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O desenvolvimento da troca foi uma das principais causas que produziram a decadência do sistema autônomo da sociedade feudal e a aparição de novas relações entre os servos da aldeia. A amplitude da troca foi aumentando cada vez mais à medida que as cidades medievais se foram destacando do resto do mundo feudal, dando origem a novas condições econômicas.
Isto, excetuando as cidades que o mundo medieval herdou do império romano, verificou-se com grande lentidão. Na maioria dos casos, o embrião das cidades foi uma aldeia de intercâmbio mercantil. As aldeias que estavam em situação favorável sob o ponto de vista dos meios de comunicação — junto à confluência de rios navegáveis, à saída de desfiladeiros, no cruzamento de estradas importantes ou nos vaus dos rios — se transformaram, com o tempo, nos centros de negócio, nos lugares onde se celebravam feiras periódicas. A riqueza que em consequência se concentrava nelas, despertava a cobiça de seus vizinhos, o que tornou necessária a construção de muralhas (traço característico das cidades medievais) para defender-se dos frequentes ataques. Devido à facilidade com que se podiam vender as coisas, nas cidades novas se desenvolveu o artesanato. O artesão, que dependia do grupo feudal, se esforçou para introduzir-se nas cidades, para ficar mais próximo do mercado. Para isso, as relações feudais não constituíam um obstáculo ao artesão, pois este podia viver na cidade e continuar a prestar seu serviço obrigatório ao senhor feudal. A princípio, os artesãos cultivavam suas terras ao mesmo tempo em que exerciam a sua profissão; mas, à medida que o artesanato se foi tornando mais remunerador, a agricultura foi perdendo a sua importância. A especialização de trabalho dos artesãos da cidade facilitou de tal maneira o desenvolvimento de sua indústria, que a dos aldeãos não se lhe podia comparar. Conseguintemente, os senhores feudais preferiram comprar suas manufaturas na cidade e os seus camponeses tiveram daí por diante de limitar-se a proporcionar os elementos para fabricá-los. Foi assim que se verificou a separação entre a cidade e a aldeia.
No período do aparecimento das cidades, os limites da produção aumentaram consideravelmente. Em primeiro lugar, o trabalho foi se tornando mais produtivo, e em segundo lugar foi aumentando a quantidade de trabalho social, pois a sociedade ia adquirindo maior amplitude. Com o aumento da variedade dos produtos sociais começou a desenvolver-se rapidamente a esfera da produção constituída pelo transporte dos produtos, tornando necessário um depósito maior de mercadorias nos lugares onde não eram produzidas. Isto motivou o aparecimento de uma classe social específica que se dedicava exclusivamente ao transporte dos produtos e à sua distribuição entre os consumidores: a classe mercantil. A técnica do transporte e as vias de comunicação progrediram consideravelmente: construíram-se carroças, colocaram-se grandes pontes sobre os rios, fizeram-se embarcações cada vez mais resistentes, etc.
Durante este período, a técnica industrial progrediu graças às numerosas especializações dos métodos técnicos. Isto foi devido ao fato de que o artesanato que emigrou da aldeia para a cidade, com o transcurso do tempo e sob a influência da expansão da procura, se fragmentou em um número crescente de subdivisões. Nas primeiras fases do desenvolvimento das cidades, o artesão se dedicava simultaneamente aos diversos ramos de sua indústria; mas depois o artesanato se dividiu em um certo número de profissões diferentes. Esta especialização deu motivo à adaptação dos instrumentos anteriormente universais a operações definidas e específicas, o que facilitou o incremento da produtividade do trabalho. Entretanto, como continuou predominando o trabalho manual, esta produtividade não pôde ultrapassar certos limites.
Em geral, o progresso realizado foi enorme. Com o aumento da quantidade e da variedade da produção social, com o desenvolvimento da indústria do transporte, com o aperfeiçoamento da técnica da comunicação entre os homens, o poder da Natureza sobre o homem social foi diminuindo cada vez mais.
À medida que aumentaram as forças materiais da população urbana, foi diminuindo a dependência da cidade relativamente ao senhor feudal, em cuja terra esta se achava situada. Algumas vezes, mediante compensações econômicas, e outras, pela luta direta, a população urbana foi conquistando uma independência crescente nas questões internas da cidade. As lutas entre os senhores feudais enfraqueceram a força destes, o que permitiu muitas vezes aos moradores da cidade resolver favoravelmente suas divergências com o senhor feudal. Em muitos casos, a cidade, fiada na sua força militar e em suas resistentes muralhas, desempenhou um papel decisivo nas lutas feudais, prestando apoio a um ou a outro senhor; entretanto a cidade, não prestava seu auxílio gratuitamente, mas em troca pedia algum novo direito ou privilégio. No tempo das Cruzadas, época em que grande número de senhores feudais lutava com dificuldades financeiras, muitas cidades puderam adquirir sua independência e sua terra ao senhor e emancipar-se não só de todo tributo e obrigação feudal como também da ingerência do senhor nas questões internas da cidade.
A luta das cidades contra os senhores feudais, que se esforçavam por manter seu poderio sobre elas, prolongou-se durante toda a segunda metade da Idade Média. Os primeiros que se puseram à testa desta luta foram os comerciantes urbanos, cuja ocupação desenvolvia neles grande energia, espirito combativo e capacidade organizadora. Em torno das famílias dos comerciantes mais velhos, mais ricos e mais poderosos, os comerciantes se organizaram nos chamados grêmios. Estes grêmios tinham aparentemente um caráter religioso; mas seu verdadeiro objetivo era a defesa conjunta dos interesses econômicos comuns. Sob a bandeira dos grêmios a cidade continuou largo tempo a luta por sua independência. A estrutura do grêmio e as relações existentes entre as famílias ricas, que detinham sua direção, e os restantes membros da organização apresentavam uma grande semelhança com as relações entre o senhor e seus vassalos.
Com o tempo, o desenvolvimento ulterior do artesanato e a crescente força da classe artesã determinaram a formação de uma outra variante de agrupamento da população urbana: os grêmios de artesãos.
Em sua essência, a organização gremial apresenta um vestígio das relações patriarcais — aquela proteção comunal dos indivíduos e das empresas individuais que existiam nas comunidades agrícolas do período feudal. Que forças teriam permitido que estes vestígios de passadas relações se estabelecessem e se manifestassem em novas formações sociais?
Na pequena produção do artesanato é de importância primordial que os produtores se ajudem mutuamente para gozar de certa segurança em sua situação. Sem tal auxílio o pequeno produtor, devido à sua fraqueza econômica, corre sempre o perigo de arruinar-se por completo ao primeiro contratempo, como a baixa transitória dos preços, a avaria de algum utensilio, um incêndio ou um roubo.
A posição dos artesãos periga particularmente quando existe entre eles a livre concorrência. Esta arruinaria aos mais fracos, que são os que constituem a maioria. Era, portanto, necessário que todos os que trabalhavam em uma profissão particular se unissem para abolir tal concorrência.
Cada grêmio escolhia sua administração e adotava seu regulamento. As normas por que se regiam os grêmios era mui variadas e, em geral, assaz democráticas; apresentavam, porém, vestígios de tendencias aristocráticas. A princípio, no período da luta contra a arcaica aristocracia cívica e contra o feudalismo, estes vestígios eram insignificantes e quase imperceptíveis. Até os servos tinham direito a ingressar em igualdade de condições no grêmio, desde que estivessem vivendo um ano e um dia na cidade. Com o tempo, à medida que os grêmios conseguiram o domínio real dos problemas públicos e se asseguraram por sua vez a possibilidade de converter-se na aristocracia da cidade, sua democracia começou a desaparecer. Os grêmios começaram a dividir-se em vários grupos: uns tinham mais direitos que outros, como por exemplo aqueles que não eram ainda mestres independentes ou os que não tinham terminado seu período de preparação profissional, quer dizer, os jornaleiros e os aprendizes. A partir de então só os "mestres artesãos", os que desempenham sua profissão independentemente, têm plenitude de direitos no grêmio. Estes formam uma especie particular de aristocracia artesã; esta aristocracia, porém, não se baseava na riqueza ou na linhagem, mas na arte da manufatura, no grau de pericia com que exerciam sua profissão. Todo artesão que possuísse certa energia e capacidade podia aspirar à posição de mestre, para o que tinha de trabalhar algum tempo como aprendiz com algum mestre artesão e submeter-se, depois, a um exame de capacidade como jornaleiro. Isto, entretanto, não lhe conferia o direito de abrir imediatamente uma oficina própria: tinha, antes, de trabalhar como operário assalariado durante certo número de anos. Só então podia ser examinado como mestre artesão e, se fosse aprovado no exame poderia dedicar-se, independentemente, à sua profissão.
A essência do sistema gremial consistia, como é evidente, em evitar a concorrência que seria causada por um aumento demasiado rápido do número de mestres artesãos.
Como o número de operários empregados era pequeno, os lucros obtidos do seu trabalho não eram suficientes para que o mestre artesão pudesse viver comodamente, limitando-se a dirigir as operações. Bem ao contrário, tinha de trabalhar ombro a ombro com seus homens, circunstância à qual se deve o fato de que no primeiro período dos grêmios, antes que novas forças viessem romper os antigos moldes, as relações entre o mestre artesão e seus operários eram amistosas e até mesmo familiares.
Com o fito de assegurar o mercado urbano aos grêmios, as leis da cidade lhes concediam o monopólio da produção e venda das mercadorias nas respetivas cidades. Quem desejasse se dedicar a uma profissão qualquer em uma cidade tinha de ingressar, antes de mais nada, no grêmio local da respetiva profissão.
Quase desde logo, os grêmios revelaram uma contradição inata, que adquiriu caracteres mais agudos nos períodos ulteriores, a saber: o antagonismo de interesses entre os mestres artesãos, de um lado, e os jornaleiros e aprendizes, do outro. O regulamento do grêmio visava proteger os interesses dos mestres artesãos que o haviam redigido. A isso se devia, por exemplo, os obstáculos opostos ao jornaleiro que quisesse converter-se em mestre. Mas enquanto cada jornaleiro contou com a esperança de, tarde ou cedo, chegar a mestre artesão, a contradição interna do grêmio não assumiu um caráter agudo.
Com o desenvolvimento da divisão social do trabalho e a extensão da troca para além dos limites das cidades e seus arredores, as antigas organizações políticas tornaram-se inadequadas para proteger as relações da troca. A divisão do território em milhares de pequenos estados despóticos tornava muito difícil o estabelecimento de relações, e muito perigosa, às vezes, mesmo não remuneradora, a profissão dos comerciantes.
Havia, portanto, uma necessidade imperiosa de organizações políticas amplas, seguras e centralizadas, capazes de. pela força, acabar com a violência dos senhores feudais e de estabelecer a ordem pública, assim como de alguma uniformidade nas leis da troca e na moeda, nos pesos e nas medidas e que se construíssem estradas e se organizasse a proteção dos comerciantes nos países estrangeiros.
A Igreja Católica era incapaz de desempenhar estas tarefas porque seu poder e sua autoridade começaram a diminuir com o desenvolvimento da troca. O poder da troca e o da moeda produziram uma grande transformação nas funções sociais do clero. Quando a economia da Igreja passou do sistema autônomo ao sistema tema baseado na troca, verificou-se nela a mesma transformação e pelas mesmas razões que no mundo feudal: o afã da acumulação determinou uma diminuição considerável da atividade socialmente útil do clero católico e aumentou notavelmente suas tendencias exploradoras. A influência social da Igreja, seu poder sobre o espírito dos homens, começou a diminuir, tanto mais quanto estes iam também modificando: o desenvolvimento das comunicações havia estendido suas perspetivas, dispersado a ignorância, destruído o antigo conservadorismo e despertado o espirito de investigação. A força dos interesses materiais dirigiu as ideias nascentes contra o catolicismo, considerado baluarte ideológico dos dominadores.
Em toda a segunda metade da Idade Média as heresias se mantiveram com vigor e contra elas o papado teve de lutar desesperadamente, esgotando na luta sua principal força: a simpatia das massas.
As republicas urbanas foram incapazes de converter-se nos núcleos das organizações políticas necessárias. É certo que algumas cidades tentaram criar tais organizações de defesa e proteção mutua da propriedade (como, por exemplo, a Liga Hanseática); mas com o decorrer do tempo essas alianças revelaram uma grande insuficiência de energia, estabilidade e unidade interna. As cidades, isoladamente, eram incapazes de elevar-se acima de seus interesses locais e procuravam explorar a seus aliados, os quais, por sua vez, se esforçavam naturalmente por conservar sua independência econômica e política. Por outro lado, a própria estrutura das organizações urbanas impedia a centralização de que precisava para semelhante tarefa.
Assim, o curso dos acontecimentos impôs ao sistema feudal militar a ‘‘missão histórica" de desenvolver novas forças capazes de estabelecer a ordem na terra, para o que não faltaram os necessários elementos.
As lutas entre os pequenos senhores feudais e entre eles e as cidades foram utilizadas pelos senhores feudais mais fortes, era particular pelos príncipes e pelos reis. Pouco a pouco estes começaram a "reunir as terras" em suas mãos, submetendo os pequenos senhores feudais e anexando seus domínios. Os pequenos senhores feudais opuseram-se energicamente às expropriações de seus superiores; mas estes encontraram bom auxilio nas cidades, as quais eram hostis aos primeiros. A aliança com as cidades pôs à disposição dos reis os meios que seus adversários não podiam conseguir. Os reis puderam organizar exércitos permanentes que lhes permitiram sustentar uma guerra em qualquer momento, coisa que o senhor feudal não podia fazer.
O progresso da organização militar prestou relevantes serviços a causa dos reis e precipitou sua vitoria sobre seus desorientados súditos. A descoberta da pólvora tornou inúteis os até então inexpugnáveis castelos e as armas brancas dos senhores feudais. Estes deixaram de ser invencíveis ao deixar de ser socialmente necessários. Os senhores feudais submetidos se converteram em simples possuidores de terras e em sua maioria puseram-se a serviço dos reis.
A Igreja Católica, da mesma forma que os demais senhores feudais, teve, não sem uma enérgica oposição, de ceder sua função organizadora da vida social a uma nova força, se bem que por vezes o clero conseguisse importantes triunfos sobre os monarcas.
Nos fins da Idade Média a luta terminou com a vitoria dos reis. Deste modo se desenvolveram, pouco a pouco, as amplas organizações da monarquia absoluta, capazes, por algum tempo, de assegurar o progresso pacífico do sistema baseado na troca.
O sistema de troca das cidades era muito mais suscetível de desenvolvimento que o do feudalismo e o da servidão. A ausência de trabalho obrigatório, o incremento da especialização, a ampliação dos vínculos comerciais e o aumento da produtividade do trabalho — constituíram os alicerces para todo o ulterior desenvolvimento econômico da Europa. O trabalho suplementar das cidades não foi empregado já nos caprichos de uma classe feudal degenerada e parasitária, mas na expansão e aperfeiçoamento dos métodos de produção. Em vista das cidades se relacionarem com o campo, na qualidade de monopolizadoras, puderam também absorver, por meio do comércio, uma parte do trabalho suplementar dos camponeses. Tudo isso facilitou o enriquecimento das cidades, que em poucos séculos alcançaram um excelente estado de prosperidade.
No período do sistema do artesanato urbano surgiu uma nova força motriz: a concorrência. As empresas individuais se esforçavam por assegurar-se a posição mais favorável no mercado, o que só podia conseguir-se reduzindo a quantidade de trabalho que a produção de cada mercadoria requeria, em outras palavras, aumentando a produtividade do trabalho. Daí se segue o desenvolvimento da técnica, força motriz primordial do desenvolvimento econômico. E certo que a concorrência não se havia desenvolvido senão mui discretamente nesta fase da vida social: o sistema gremial limitava-a, servindo-se para isso de todos os meios; mas as próprias medidas adotadas pelos grêmios contra a concorrência demonstravam que esta existia e que sua influência era tão importante que se tornava necessário neutralizá-la. A estrutura dos grêmios não pôde, contudo, anulá-la completamente e mais tarde se viu minada e destruída por ela.
Os sistemas da servidão e do artesanato gremial abriram uma enorme brecha nos sistemas autônomos das épocas precedentes. Os primeiros nasceram como consequência do aparecimento da troca e facilitaram, por sua vez, o desenvolvimento desta. Mas a influência da antiga teologia era então muito forte. Isso se deve, em primeiro lugar, a que a consciência social é, por via de regra, conservadora, e, em segundo lugar, a que as relações autoritárias prevaleciam ainda na aldeia feudal e na cidade artesã. O poder dos possuidores de terras, no campo, e, dos mestres artesãos, nas cidades, produziu profundo sulco na ideologia da sociedade. As ideias continuaram sendo em geral de caráter autoritário e as concepções feudais dominavam ainda o espirito dos homens.
Mas ao transformar-se as relações econômicas com o desenvolvimento da troca, que minava os antigos moldes sociais, começaram a desenvolver-se os elementos de novas ideias. A primeira delas foi o fetichismo da troca.
Este fetichismo da troca era a expressão da nova força que subjugava o homem na sociedade baseada na troca: a força das relações sociais.
Na troca se acha expressa a divisão do trabalho entre os homens; mas uma divisão não organizada. Este caráter não organizado da divisão do trabalho é o que faz com que os produtores sejam incapazes de adaptar-se às suas relações mutuas e os obriga a designar estas relações como uma "força".
Como já se explicou, os preços das mercadorias estão sujeitos à lei do valor, quer dizer, os preços em sua oscilação, tendem sempre a corresponder ao valor. Mas em qualquer momento dado os preços se afastam mais ou menos do valor porque a lei do valor não é aplicada conscientemente por uma força organizada, mas pelo mecanismo elementar da concorrência. Em qualquer momento dado o produtor de mercadorias corre o risco de ver-se em desacordo com as condições do mercado: em tal caso, gastou inutilmente, em parte ou por completo, sua força de trabalho, e então sua participação na distribuição social se vê diminuída e seu consumo reduzido, o que significa a perda parcial ou total de sua força de trabalho e de sua ocupação.
Em consequência de tudo isto, o mercado representa para o produtor uma força externa a que deve adaptar-se; mas seu êxito ou seu fracasso não dependem de sua vontade. De igual maneira se apresentava à mente do selvagem a Natureza externa com seus perigos inumeráveis e imprevistos. A isso se deve as duas formas de fetichismo.
O mercado e a concorrência, com suas duras e frequentes lutas, ocultam aos olhos do produtor o fato da aliança e da cooperação social na luta contra a Natureza. O comprador e o vendedor, que tenham trabalhado realmente para a sociedade, se encontram no mercado não como membros da mesma aliança social, mas como adversários. O produtor é incapaz de compreender que seu trabalho constitui um consumo de força de trabalho social como o dos demais produtores.
O produtor de mercadorias não pode aperceber-se do valor social destas pois não está acostumado a considerá-las como um produto social. Observando numerosos casos de troca, ele tem uma concepção dos valores (na realidade, o preço usual das mercadorias); mas isto constitui para ele um fenômeno inexplicável. Não pode relacioná-lo com o gasto de força de trabalho social, primeiramente porque não tem ideia do caráter social do trabalho com que foi produzido o artigo, e, em segundo lugar, porque o valor se lhe apresenta sempre sob a forma de uma quantidade determinada de dinheiro e de uma quantidade determinada de trabalho. Se o produtor de mercadorias não pode relacionar em seu espirito o valor com as relações do trabalho social dos homens, pode, não obstante, relacioná-lo com a própria mercadoria. Aparentemente isto é mui natural: quem quer que possua a mercadoria, o produtor ou outra pessoa, vende sempre aquela por seu valor intrínseco. Nada mais fácil que deduzir disto que esse valor (a faculdade de ser vendida por certa soma de dinheiro) é um atributo inerente à mercadoria, independente dos homens ou da sociedade; em suma, que o valor é a qualidade natural da mercadoria. De onde procede a qualidade? Que determina seus limites? O produtor nunca procura averiguá-lo. Para ele o valor de um machado é cinco shillings, e nada mais; existe no machado a mesma independência de qualquer outra coisa, do mesmo modo que para o fetichista natural o espírito do machado era seu espirito, e não outra coisa. Não tendo possibilidade de compreender que a troca exprime a cooperação social no trabalho dos homens na luta contra a Natureza; quer dizer, as relações sociais que unem os homens, o fetichismo das mercadorias considera a faculdade que elas possuem de ser trocadas como uma qualidade inerente e natural das próprias mercadorias.
Assim, o que na realidade constitui as relações entre os homens se lhe apresenta como as relações entre as coisas. Por conseguinte, o fetichismo da troca constitui a atitude oposta ao fetichismo natural, o qual considera as relações entre as coisas como as relações entre os homens.
O fetichismo da troca exprime a dominação das relações humanas sobre os homens, do mesmo modo que o fetichismo natural exprimia a dominação da natureza externa sobre o homem. Quando o homem social esbarra com uma força elementar que não pode subordinar à sua vontade e a que seu espírito não pode adaptar-se, inevitavelmente se cria um fetiche.
O desenvolvimento da troca origina da mesma forma a ilusão da produção individual. O produtor individual imagina que sua empresa é economicamente independente. Mas na sociedade baseada na troca não existe tal produção individual. Cada empresa isolada não constitui senão uma parte de uma sociedade econômica de trabalho a que se acha ligada por uma infinidade de laços. Todavia, os diferentes produtores se encontram no mercado como contendores. Quando dois representantes da sociedade baseada na troca se reúnem, na qualidade de comprador e de vendedor, cada qual se esforça por tirar as maiores vantagens possíveis na compra ou na venda, o que cria entre eles um antagonismo de interesses. O mesmo acontece quando dois produtores agem simultaneamente na qualidade de compradores ou de vendedores. Um aumento da procura, no primeiro caso, e da oferta no segundo, colocaria estes produtores em uma situação desvantajosa, e às vezes sumamente difícil. Assim, pois, na sociedade baseada na troca se desenvolve um antagonismo geral de interesses, uma guerra de todos contra todos, que se chama concorrência. Este antagonismo contribui para obscurecer ainda mais a mente do produtor de mercadorias. Cego pela luta, deixa absolutamente de ver a cooperação de uma grande sociedade e imagina que, tanto sua empresa como a dos demais, são completamente individuais.
Esta ilusão acabou por se arraigar no espírito do produtor de mercadorias, com o desenvolvimento da moeda. Enquanto as mercadorias eram trocadas diretamente entre se, os produtores podiam ainda perceber os vínculos de trabalho que os uniam; podiam ver que o que trocavam era o produto de seu trabalho; podiam ver ainda que trabalhavam uns para os outros. Mas as coisas mudaram por completo ao aparecerem em cena os meios de troca. Entre as mercadorias trocadas se interpôs o dinheiro; entre os produtores se interpôs o intermediário, o comerciante. Em tais circunstâncias as relações de trabalho ficaram ocultas aos que participavam na troca. Um sapateiro trocava o calçado fabricado por ele pelo dinheiro de um comerciante, que, por sua vez, não o havia produzido, e com este dinheiro comprava, por exemplo, uma roupa que havia sido produzida por alguma outra pessoa. Neste caso, o produtor de mercadorias se sente completamente afastado do sistema de produção como um todo, e, ao desaparecerem todos os vínculos produtores, somente vê o mercado que o domina.
Para o produtor e membro da sociedade baseada na troca só há uma coisa clara, e é que com dinheiro pode comprar o que quiser e que os limites da possibilidade e de satisfazer suas necessidades dependem inteiramente da quantidade de dinheiro de que disponha. Esta notável particularidade do meio de troca é atribuída ao dinheiro, e então surge o fetichismo do dinheiro, que motiva um afã insaciável de acumulação. A princípio, a acumulação só tem por objeto a satisfação das necessidades imediatas; mas com o transcorrer do tempo, ao desenvolver-se a concorrência, uma reserva considerável de dinheiro começa a proporcionar enormes vantagens na luta econômica e a acumulação adquire um caráter especial. De meio se converte em fim propriamente, e tanto o produtor de mercadorias como o comerciante começam a acumular pela própria acumulação.
A ilusão da produção individual criou também o fetichismo da propriedade privada, que apareceu com o desenvolvimento da troca.
A ideia da "propriedade" não surgiu enquanto na comunidade primitiva não aparecesse a "individualidade" na pessoa do organizador. Só então pôde dizer-se que um artigo ou um utensílio "pertencia" ao patriarca, o qual, devido à função especial que exercia no sistema de produção, sobressaía entre os demais membros da comunidade. Ninguém, por exemplo, a não ser ele, podia usar os adornos de um chefe; mas a propriedade daquele período é radicalmente diferente da propriedade dos tempos modernos. O patriarca organizador não podia dar ou emprestar suas armas a pessoa alguma. No caso de morte do chefe ou no de sua retirada, todas as suas "propriedades" passavam ao seu sucessor.
Com o desenvolvimento da troca, a concepção adquire um caráter inteiramente diferente. Quando os representantes de duas comunidades individuais se entrevistavam para realizar uma operação de troca, se consideravam como proprietários e não proprietários de uma determinada mercadoria, e se reconheciam como tal. Com o desenvolvimento da individualização da produção, esta polaridade dos produtores de mercadorias permutáveis adquire, como já vimos, uma forma mais marcada. Os instrumentos e os produtos de seu trabalho, isto é, as mercadorias, pertencem ao indivíduo que os adquiriu no mercado e que as considera como "suas" e não têm relação com os demais homens. O indivíduo considera sua propriedade como uma relação existente entre seus objetos e ele. Este é o fetichismo da propriedade privada.
Para provar que se trata, efetivamente, de um fetiche; que o conceito individualista da propriedade privada é uma ilusão, basta considerar que um adolescente pode ser proprietário de uma fortuna enorme, com a qual não tem nenhuma relação prática e da qual não tem a menor ideia. Este adolescente pode ser o proprietário porque a sociedade o reconhece como tal, e caso seja necessário protegerá sua propriedade contra quem quer que tente apoderar-se dela. Este exemplo demonstra claramente que a propriedade é uma relação social, a relação da sociedade simultaneamente com uma dada pessoa e com determinadas coisas.
A propriedade determina o individualismo. No espírito dos homens, o indivíduo se afasta cada vez mais do resto da sociedade, e ao mesmo tempo se desenvolve uma consciência da individualidade, a qual se considera a se mesma e a seus interesses como o eixo de sua vida.
Saturada com o afã de acumulação e de aquisição, procura novos caminhos e métodos de enriquecimento. Isto se faz sentir sobretudo na esfera econômica; mas também na das ideias, as quais servem de armas na luta pelo progresso econômico.
Deste modo, o sistema de troca destrói pouco a pouco o fetichismo autoritário que predominava na sociedade autônoma natural e dá origem a novas formas de pensamento, que nada têm de ver com os antigos e acanhados conceitos.
Inclusão | 30/04/2016 |