparecessem e se esquecessem os laços de parentesco existentes entre as diversas famílias, e a comunidade se manteve daí por diante unida por vínculos puramente econômicos.
Onde a transformação da comunidade agrícola em grupo feudal se produziu de modo mais paulatino e característico, as fases do processo se desenvolveram da seguinte maneira:
A princípio a estrutura da comunidade se caracterizava por uma relativa uniformidade, não sendo a diferença de proporções existente entre as diversas famílias tão acentuada ao ponto de ser possível conferir a uma delas um predomínio econômico sobre as demais. As questões que interessavam à comunidade inteira eram decididas por um conselho de anciãos ou de chefes de família, e, em caso de empreendimentos coletivos, que exigiam um só organizador (como na guerra), o conselho de anciãos escolhia, dentre os seus membros, um chefe, que se encarregava da missão com um caráter transitório, quer dizer, enquanto as circunstâncias o reclamavam. Quando a guerra era sustentada, como sucedia com frequência, não por uma só comunidade, mas por uma aliança de tribos aparentadas, os chefes de cada uma delas escolhiam por sua vez um chefe para todos.
Entretanto, já existiam os germes de desigualdades econômicas. Um deles era constituído — ainda quando só o fosse transitoriamente — pela nomeação de um organizador das tarefas comuns. O outro era a existência da propriedade privada sobre a terra a par da propriedade comum. A terra inculta, lavrada pelo esforço de uma família dada, passava a ser de propriedade desta família, e, da mesma forma, a terra conquistada na guerra e repartida entre os que nesta haviam tomado parte não era depois redistribuída. É de sobejo evidente que as famílias que se distinguiram das demais pela superioridade de seu poderio econômico tinham, em tais condições, que aumentar seu poderio com mais rapidez que as outras. Em primeiro lugar, estas famílias tinham maiores facilidades para aumentar suas terras anexando terrenos desocupados. Em segundo lugar, as pessoas pertencentes a estas famílias poderosas ocupavam, em geral, um posto proeminente na organização das empresas bélicas e recebiam, por conseguinte, uma maior parte dos despojos, tanto animados como inanimados. Convém recordar que entre as presas de guerra figuravam os escravos.
Deste modo foi aumentando pouco a pouco a desigualdade entre as unidades econômicas, o que acabou por destruir a uniformidade da comunidade. A influência das famílias ricas na vida da comunidade aumentou cada vez mais, devido a que sua superioridade econômica lhes permitia colocar, aos demais, até certo ponto, numa condição de dependência, pois podiam empreender coisas inaccessíveis aos outros, como, por exemplo, a construção de grandes moinhos, padarias, etc. Dotadas de uma maior estabilidade, as casas poderosas suportavam com menor abalo as crises econômicas motivadas pelas catástrofes naturais, não pouco frequentes por causa do pequeno desenvolvimento da técnica. Em tais casos acontecia muitas vezes que as famílias mais ricas ajudavam às mais pobres, emprestando-lhes suas reservas, enquanto que o camponês pobre tinha que resgatar o empréstimo trabalhando na terra do rico, o que permitiu a este aumentar consideravelmente suas terras de cultura e toda sua produção em geral.
No decorrer do tempo, as famílias mais ricas conseguiram, graças à sua força, que os organizadores dos destacamentos militares fossem escolhidos dentre elas e, como é natural, fizeram uso de toda sua influência econômica para perpetuar este estado de coisas. Opuseram uma tenaz resistência a toda tentativa individual de alterar este sistema, e, pouco a pouco, se dispuseram a converter o costume em lei. Assim, a autoridade do chefe passou a ser hereditária e o organizador da guerra, de transitório se converteu em permanente.
Este período pode considerar-se já como o começo do período feudal, propriamente dito. O grande senhor de terras, ao separar-se da comunidade, se assegurou a função de organizador militar e conseguiu, por vários meios, colocar a comunidade sob sua dependência econômica. Este é já o senhor feudal típico, o dono da comunidade, seu chefe poderoso.
As relações feudais se desenvolveram rapidamente e se consolidaram. Por um lado, a função positiva e socialmente útil do senhor feudal na vida da comunidade, e por outro, a subordinação jurídica e econômica dos camponeses a seu poder, aumentaram em intensidade e se tornaram duradouras.
O senhor feudal construiu um castelo-fortaleza, a que acorriam os camponeses em busca de proteção quando se viam atacados pelo inimigo. Igualmente providenciou sobre a construção de estradas, pontes, etc., para a comunidade. Em todo caso, quando os camponeses não podiam dirimir suas questões com seus próprios recursos, o senhor feudal acudia em seu auxílio e lhes proporcionava um apoio sistemático em caso de má colheita ou de sua destruição pela guerra. Tudo isto exigia uma despesa considerável e, como é natural, o senhor feudal não estava disposto a sacrificar gratuitamente os recursos de suas propriedades em consideração aos camponeses. Em consequência, o camponês pagava com seu trabalho todos os cuidados que o senhor feudal lhe dispensava.
A exploração feudal adquiriu principalmente duas formas: a primeira, o trabalho obrigatório, que era a forma básica e primitiva; a segunda, o pagamento de tributos. Quando o senhor feudal era pouco mais que um camponês rico, existia o trabalho obrigatório como a forma costumeira de resgatar as dividas. Quando o senhor feudal adquiriu um poderio estável, o trabalho obrigatório passou a converter-se numa obrigação permanente do camponês: este tinha que trabalhar certo número de dias por ano nas terras do senhor feudal. Às vezes o senhor feudal achava mais vantajoso perceber seus tributos, não na forma de trabalho, mas na de produtos acabados, entre os quais foram preferidos cada vez mais os da indústria doméstica. A extensão destes tributos feudais em especie, assim como o estabelecimento do trabalho obrigatório, receberam do costume o caráter de lei. O que não quer dizer que, em caso de necessidade, o senhor não pudesse facilmente conseguir um aumento dos tributos.
O trabalho obrigatório feudal, ou servidão, e os tributos feudais são formas simples e francas de exploração. O primeiro constitui a aquisição direta e evidente de trabalho suplementar; os segundos equivalem à aquisição de produtos suplementares.
Baseada na servidão e nos tributos, a propriedade do senhor feudal, como a fazenda do pequeno camponês, se supria a si mesmo quase que por completo. Claro é que o senhor feudal podia recorrer, em muito maior grau que o camponês, à troca de produtos para satisfazer suas necessidades, um tanto mais refinadas; isso, aliás, só excepcionalmente acontecia, pois a troca estava, então, muito pouco desenvolvida ainda, e a maior parte do que o senhor feudal necessitava recebia de seus servos.
Enquanto a propriedade feudal foi dirigida sobre a base do exclusivismo natural, quer dizer, atendendo tão somente às necessidades de seu próprio consumo, a extensão da servidão e dos tributos não ultrapassou os limites das necessidades de consumo do senhor feudal. Por este motivo, os ônus da população dependente eram relativamente pequenos, mas aumentaram, como é natural, com o desenvolvimento da troca, em consequência do que as necessidades do senhor feudal cresceram.
As relações existentes entre o senhor feudal e os que se encontravam sob sua autoridade não eram completamente uniformes. Uma fração dos camponeses vivia num estado de maior dependência econômica, suportava cargas maiores e se achava, portanto, mais submetida juridicamente ao senhor feudal que os demais. Os outros camponeses viviam em condições relativamente mais favoráveis. O costume manteve estas diferenças e as foi transmitindo de geração em geração aos descendentes dos camponeses.
Essas diferenças dependiam, em boa parte, do caráter das obrigações contraídas. Um ferreiro, por exemplo, que somente pagava tributos ao senhor e não tinha nenhum outro negócio com ele, gozava, naturalmente, de uma maior liberdade econômica e jurídica que o agricultor, que tinha que trabalhar nas terras feudais e vivia, portanto, durante certo período, em um estado de escravidão absoluta. As vezes as diferenças nas obrigações eram devidas a relações criadas historicamente. Por exemplo: os colonos que o senhor feudal convidava a se instalarem em seu território sob certas condições de exceção, viviam em um estado de menor servidão que os antigos membros da comunidade.
Alguns dos súditos do senhor viviam no feudo para atender a seu serviço pessoal e não intervinham no trabalho produtivo; mas sua escravidão culminava no mais alto grau, porque, ao contrário dos camponeses, não tinham lar próprio, vivendo completamente à mercê do senhor. Estes eram os escravos domésticos, ou criados.
Somente os súditos mais submissos ao senhor eram privados do direito de emigração para colocar-se fora de sua autoridade. Os demais podiam fazê-lo; mas, com isso, ficavam privados de suas terras e de seu gado. Para compreender a lógica destas relações é mister ter em conta o que se segue.
O caráter mais geral da dependência econômica em que vivia a população em relação ao senhor feudal, se manifestava em que este último era considerado como o senhor de toda a terra em que viviam seus súditos. Como a agricultura desempenhava tão importante papel na vida produtiva da sociedade, é natural que o senhor feudal se esforçasse por conseguir o domínio absoluto da terra, o que equivalia a exercer igual domínio sobre os homens. Dada a superioridade econômica do senhor feudal, seus esforços não podiam deixar de ser coroados de exito. Às vezes se dava o caso de um camponês livre entregar voluntariamente sua terra ao senhor feudal, seu vizinho, para gozar de sua proteção, e imediatamente a terra lhe era devolvida em feudo, quer dizer, a título de posse condicional. O título de supremo possuidor da terra não significava, entretanto, que o senhor feudal pudesse dispôr arbitrariamente do solo: na prática, se submetia ao costume.
A independência econômica do grupo feudal era muito grande, mas não era absoluta. Especialmente na guerra, acontecia que as forças de um grupo isolado eram insuficientes para resistir aos inimigos circundantes, como, por exemplo, nos ataques das raças nômades, que realizavam frequentes incursões na Europa feudal, ou nas lutas com os senhores mais poderosos.
Devido a isto se estabeleceram entre os senhores feudais relações análogas às existentes dentro de cada feudo, entre o senhor e seus camponeses. Da mesma maneira que as exigências da defesa militar obrigavam os camponeses a submeter-se ao senhor feudal, idênticas exigências obrigavam também aos senhores feudais mais fracos a submeter-se aos mais fortes. Voluntariamente, ou depois de uma luta infrutífera, o senhor mais fraco reconhecia ao mais poderoso como seu senhor e protetor, e, juntamente com os seus vassalos, lutava sob suas ordens na guerra — forma que seu serviço feudal assumia — e às vezes lhe pagava certos tributos. O magnata a cujo poder se submetia era, por sua vez, vassalo de outro senhor ainda mais poderoso, e assim sucessivamente, até chegar ao rei, o qual não era senão o último elo na cadeia de senhores feudais. O rei não se imiscuía nas questões internas dos territórios senhoriais nem tão pouco exercia grande influência nas questões externas. Frequentemente a autoridade do rei e dos grandes magnatas só existia de nome.
Em tais condições — o caráter fragmentário e a debilidade dos vínculos entre as diversas partes da organização social e o atraso da técnica, que permitia continuamente a superpopulação absoluta — o mundo feudal estava condenado a viver em constantes guerras.
Nas primeiras fases do desenvolvimento da comunidade tribal-autoritária, o patriarca era o organizador, não só do trabalho pacífico como também da guerra. Ainda quando não possuísse a qualidade de chefe militar, escolhia um chefe com caráter transitório, segundo o exigiam as circunstâncias, mas conservava em suas mãos a direção geral.
O desenvolvimento do feudalismo transformou o chefe em um organizador militar independente e hereditário. A comunidade tribal se cindiu em grupos familiares, convertendo-se em uma comunidade de vizinhos. A atividade produtiva de cada grupo era dirigida pelo chefe de família, pelo dono da casa. Que restava, então, das funções organizadoras do patriarca?
Apesar da considerável independência dos grupos familiares, ainda subsistiam muitos vínculos econômicos e sociais. O controle geral de suas atividades, as funções organizadoras de caráter pacifico, que antes o patriarca desempenhava, não podiam ser transferidas ao senhor feudal para que os convertesse em suas atividades específicas, nem aos chefes de família, cuja autoridade era muito reduzida. Este controle geral, estas funções organizadoras pacíficas foram, pois, transferidas ao sucessor do patriarca — ao sacerdote.
O sacerdote era quem conservava as experiências sociais legadas pelos antigos. Como estas experiências eram transmitidas sob a forma religiosa de mandamentos e revelações de antepassados divinizados, o sacerdote aparecia como o representante dos deuses e como o intermediário entre eles e os homens. Mas a principal função do sacerdote era de caráter econômico-organizador e assumia uma enorme transcendência.
Para todo agricultor era sumamente importante saber quando devia começar a orar, a semear, etc. A eficiência do trabalho dependia por completo da acertada classificação das estações, classificação que só era possível mediante conhecimentos astronômicos. Ora, os sacerdotes eram os únicos que possuíam tais conhecimentos e, devido às observações do sol, da lua e das estrelas, chegadas até eles através dos séculos, podiam organizar um calendário mais ou menos exato para a agricultura.
Todavia, a obra da organização pacífica não esgotava todas as funções do sacerdote. Prosseguindo o trabalho do patriarca, costumava ter a seu cargo a higiene social e a medicina, e assim contribuía para manter a força de trabalho da sociedade. Os sacerdotes encarregavam-se também da educação dos jovens, oficiavam nos casamentos e nos enterros e serviam de conselheiros nas questões domésticas.
A princípio retinham de cor todos os seus conhecimentos e os transmitiam oralmente de geração em geração; mas no decorrer dos tempos apareceu a escrita, que, por assim dizer, foi monopolizada pelos sacerdotes. Estes não eram só organizadores no sentido restrito da palavra, mas também homens de ciência, legisladores, médicos e professores. Em alguns países se estendeu de tal maneira seu controle sobre todas as relações dos homens que até fiscalizavam os pensamentos de seus fiéis, coisa que ainda subsiste na religião católica e em algumas outras.
A organização dos sacerdotes se desenvolveu paralelamente à organização secular dos senhores feudais. Na maioria dos casos as combinações militares eram seguidas de combinações eclesiásticas. O tipo de organização do clero era igual ao da organização autoritária secular, isto é, consistiam em uma cadeia de subalternos e de superiores, em uma hierarquia sacerdotal. Na Europa medieval, por exemplo, havia diáconos, presbíteros, abades, bispos, cardeais e, por cima de todos eles, o papa. Ao contrário dos senhores feudais, o clero se distinguia sempre por sua solidariedade e por sua disciplina. O caráter pacífico de suas principais funções não dava motivo a querelas e divergências, como as que surgiam entre os senhores feudais, e até estas mesmas lutas do mundo feudal exigiam uma rigorosa unidade nas funções das organizações pacíficas.
As organizações clericais (igreja, mosteiro, etc.) constituíam uma considerável força social, e chegaram a converter-se também em proprietários feudais de grandes latifúndios e muitas vezes em pequenos soberanos de senhores feudais, explorando aos camponeses do mesmo modo que estes e, como eles, organizando-se para a defesa militar.
Em termos gerais, a estrutura econômica da sociedade feudal pode representar-se como segue: sobre a base da pequena produção agrícola, de técnica atrasada e da qual não se haviam derivado ainda as indústrias manufatureiras, foram criadas pequenas organizações econômicas — as comunidades agrícolas, que se bastavam a si mesmas. Nas esferas da produção comum, que exigiam uma só cabeça organizadora, surgiu o poder dos senhores feudais, que assumiram simultaneamente a função de organizadores parciais da produção e a da distribuição parcial dos produtos. A necessidade de uma corporação militar mais ampla criou uma organização hierárquica complexa e instável, baseada na subordinação limitada de um senhor a outro. Algumas necessidades sociais que a organização feudal militar não podia atender por causa de seu exclusivo caráter bélico, foram atendidas pela organização sacerdotal, ainda que não fosse na esfera da produção, mas na da distribuição. Ao mesmo tempo a troca interveio como unificadora destes vínculos econômicos e orgânicos, desempenhando na vida social um papel necessário ainda que inadvertido, mormente em sua forma embrionaria. entre grupos vizinhos; como também em sua forma ulterior, entre grupos diversos e até entre vários países.
A origem do sistema feudal costuma explicar-se como o resultado da conquista de uns povos por outros. Em alguns casos é indubitável. Os senhores feudais eram os conquistadores e seus vassalos os conquistados. É natural que, em tais condições, se houvessem constituído dois estados ou classes perfeitamente distintas. Mas para que nos países conquistados pudesse estabelecer-se o sistema feudal era preciso que este existisse de antemão na terra dos conquistadores, e assim acontecia sempre.
Na esfera da ideologia, a sociedade feudal fez progressos enormes.
Nascida de uma comunidade tribal relativamente pequena, a organização social da sociedade feudal se estendeu por um território considerável e abrangeu centenas de milhares e mesmo milhões de pessoas. A técnica progrediu e a produção adquiriu uma complexidade maior que nos períodos precedentes. Para manter as relações de produção entre os homens, para exprimir e estabelecer a complexa interdependência de seus atos, de seus utensílios, de seus materiais e de seu trabalho era necessário que se desenvolvesse o meio fundamental de organização: a linguagem. E, com efeito, durante o período que estamos estudando, a linguagem adquiriu uma força de expressão e uma flexibilidade consideráveis. Não só aumentou extraordinariamente o número de palavras, como também estas adquiriram inumeráveis aspectos e permitiram múltiplas combinações, como demonstram, por exemplo, as declinações e conjugações das línguas arianas e outras.
Em sua estrutura geral, a sociedade feudal, como a precedente, se baseava na autoridade e na subordinação; mas estas apresentavam formas consideravelmente complexas. A sociedade constituía uma escada hierárquica em que cada degrau inferior estava subordinado ao superior. Esta estrutura econômico-social do feudalismo determinava o caráter do pensamento humano, que continuava sendo essencialmente autoritário, ainda que muito mais desenvolvido e complexo. Na esfera do pensamento, o animismo primitivo, que atribuía vida a todos os objetos inanimados, os quais agiam, para o selvagem, segundo os desígnios de seu "espirito", é substituído por uma crença mais sutil e flexível. Em lugar das ordens diretas do organizador e da execução destas ordens, o homem vê na vida uma vasta cadeia de relações: o papa, por exemplo, transmite suas ordens ao rei; este a seus mais poderosos vassalos; estes aos seus, e assim sucessivamente, até chegar ao último camponês. De acordo com o mundo "terrestre", com o mundo social, edifica-se, pois, o mundo imaginário, e assim se povoa este de semideuses, deuses, deuses superiores, que, segundo a hierarquia da cadeia feudal, dirigem os diversos elementos da Natureza e o universo em geral.
Deste modo, na religião da Grécia antiga, que nasceu no período do feudalismo primitivo, o deus supremo do Universo era Zeus, atrás do qual vinham seus mais poderosos vassalos, Poseidon e Plutão, aos quais, por sua vez, se achava subordinada uma infinidade de outros deuses. As relações entre os deuses eram uma simples repetição das relações entre os "deuses terrenos", quer dizer, entre os poderes feudais. Por intermédio dos sacerdotes pagavam-se tributos aos deuses sob a forma de sacrifícios, e serviço pessoal sob a forma de oferendas votivas à igreja.
A ideologia feudal autoritária via em todas as coisas a mão de deus e era notável por sua extraordinária integridade. Aparecia totalmente envolta por concepções religiosas que uniam os conhecimentos práticos e teóricos às ideias legais e políticas. Graças a isso pôde desempenhar o papel de organizadora universal da vida. Ao mesmo tempo, e nela mesma razão, era uma arma de domínio dos sacerdotes, os quais possuíam a maior parte dos conhecimentos técnicos e organico-sociais da época feudal.
A esfera da ética achava-se impregnada igualmente de ideias religiosas. Ainda não se haviam deslindado de uma maneira clara e concreta a lei, a moral, o pecado, o delito, a virtude e o dever. O que a sociedade condenava como desagradável aos deuses, como uma má ação, era unicamente o que se perseguia. Todas as leis se achavam santificadas pela religião, a qual exigia sempre obediência às autoridades terrenas como representantes das autoridades celestiais.
Sob a estrutura de classe da sociedade feudal, funções e a organização de cada classe diferiam grandemente, e por esta razão diferiam também as normas de lei e de moral, instrumentos de organização. Os direitos de uma classe eram distintos dos das outras, e do mesmo modo diferiam suas virtudes, sua honra, seu decoro. O que numa classe era considerado um crime terrível, tinha-se em outra como leve delito. Um senhor feudal podia matar quase impunemente a um camponês; mas se um camponês, ainda que em legítima defesa, matasse a um senhor feudal, ficava sujeito ao mais severo castigo. As virtudes do senhor feudal consistiam em ser orgulhoso e valente, coisas ambas necessárias para suas funções militares e para a conservação de seu poder. As virtudes do camponês consistiam na humildade e na paciência. Tudo isto era necessário para a conservação da sociedade de classes existente e a religião feudal o santificava como fatos estabelecidos pelos deuses.
Considerada em conjunto, a ideologia feudal, da mesma forma que a autoritária, era em extremo conservadora. Tudo o que não aparecesse vestido com a roupagem de concepções religiosas, como se dava com a tradição e os mandamentos dos antepassados divinizados, era repelido e perseguido frequentemente como ateísmo e como heresia. Toda inovação na técnica, na organização da vida, nas ideias, complicava e perturbava a posição das classes dominantes e punha em perigo os alicerces de sua autoridade. Por isso lhes interessava sobremodo manter tudo o que fosse antigo.
O clero, guardião da tradição religiosa estava particularmente imbuído deste espirito. Era ele quem frequentemente mandava ao pelourinho os inventores e os pensadores da época.
Apesar do profundo conservadorismo peculiar à sociedade feudal, esta se desenvolveu muito mais depressa que a sociedade tribal-patriarcal. As ideias conservadoras esbarravam com o incremento e a complexidade crescente do sistema social e com a experiência acumulada no curso de milhares de anos. As forças de desenvolvimento possuíam agora uma intensidade muitíssimo maior que antes e a elas não tardaram a juntar-se outras novas.
O conservadorismo elementar do período feudal, análogo ao do grupo tribal, conquanto menos firme e obcecado, tinha que ceder ao influxo de uma força elementar. Esta força era a superpopulação absoluta, produzida em consequência do escasso progresso da técnica e da insuficiência dos meios para satisfazer as necessidades da sociedade.
Os primeiros efeitos da superpopulação absoluta, ou redução da terra, foram as inúmeras guerras do mundo feudal. Mas a guerra era a solução menos vantajosa, de que dispunha a sociedade feudal, para o problema, porque, ao destruir as forças de produção criava um novo excesso de população, senão entre os vencedores, ao menos entre os vencidos. Portanto, a técnica teve que fazer alguns progressos, embora lentos. O desenvolvimento da agricultura foi pouco importante até fins da Idade Média; mas o mesmo não aconteceu com a manufatura, que se achava em condições muito mais favoráveis para o progresso. Nela apareceram métodos de produção mais perfeitos, graças aos quais era possível, dadas as suas reduzidas dimensões, ir-se o artesanato se separando pouco a pouco da agricultura até converter-se numa indústria específica. Deste modo se foi estabelecendo a divisão social do trabalho e, consequentemente, aumentaram as proporções da troca de produtos. O artesão procurou viver o mais próximo possível do lugar em que podia vender seus produtos, e pouco a pouco foi se transferindo até os centros nascentes da troca: as cidades.
Para exprimir em poucas palavras as tendencias gerais das transformações ocorridas na vida feudal, poderia dizer-se que por diferentes caminhos a superpopulação absoluta conduziu o mundo feudal ao desenvolvimento da vida social, que se manifesta na troca(4).
1.ª — Na esfera da técnica produtiva, a sociedade natural do passado, que se bastava a si mesma, distinguia-se pelo poder que a natureza externa exercia sobre o homem e pelo fraco domínio deste sobre aquela. Isto se manifesta em maior grau na sociedade comunista primitiva e em menor grau na sociedade feudal.
2.ª — Na esfera das relações de produção, estas sociedades se caracterizavam pela limitação e pelo caráter organizado dos vínculos de produção. Não obstante, também existiam, desde tempos imemoriais, certos vínculos de produção não organizados, que estabeleciam certa conexão entre os diferentes grupos. Neste caso os extremos se manifestam, por um lado, na sociedade primitiva, grupo compacto e isolado quase por completo, formado por uma vintena de indivíduos, no qual não existem apenas vínculos não organizados (relações de troca), e por outro, na sociedade feudal, muito menos compacta, mas que compreende centenas de milhares e até milhões de pessoas, unidas para a luta pela existência, não só por meio de relações organizadas, como também em parte por meio de relações de troca.
3.ª — Na esfera da distribuição, as características são o predomínio de uma forma organizada de distribuição e a ausência de extremos de riqueza e pobreza. Sob este aspecto só pode considerar-se como típica a sociedade primitiva: a sociedade feudal bordeja, já, os limites das novas formas de vida.
4.ª — A consciência social da sociedade natural do passado se distingue por seu conservadorismo elementar (predomínio do costume) e pela pobreza dos materiais de conhecimento. O período primitivo pode considerar-se isento de todo gênero de filosofia; os dois períodos subsequentes se distinguem, em particular, por um fetichismo natural que reflete o poder da natureza sobre a sociedade, ainda que um poder já vacilante e não de todo opressor.
5.ª — De acordo com este caráter da consciência social, as formas de desenvolvimento destas sociedades são elementares, constituindo a superpopulação absoluta a força motriz fundamental do progresso social.
Notas de rodapé:
(4) As relações feudais se desenvolveram no Oriente e no mundo clássico muitos séculos antes da Era Cristã, e na Europa Ocidental aproximadamente nos séculos V ao IX, isto é, da queda do Império romano à decadência do Império de Carlos Magno. (retornar ao texto)
Inclusão | 12/04/2016 |