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Primeira Edição: ....
Fonte: texto em Inglês disponível em http://tenstakonsthall.se/uploads/139-Brecht_A_Short_Organum_for_the_Theatre.pdf
Tradução: Reinaldo Pedreira Cerqueira da Silva
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
O seguinte conjunto define um desempenho estético que foi posto em prática há poucas décadas passadas. Nas premissas teóricas, digressões, indicações técnicas ocasionalmente publicadas na forma de didascálias das peças, a estética tem sido tocada ocasionalmente e também com ausência de interesse. Lá tu vês espécies particulares de teatro ampliadas ou contraídas em sua função social, aperfeiçoando ou examinando minuciosamente seus métodos artísticos, estabelecendo ou mantendo suas estéticas — se surge o problema — rejeitando ou convertendo para seu próprio uso as convenções reinantes de moralidade ou gosto segundo suas necessidades táticas. Este teatro justifica sua tendencia para o compromisso social apontando o compromisso social universalmente aceito nas obras de arte, que falha apenas para chamar a atenção por ter aceito este compromisso. Como para os produtos de nossa época, considerou que qualquer ausência de indignação no conteúdo era sinal de decadência: ele sentiu esta diversão como tendo degenerado num armazém dos negócios burgueses de tráfico de drogas. O estado descuidado das representações da nossa vida social, inclusive do chamado Naturalismo, conduz a pedir por representações exatas cientificamente; o insípido revezamento do vazio visual ou paliativos espirituais, para a nobre lógica da tabuada de multiplicação.
O culto da beleza, leva a hostilidade em relação ao aprendizado e tentativa de ser prático, foi perdido por isso a si compatível, especialmente como ausência de resultados belos. A batalha era por um teatro posto para a época científica, na qual seus planejadores descobriram o quanto custa a estrutura de aço para os edifícios ou conceitos estéticos para serem manejados como armas para defender-se da própria Estética da Imprensa, ele simplesmente ameaçam transformar o sentido da diversão exposto num tipo particular de de teatro em um instrumento de conhecimento, e converter alguns tipos de diversão estabelecidos nos veículos de comunicação de massas’ (’Notas para a Ópera Mahagonny’ — [cf No. 13]): isto é de migrar do reino do simplesmente agradável. A estética, esta até agora uma herança de uma classe parasitária e viciosa, era complementar e aliada numaausência de interesse. Este estado lastimável de um teatro poderia seguramente ter ganho em reputação quanto em salas acotoveladas se tivesse rebaixado o teatro. E ainda o que nos alcançamos no caminho do teatro da idade cientifica não foi ciência mas teatro, e as inovações acumulada funcionaram no período nazista e da guerra — quando a demonstração prática era impossível — obriga a alguma tentativa de contextualizar a estética deste teatro, ou de qualquer forma de esboçar as linhas gerais de uma estética possível. Expor a teoria da alienação teatral fora do contexto da estética é penoso.
Atualmente pode-se ir longe juntando uma estética das ciências naturais. Galileu fala da elegâncias de várias fórmulas e o ponto de uma experiência; Einstein sugere o sentido de beleza toma parte do jogo da descoberta científica; enquanto o físico atômico R. Oppenheimer orgulha-se da atitude científica, que 'tenha seu próprio tipo de beleza e pareça seguir a posição da humanidade na Terra'.
Deixemos de fora o clamor geral de revogar nossa decisão de emigrar para o reino do simplesmente agradável, e mesmo revogar o clamor geral de alugarmos um lugar ali.
Tratemos o Teatro como um lugar de diversão, como é próprio num debate estético, e tentemos descobrir qual é o melhor tipo dela para nós.
O Teatro consiste nisto: em fazer uma viva representação de fatos acontecidos ou inventados entre seres humanos e fazendo com a perspectiva da diversão. De qualquer modo é o que buscamos tratando de teatro novo ou antigo.
Para ampliar esta definição poderemos acrescentar acontecimentos entre humanos e deuses, mas buscamos estabelecer um mínimo e podemos deixar isto de lado. Mesmo se ampliarmos tal definição convencionaremos que a função do teatro é proporcionar prazer. Esta é a mais nobre função para o que chamamos de Teatro.
Embora o teatro tenha sido de início um negócio para divertir o povo, como também as outras artes. Isto deu aos negócios um certo ar de dignidade, não é preciso outros passaportes do que a diversão, mas isto é preciso. Isto não significa dar um alto gabarito à moral de negociantes, ao contrário, devemos correr o risco de sermos rebaixados, num sentido de tornar a moralidade agradável, admitamos, a principio um meio que a moralidade possa ganhar. Nem mesmo a instrução deve ser exigida nem mesmo uma lição utilitarista, que nos transporte, até mesmo prazeirosamente, as esferas físicas ou espirituais. O teatro deve permanecer inteiramente uma coisa desinteressada para nós que vivemos. Nada precisa menos explicação do que o prazer.
Então o que os antigos, seguindo Aristóteles, exigiam da tragédia não é superior nem inferior ao que diverte ao povo. Podemos afirmar que o teatro é derivado do rito religioso, mas além disso: dizemos apenas que ele se separou do rito religioso. O que acabou com os mistérios não foi sua função de rito, mas apenas e simplesmente o prazer de assisti-lo. E a catarse da qual Aristóteles mencionou — purgação pelo medo e piedade — é uma purificação que se desempenha de maneira agradável e pelo propósito do prazer. Inquirir ou aceitar mais do do que isto do teatro é rebaixar o seu nível.
Mesmo quando o povo fala de maior ou menor grau de prazer, a arte caminha imperturbável para ele; por isso deseja voar alto para ser deixada em paz, tanto quanto o que pode dar prazer ao público.
Existem ainda prazeres débeis (fracos) ou fortes (complexos) que o teatro pode proporcionar. Estes últimos que lidam com o grande drama, ligam-se a climaxes relacionados com o amor: eles tem mais intrigas, ricas em comunicação, mais contraditórias e ricas e produtivas em resultados.
E diferentes épocas de diversão variam naturalmente segundo o sistema sob o qual o povo vive numa determinada sociedade. A demos grega (literalmente: o circo da demos grega) predominou entre tiranos que tinha de ser diferente da diversão da corte de Luis XIV. O teatro foi requisitado a fornecer diferentes representações da vida coletiva do homem: não apenas representações de uma vida diferente, mas também representações de diferente tipos.
Segundo o tipo de diversão que foi possível e necessária sob dadas condições da vida social dos homens as personagens tinham de ganharem variadas proporções, as situações serem construídas de acordo com múltiplos pontos de vista. As histórias tinham de ser narradas de vários modos, este particular aos gregos podia ser capaz de aborrecê-los com a inexorável lei divina onde a ignorância nunca atenua o castigo; este dos franceses com a graciosa autodisciplina exigida dos de cima desta terra por um código cortês de honra; o inglês da época Isabelina com a auto-recompensa da nova personalidade que foi incontrolavelmente explodindo.
E sempre devemos lembrar que o prazer dado pelas representações de diferentes espécies dificilmente depende das representações das coisas representadas. Incorreções, ou considerável incerteza, estão dificilmente em todo distúrbio, enquanto a incorreção tem uma certa coerência e a incerteza permanece de um tipo constante. Tudo o que importou foi a ilusão do instante atraente da estória contada, e isto proporcionou todo tipo de meios teatrais e poéticos. Mesmo atualmente somos felizes por superestimar tais imperícias se conseguimos ir além da purificação espiritual de Sófocles ou atos de sacrifícios de Racine ou os frenesis desenfreados de Shakespeare, nas personagens principais de suas estórias.
Para todo tipo de representações que o teatro tem feito entre humanos desde épocas remotas, e que tem proporcionado diversão apesar de sua correção e incerteza, há um estonteante número que também nos divertem.
Ora, se constatamos a capacidade de nos deleitarmos com reproduções provenientes de épocas diversas (o que teria sido quase impossível aos filhos dessas épocas maravilhosas), não deveríamos, então, suspeitar que nos falta ainda descobrir o prazer específico, a diversão própria de nossa época?
A nossa capacidade de fruição do teatro deve ter-se atrofiado, em relação a dos Antigos, muito embora a nossa forma de convívio assemelhe-se bastante à sua, para que, de maneira geral, essa fruição possa surgir da nossa arte. Apropriamo-nos das obras antigas, por intermédio de um processo pelo qual as referidas obras, não dão de si, grande contribuição. A nossa fruição é, desta forma, quase totalmente alimentada por fontes diversas daí, das que pujantemente abriram-se antes de nós.
Arranjamos uma compensação na beleza da linguagem dessas obras, na elegância da sua fabulação, na passagem cujo poder nos permite criar uma representação desligadas delas, em suma, nos ornamentos. Esses recursos poéticos e teatrais, dissimulam justamente, a sensação que a história nos provoca. Os nossos teatros já não tem prazer em narrarem estas histórias, nem mesmo as do grande Shakespeare (que não são assim tão antigas), com exatidão, isto é, tornando verossímil a associação dos acontecimentos. É a fabula segundo Aristóteles — e neste ponto pensamos identicamente- a alma do drama. Cada vez mais nos incomoda o primitivismo e o descuido que encontramos nas reproduções do convívio humano não só nas obras antigas, mas também nas contemporâneas, quando estas são feitas pelas receitas antigas. O nosso modo de fruição começa a desatualizar-se.
É a sensação de desacerto, que nos vem perante a representação das reproduções dos acontecimentos ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto de nossa posição em relação ao objeto reproduzido é o fato dela ser diversa daquela que nos antecederam.
Ao perguntarmos ao nosso teatro que espécie de diversão (direta), que prazer amplo e constante ele poderia nos proporcionar com suas reproduções do convívio humano, não devemos esquecer que somos filhos de uma Era Científica. As nossasrelações como homens — quer dizer, a nossa vida — está condicionada pela ciência, dentro de dimensões completamente novas.
Um punhado de pessoas, há algumas centenas de anos, apesar de viverem em vários países tentaram arrancar os segredos da Natureza. Pertencendo a classe industrial das cidades, já então poderosas, transmitiram suas invenções a terceiros, que as exploraram no terreno da prática, sem pedirem outra coisa as ciência senão lucro pessoal. Indústrias que, durante milhares de anos, se haviam mantido em processos quase inalterados, desenvolveram-se então espantosamente, em vários locais, estes ligavam-se uns aos outros pela concorrência e englobavam em si, e por toda parte, grandes massas humanas, que organizadas de forma nova iniciaram uma produção gigantesca. A humanidade, em curto espaço de tempo pode revelar forças descomunais, até então jamais sonhadas.
Só agora, dir-se-ia que a humanidade se propunha habitar o astro onde mora, unitária e conscientemente, Vários materiais naturais como o carvão, a água e o petróleo, tornaram-se verdadeiros tesouros. O vapor d´água foi incumbido de mover veículos, umas poucas faíscas e movimentos das pernas das rãs, denunciaram a força da Natureza, uma vibração que produzia luz e transportava o som por todos os continentes, etc. Era como um novo olhar que o homem mirava sobre si, e pesquisava o que via em beneficio de si, o que há muito via mas não utilizava para si.
O meio ambiente transforma-se, cada vez mais, de decênio em decênio, de ano em ano e depois dia após dia. Eu próprio estou escrevendo numa máquina que não conhecia quando nasci. Transporto-me em novos veículos a uma velocidade que meu avô sequer poderia imaginar; não havia nesse tempo que se movesse tão rapidamente.
Além disso levo-me no ar coisa que era impossível a meu pai. Podia conversar com meu pai de um continente para outro, mais foi só com meu filho que pude ver as imagens animadas da explosão de Hiroshima.
Embora as ciências tenham proporcionado uma enorme modificação, e sobretudo uma enorme transformação do nosso meio ambiente, não é possível afirmar, entretanto que estejamos imbuídos de seu espírito, que ela alcance a todos. O motivo pelo qual a nova forma de pensamento e sensibilidade não se impôs ainda às massas está no fato de que a classe que deve as ciências a sua supremacia — a burguesia — impedir que as ciências que foram tão proveitosas na exploração e domínio da natureza, se apoderem de um outro campo ainda virgem, o domínio das relações dos homens entre si e no ato de subjugar ou explorar a natureza. Esta tarefa, da qual todas as outras dependem, foi efetuada sem que os novos métodos de pensamento os quais a tornaram possível viessem esclarecer entre aqueles que a efetuaram. A nova visão da Natureza também não incidiu sobre a sociedade.
As relações atuais entre os homens tornaram-se mais impenetráveis do que no passado. O gigantesco empreendimento comum em que estão empenhados, parece desvalidos cada vez mais, o aumento da produção faz crescer a miséria e somente poucos lucram com a exploração da Natureza, justamente porque exploram outros homens. O que poderia ser o progresso de todos é apenas o lucro de alguns, e uma parte crescente da produção é destinada a guerras devastadoras, a guerras em que as mães de todas as nações, com seus filhos num abraço apertado, vasculham os céus, no rastro de inventos mortíferos da ciência.
Os homens de nosso tempo estão, exatamente como outrora diante suas próprias realizações, perante as catástrofes imprevisíveis da Natureza. A classe dos patrões que deve sua prosperidade à ciência, prosperidade da qual tornou-se beneficiária ao tornar-se a classe dominadora, não ignora que se a perspectiva cientifica incidir representa o fim de seu domínio. A nova ciência, que se debruça sobre a natureza das diversas sociedades humanas e que foi fundada há cerca de um século, mergulha nas raízes da luta de dominados e dominadores. Desde então, tem-se manifestado nos trabalhadores, para quem a grande produção é vital, algo que é, no fundo, como que um espírito científico, segundo o qual, as grandes catástrofes são preparadas pelos que dominam.
A arte e a ciência tem em comum o fato de ambas existirem para facilitar a vida dos homens. A primeira ocupada na diversão dos homens, e a segunda na sua subsistência. No futuro que virá a arte tirará diversão de toda a produtividade, esta poderá melhorar nossa existência e uma vez livre de obstáculos, pode vir a ser o maior de todos os prazeres.
Se quisermos uma arte de produzir, qual deverá ser a nossa posição face ao convívio em sociedade? Qual deverá ser a atitude produtiva, qual a posição face a Natureza e ao convívio social, que a nós recreará, no teatro, a nós filhos da época científica?
A atitude deve ser crítica. Perante um rio ela deve ser regular seu curso. Diante uma árvore frutífera, em enxertá-la, perante a locomoção, construir veículos de terra e ar, perante a sociedade em fazer uma revolução. As nossas representações do convívio humano destinam-se aos técnicos fluviais, aos farmacêuticos, aos construtores de veículos e aos revolucionários, a quem convidamos a virem aos nossos teatros, e a quem pedimos que não se esqueçam, enquanto estiverem conosco, dos seus respectivos interesses (que são uma fonte de alegria); poderemos assim entregar o mundo a seus cérebros e a seus corações, para que o modifiquem a seu critério.
O Teatro só poderá, sem dúvida assumir uma posição independente, caso se entregue às correntes mais avassaladoras da sociedade e se associe a todos que estão impacientes, necessariamente por fazer grandes transformações neste campo. É o desejo sobretudo de desenvolver nossa arte, em sintonia com a época em que ela se insere que nos impele, desde já, a desenvolver nosso teatro, o teatro de uma era científica, para os arredores das cidades, aí ficará, para ser preciso, a disposição da vasta massa que produz em grande escala e que vivem em dificuldades, para que se divertam prazeirosamente com a complexidade de seus próprios problemas.
É possível que achem difícil remunerar nossa arte, é possível que não a compreendam, logo à primeira vista, a nossa nova forma de diversão, e em muitos aspectos teremos de aprender a descobrir aquilo de que necessitam e de que modo necessitem: apenas podemos estar seguros de seu interesse. É que todos aqueles que parecem tão distantes da ciência estão, porém, pela simples razão de serem mantidos afastados; para se apropriarem e desenvolverem a ciência terão de por em prática por si, desde já, uma nova ciência social. São estes os verdadeiros filhos da era científica, como a nossa, cujo teatro não se poderá desenvolver se não forem eles a impulsioná-lo. Um teatro que torne a produtividade fonte principal da diversão, deverá torná-la também seu tema, e é com cuidado muito particular que deverá fazê-lo, atualmente, pois em toda parte vemos o homem impedir a produzir si próprio, isto é em angariar seu sustento, de divertir-se e divertir. O teatro tem de se comprometer com a realidade, porque só assim será possível e será lícito produzir imagens eficazes da realidade.
O Teatro vê facilitado seu esforço, por uma aproximação estreita com os estabelecimentos de ensino e meios de comunicação de massa. Pois, embora o teatro não deva ser importunado com toda sorte de temas culturais que não lhe confiram um caráter recreativo, tem plena liberdade de se recrear com temas de ensino ou investigação. Faz com que as reproduções da realidade sejam válidas e capazes de a influenciar, como diversão autêntica. Expõe aos construtores da sociedade as vivências dela, tanto passadas como presentes, mas o faz de forma que se possam tornar objetos de deleite os conhecimentos, os sentimentos e os impulsos que dentre nós são os mais emotivos, os mais sábios e os mais ativos, que extraem dos acontecimentos do dia a da e do século. É nosso propósito diverti-los com a sabedoria que advém da solução dos problemas, com a ira em que se pode precisamente a compaixão pelos oprimidos, com o respeito pelo amor a tudo o que é humano, ou seja, pelo filantrópico, em resumo, com tudo aquilo que deleita o homem que produz.
O teatro pode assim levar seus público a fruir a moral especifica da sua época, a moral que emana do produtividade. Tornando a crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever se deparará ao teatro no campo da moral, aparecerão sim, múltiplas possibilidades. A sociedade pode mesmo extrair de tudo o que apresenta um caráter associal, desde que o apresentem como algo revestido de grandeza: assim se nos revelam, com frequência, forças intelectuais e inúmeras capacidades de especial vali empregadas porém evidentemente, com propósitos devastadores. Pois bem, a sociedade pode mesmo gozar fortemente, em toda a sua magnificência, dessa torrente que irrompe catastroficamente, desde o momento que lhe seja possível dominá-la, passando neste caso a corrente ser sua.
Para levar a bom termo um empreendimento desta ordem seria impossível deixar o teatro ficar como está. Entremos numa costumeira sala de teatro e observemos o efeito causado pelo teatro no público. Olhando em volta, vemos figuras inanimadas que encontram-se num estado singular: dão-nos a ideia de estarem enrijecendo os músculos num esforço enorme ou de terem relaxado após intenso esgotamento. Quase não convivem entre si: é como uma reunião em que todos dormissem de bruços, como o povo diz ser a causa dos pesadelos. Têm os olhos evidentemente abertos, mas não veem, não fitam e tampouco ouvem. Olham como que fascinados a cena, cuja forma de expressão embebe suas raízes na Idade Média, época de feiticeiras e clérigos. Ver e ouvir são atos que causam, por vezes, prazer; essas pessoas porém, parecem-nos bem longe de qualquer atividade, parecem-nos objetos passivos de um processo qualquer que está se desenrolando. O estado de enlevo em que se encontram e em que parecem entregues a sensações indefinidas, mas intensas é tanto mais profundo quanto melhor trabalharem os atores, por isso desejaríamos, visto que tal estado hipnótico nos agrada que os atores fossem tão maus quanto possível.
O mundo que é reproduzido e do qual são tirados trechos para a criação dos referidos estados da alma e emoções surge de coisas de tal maneira pobres e escassas — um tanto de caricatura, um pouco de mímica e uma certa porção de texto — que é impossível deixar de admirar a gente de teatro, admiramo-la por conseguir com um decalque tão pobre do mundo, emocionar o público mais intensamente do que o mundo propriamente dito.
E há que desculpar, em certa medida, os atores, porque a verdade é que, em reproduções mais exatas do mundo, não seria possível provocar os prazeres que lhes são comprados a troco de dinheiro e fama, e seria, também, impossível fazer aceitar no mercado as suas reproduções inexatas se as apresentassem de forma menos mágica.
A sua habilidade em retratar homens manifesta-se indiscriminadamente: são especialmente os vilões e as personagens menores que revelam traços de sua experiência e se diferenciam das personagens principais, porem devem conservar o traço mais geral, para que o público possa mais facilmente se identificar com elas.
E, além disso, os traços característicos devem permanecer num campo restrito, dentro daquilo que o publico possa dizer imediatamente: "É isso mesmo!" O público deseja usufruir emoções bem determinadas, tal como uma criança, por exemplo, quando monta num cavalo de madeira de carrossel, a sensação de orgulho por saber andar a cavalo e por ter um cavalo, o prazer de se deixar levar e passar junto de outras crianças ou de estar a seguir outras, etc. À semelhança entre o veículo de madeira e um cavalo não contribui muito para que a criança experimente essas sensações, nem a aborrece, tampouco, o fato de a cavalgada limitar-se a um pequeno círculo. Por sua vez, ao frequentador do teatro o que lhe interessa é poder substituir um mundo contraditório por outro harmonioso, um mundo que conhece mal por um mundo onírico.
Foi neste estado que encontramos o teatro, ao procurarmos realizar o nosso empreendimento. E tal estado devia-se a que os nossos esperançosos amigos, a quem chamamos filhos da era científica, encontravam-se transformados numa intimidada massa crente, "fascinada".
É certo que há cerca de meio século, lhes tem sido dado apreciar produções algo mais fiéis das relações entre os homens, e, também, personagens que se rebelam contra a determinados males sociais ou até contra o sistema global da sociedade.
O seu interesse pelo teatro, foi, mesmo suficientemente forte para que, por vontade espontânea, se sujeitassem temporariamente a uma extraordinária redução de linguagem, da fábula e de seu nível intelectual, mais o espírito do aroma cientifico que então soprava fazia que os habituais motivos do encanto desaparecessem. Mas tais sacrifícios não valem muito a pena. O aperfeiçoamento das reproduções impedia um determinado tipo de prazer, sem que oferecesse outro em troca.
O campo das relações humanas tornou-se evidente mas, não "claro". As sensações provocadas pela forma antiga (mágica) continuaram a ser também da natureza das antigas.
Tal como antes, os teatros eram recintos de reduto de uma classe que mantinha o espírito científico amarrado à natureza, não ousando transferi-lo para as relações humanas, apenas percentagem mínima do público que era proletária e à que se dirigiam, apenas acessória e precariamente, alguns intelectuais e artistas, era ainda, também, necessário o velho tipo de diversão. Isto servia de alívio para seu cotidiano monótono.
Porém prossigamos! Seja de que maneira for! Saiamos para uma luta, lutemos então! Não vimos já como a crença que alguma coisa está sendo ocultada? Esta cortina que nos oculta isto e aquilo, é preciso arrancá-la!
O teatro, tal como nos é dado ver atualmente apresenta a estrutura da sociedade no palco como algo que não pode ser modificada pelo público (na sala). Édipo, que pecou contra alguns dos princípios que mantinham a sociedade de sua época, é punido, os deuses tomam a si esta tarefa, eles não são criticáveis. As grandes personagens solitárias de Shakespeare que carregam no peito a estrela de seu destino, arrojam-se em seus vãos e mortais frenesis suicidas, e liquidam-se a si próprias, e não a morte, que se torna obscena, quando de suas derrocadas; a catástrofe não é suscetível de ser criticada. Sacrifícios humanos por toda a parte. Bárbaros divertimentos! Ora, se os bárbaros tem uma arte, façamos nós uma outra!
Por quanto tempo ainda os nossos espíritos, abrigados na escuridão dos seus corpos "compactos", terão de penetrar em todas as quimeras que pairam sobre o tablado, para participar daquela prosperidade, "de outro modo", nos é negada? Que espécie de liberdade será esta, no final de todas as peças — que apenas para o espírito da época é feliz (a justa Providência, a disciplina) — vivemos o fantástico desempenho que pune a prosperidade por seu excesso! E de rastros que nos adentram no Édipo — aí se deparam ainda e sempre os tabus: a ignorância não evita a punição: no Otelo é o ciúme, ainda e sempre, que nos move, e tudo depende da posse; no Wallenstein também nós devemos ser livres e leais, para uma luta de concorrência, senão tal luta findará. Estes hábitos demoníacos, também fomentados em peças como Os Fantasmas e Os Tecelões nelas, a sociedade como meio surge porem envolta em maior problemática. É por coação que recebemos as sensações, impulsos e ideias das personagens principais, e da sociedade recebemos apenas o que nos é dado pela situação em que as personagens se movem.
Precisamos de um teatro que não apenas consuma emoções, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações sociais (o contexto em que as ações se realizam), mas sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto.
Tal contexto tem de ser caracterizado na sua relatividade histórica. Ora, isto significa uma rutura com nosso hábito de despojar das suas diferenças diversas formações sociais das épocas passadas, de maneira a fazê-las aproximarem-se mais ou menos da nossa, a qual, por sua vez, adquire, por meio deste procedimento, o caráter de algo sempre existente, portanto, imutável. Não pretendemos,porém, deixar às diferentes épocas a sua diversidade e não esquecer nunca a sua transitoriedade, de forma que a nossa época possa ser também considerada efêmera. (Para tal propósito, não podem, naturalmente, empregar o colorido ou o folclore, usados pelos nossos teatros para fazer sobressair, tanto mais acentuadamente quanto possível, a analogia das formas de ação dos homens das diferentes épocas. Indicaremos adiante quais recursos teatrais empregar.)
Se movimentarmos as personagens em cena por meio de forças motrizes de caráter social, que variam conforme a época, dificultaremos ao nosso público uma acomodação emocional. Não poderá sentir, pura e simplesmente, que agiria dessa ou daquela forma, dirá: "Eu também agiria assim", ou quando muito: "Se eu tivesse vivido em tais circunstâncias...". E se representarmos as peças da nossa época tal como se fossem históricas, é possível que ao público pareçam, igualmente, singulares as circunstancias em que ele age: nasce assim, uma atitude crítica.
As "condições históricas" não devem ser, evidentemente consideradas, nem tampouco serão estruturadas, como poderes obscuros (conforme planos): são sim, criadas e modificadas pelos homens. Aquilo que a ação nos mostra é que constitui, exatamente, essas condições.
Se uma pessoa se expressa numa perspectiva histórica, se reage de acordo com sua época, e se, noutras épocas, reagiria diferentemente, não será então, muito simplesmente, essa pessoa um modelo de todas as outras? Cada pessoa reage, na realidade de maneira diversa, conforme o tempo que passa e a classe a que pertence, quer tenha vivido em outra época, quer não tenha vivido tanto tempo como outra quer viva já no ocaso da vida, a reação é sempre, infalivelmente, diversa, mas igualmente precisa e idêntica à de qualquer pessoa; e será que tudo isto não leva a perguntar se não haverá, ainda, outras diferenças possíveis de reação? Onde encontrar o ser vivo, o próprio e inconfundível, aquele que não é absolutamente semelhante ao seu semelhante? É pela imagem que teremos de torná-la patente a todos e o processo para o conseguirmos será, precisamente, configurar a imagem da contradição. A imagem de contextualização histórica será como que um esboço, pois, em torno da figura em destaque indicará outros movimentos e outros traços. Ou então, imaginemos um homem que está fazendo um discurso que vale e que, de vez em quando, muda de opinião, ou apenas diz frases que se contradizem, de maneira que o eco, acompanhado-o põe as frases em confronto.
Tais imagens exigem, evidentemente, uma forma de representação que mantenha livre e móvel o espírito atento. Este tem de dispor da possibilidade de realizar montagens fictícias na nossa construção, " afastando as forças motrizes sociais ou substituindo-as por outra, através de tal processo, um comportamento adquire o aspecto de algo "anormal" e as forças atuantes na circunstância perdem por seu lado a sua naturalidade e tornam-se suscetíveis de serem manipuladas.
Identicamente, o técnico de obras fluviais, vendo um rio, vê, ao mesmo tempo, seu leito primitivo e ainda vários outros fictícios, possíveis se a inclinação do rio ou o volume d´água fossem outros. Enquanto ele vê em pensamento um novo rio, o socialista ouve, em pensamento, uma nova especie de diálogo entre os trabalhadores rurais à beira rio. Do mesmo modo, o nosso público deveria encontrar no teatro esboços e ecos dos acontecimentos que se desenrolam entre os referidos trabalhadores rurais.
A forma de representação que foi experimentada no Teatro de Schifbauerdamm de Berlim, entre a primeira e a segunda guerra mundial, e cujo objetivo era apresentar imagens do tipo a que nos referimos, baseia-se no efeito do distanciamento. Numa reprodução em que se manifeste o efeito do distanciamento, o objeto é suscetível de ser reconhecido, parecendo, simultaneamente, ser alheio. O teatro antigo e o Teatro Medieval distanciavam suas personagens por meio de máscaras representando homens e animais, o teatro asiático ainda hoje utiliza o efeito de distanciamento de natureza musical e gestual. Tais efeitos de distanciamento tornavam sem dúvida, impossível a empatia, no entanto, a técnica que permitia a empatia apoiava-se em recursos sugestivos de natureza hipnótica. Os objetivos sociais destes antigos efeitos eram absolutamente diversos dos nossos.
Os antigos efeitos de distanciamento subtraem completamente ao objeto reproduzido da intervenção do público, tornam-no imutável. Quanto aos novos efeitos, estes nada mostram de bizarro — só uma visão que não seja científica classifica de bizarro o que é desconhecido. Os novos efeitos de distanciamento têm apenas como objetivo despojar os acontecimentos suscetíveis de serem influenciados socialmente no libelo da familiaridade que os resguarda, hoje em dia, de qualquer transformação.
O que permanece inalterado há muito tempo, parece ser incapaz de ser transformado. Por toda a parte, as coisas que aparecem são de uma evidência de si tão grande que não precisamos fazer esforço para sua compreensão. Os homens encaram tudo o que vive entre si como um dado humano preestabelecido. A criança que habita um mundo de senilidade fica conhecendo o que se passa neste mundo: para ela, as coisas vão-se tornando correntes precisamente sob a forma por que ocorrem. E se houver alguém suficientemente ousado para desejar algo que esteja para além disso vai querê-lo por simples exceção. Mesmo que reconheça aquilo que a "Providência" lhe impõe é o que a sociedade providenciou, ainda a sociedade — esse poderoso conjunto que lhe são similares — haverá de parecer-lhe um todo maior do que a soma das partes, um todo em absoluto não suscetível de ser modificado; desta forma, tudo o que não é possível de ser influenciado será familiar, e quem desconfia do que e familiar? Para que todos estes inúmeros dados pudessem parecer duvidosos, teria de ser capaz de produzir em si um olhar de estranheza, idêntico àquele com que o grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As oscilações surpreenderam-no, como se jamis tivesse esperado que fossem dessa forma, foi assim que descobriu a lei do pêndulo. O Teatro, com suas reproduções do convívio humano, tem de suscitar no público uma visão semelhante, visão tão difícil quanto fecunda. Tem de fazer com que o público fique assombrado, o que conseguirá, se utilizar uma técnica que o distancie de tudo que é familiar.
Esta técnica permite ao teatro empregar, nas suas montagens, o método da nova ciência social, a dialética materialista. Tal método, para conferir mobilidade ao âmbito social, trata as condições sociais como acontecimentos em processo e acompanha as suas contradições. Para a técnica em questão, as coisas só existem na medida em que se transformam, na medida, portanto, em que estão em disparidade consigo. O mesmo ocorre em relação aos sentimentos, opiniões e atitudes dos homens através dos quais se exprimem, respectivamente, as diversas espécies de convívio social.
Um dos prazeres específicos da nossa época, que tantas e tão variadas modificações efetuou no domínio da Natureza, consiste em compreender as coisas de modo que nelas possamos intervir. Há muito de aproveitável no homem, dizemos nós, poder-se-á fazer muito dele. No estado em que se encontra, é que não pode ficar, o homem tem de ser encarado não só como é, mas também como poderia ser. Não se deve partir dele mas, sim, tê-lo como objetivo. O que significa que não devo apenas ocupar o seu lugar, mas por-me perante ele, representando todos nós. É esse o motivo que o teatro tem de distanciar tudo o que apresenta.
Para produzir o efeito de distanciamento, o ator teve de pôr de lado tudo o que havia aprendido antes de provocar no público um estado de empatia perante as suas configurações. Além de não induzir o público a qualquer espécie de transe, o ator não deve também colocar-se em transe. Os seus músculos deverão permanecer relaxados. Um gesto de voltar a cabeça, por exemplo, com os músculos do pescoço contraídos, pode arrastar atrás de si, "magicamente", os olhares e por vezes, até as cabeças dos espectadores; mas toda e qualquer especulação ou emoção perante um gesto desta ordem somente virá a ser debilitada pela magia que dele decorre.
Que a dicção do ator não peque por um tom de ladainha de púlpito e por uma cadência que embale o público de modo a fazê-lo perder a noção de sentido. O ator, mesmo que esteja representando uma personagem possessa, não deve agir possesso, como então poderia então o público descobrir que ele está possuído o possesso?
Em momento algum deve o ator transformar-se completamente na sua personagem. Para ele, deve ser desanimador um juízo que se segue: "Não, não representava o padre Lear, mas o encarnava, era o Lear em pessoa". O ator deve mostrar apenas a sua personagem, ou melhor, não deve vivê-la; o que não significa que, ao representar pessoas apaixonadas, precise mostrar-se frio. Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser os mesmos da personagem respectiva, para que os do público não se tornem também, em princípio, os da personagem. O público deve gozar, neste campo, de completa liberdade.
O ator está em cena com uma personagem dupla — Laugthon (Nota: O ator Charles Laugthon, n. 1889 — f. 1962) e Galileu — o sujeito que faz a demonstração — Laughton não desaparece no seu objeto — Galileu. Tudo isto, que deu a esta forma de representação a designação de "épica", não significa enfim, outra coisa senão que o acontecimento real, profano, não mais será levado aos olhos do público: está em cena Laughton e mostra como imagina Galileu. Ao admirar Galileu, o público não esqueceria naturalmente Laughton, mesmo que este tentasse uma metamorfose completa; contudo, perderia assim, as sensações e as opiniões do ator, completamente absorvidas pela personagem. O ator, neste caso, se apossaria de opiniões e dos sentimentos da personagem, de tal forma, que resultaria deles um padrão único, que importa, depois, a nós. Para impedir que se dê tal atrofia, o ator tem de transformar o simples ato de mostrar a personagem num ato artístico.
Utilizando uma forma de representação auxiliar, podemos completar com alguns gestos um dos aspectos da atitude dupla que referimos atrás — a do indivíduo que mostra — para lhe conferirmos evidência. Se o ator estivesse fumando, largaria de vez em quando, o charuto, para nos demonstrar ainda uma outra forma de comportamento da personagem simulada. Se dermos o devido desconto a qualquer precipitação e não pensarmos que tudo o que for lentidão é sinônimo de negligencia eis-nos perante um ator que poderá nos fazer abandonar, muito facilmente, tanto aos nossos como a seus próprios pensamentos.
Há mais uma outra alteração que é necessário efetuar na transmissão de reproduções por meio do ator, alteração esta que vem dando ao processo um caráter mais profano. Assim como o ator não deve iludir o público de forma que este o veja, mas à personagem de ficção no palco, também não deve simular que o que acontece no palco não é ensaiado, mas, sim, acontece pela primeira e única vez. A distinção de Schiller, segundo a qual o rapsodo tem de conferir ao acontecimento que narra um tratamento que o faça surgir como algo completamente passado, enquanto o mímico deve conferir a este acontecimento um tratamento que o torne completamente presente, não revela atualmente qualquer pertinência. Ao representar, o ator, deve fazer que fique completamente evidente o fato de "já no princípio e no meio saber o fim" e deve "conservar, assim, uma tranquila e absoluta liberdade" . Por meio de uma representação viva, narra a história da sua personagem mostrando saber mais do que esta, e apresentando "o aqui" e "agora", não como uma ficção que é possível devido à regras de representação, mas sim, tornando-os distintos do "em outro lugar" e do "ontem", a associação dos acontecimentos se tornará deste modo mais clara.
O que dizemos é especialmente importante na apresentação de movimentos de massas ou em casos em que o meio ambiente sofra profunda modificação, como, por exemplo em guerras ou revoluções. Ao público poderá ser. assim, apresentados tanto a situação global, como o decurso global da ação. Ao ouvir, por exemplo, uma mulher falar, será possível, imaginá-la também agindo de outro modo passada, por exemplo, uma semana, e será possível ao público imaginar outras mulheres,nesse momento, em outro lugar. Tal coisa será possível se a atriz representar como como se essa mulher tivesse vivido integralmente a época em que se insere e, agora, esteja a exprimir — só de lembrança, partindo da sua experiência dos acontecimentos ulteriores — o que, de entre suas experiências, tem validade "nesse momento". Só se pode distanciar a personagem apresentada e mostrá-la como "precisamente esta personagem" e, como "precisamente esta personagem, neste preciso momento" quando não se produz qualquer ilusão nem a ilusão de o ator ser a personagem, nem o de a representação ser o acontecimento.
Nesse ponto, ha que renunciar, porém, a mais uma ilusão, a de que qualquer pessoa atuaria como a personagem apresentada. O "eu faço isto" passou a ser "eu fiz isto", e agora há que transformar o "ele fez isto" em "foi isto o que ele fez, e não outra coisa". É de uma excessiva simplicidade as ações ajustarem-se ao caráter e o caráter as ações; as contradições que as ações e o caráter dos homens autênticos acusam, não poderiam ser reveladas assim. Será impossível demonstrar as leis da dinâmica social em "casos ideais;', pois a "impureza" (contradição) é justamente um atributo do movimento e de tudo o que é movido. É apenas necessário, absolutamente necessário, que se verifiquem, de um modo geral, condições de experiência, isto é, que haja possibilidade de conceder (na experiência contrária para cada caso, respectivamente. A sociedade é, dessa forma, tratada como se o que faz fosse feito por ela a título de experiência.
É mesmo que no ensaio se possa usar empatia para com a personagem (coisa que é preciso evitar na representação), ela deverá somente ser empregada como método
de observação entre muitos. A empatia é útil durante o ensaio — pois não foi a empatia que levou, pelo desmedido emprego que dela fez o teatro contemporâneo, a um desenho caracterológico refinadíssimo? A forma mais rudimentar de empatia manifesta-se quando o público pergunta apenas: " Como seria eu se isto ou aquilo me acontecesse? Que efeito faria eu se dissesse isto e fizesse aquilo?" ou qualquer outra coisa semelhante. Mas o que o ator deveria perguntar era: "Em que circunstâncias é que eu vi uma pessoa fazer aquilo?", para desta forma, tirando daqui um elemento e dali outro, conceber uma nova personagem com a qual a história poderá também ter-se desenrolado. A unidade da personagem depende da forma como se contradizem antes de cada uma das suas particularidades.
A observação é um elemento essencial da arte de representar. O ator observa o seu próximo com todos os seus músculos e nervos, num ato de imitação que é, simplesmente, um processo de pensamento. Se efetuar uma simples imitação, fará, quando muito, transparecer o objeto de sua observação aos olhos do público, o que não bastará, pois o objeto original possui sempre fraco poder de afirmação.
Para passar ao decalque à reprodução, o ator deve olhar para as pessoas como se elas lhe estivessem mostrando o que fazem, como se recomendassem que refletisse sobre o que fazem.
Sem juízos críticos e sem um objeto determinado, é impossível fazer uma reprodução. Sem conhecimentos, não é possível mostrar coisa alguma; como discernir o que é que vale saber? O ator que não deseja se assemelhar a um papagaio ou a um macaco tem de adquirir os conhecimentos sobre convívio humano que são patrimônio da época, tem de adquiri-los participando da luta de classes. Tal coisa parecerá uma degradação a muitos, a todos os que põem a arte nas alturas (só depois de acertadas as contas, é claro). Mas é uma luta travada na Terra, e não nas nuvens que se poderá decidir tudo o que é fato importante para o gênero humano, uma luta travada do "exterior" e não na cabeça. A ninguém é possível colocar-se num plano superior ao dos homens. A sociedade não terá um porta-voz comum enquanto estiver dividida em classes que lutam. Não ter partido, em arte, significa somente pertencer ao partido dominante.
A escolha de uma perspectiva é, assim, outro aspecto essencial da arte de representar, escolha que terá de ser efetuada fora do teatro. Tal como a transformação da Natureza, a transformação da sociedade é um ato de libertação: cabe ao teatro de uma época científica transmitir a alegria dessa liberdade.
Prossigamos analisando, por exemplo, como é que o ator terá de ler seu papel em função dessa perspectiva. É importante que não o "compreenda" demasiado rapidamente. E, mesmo que descubra, logo à primeira vista, o tom mais natural para o seu texto a maneira mais cômoda de dizê-lo, nuca deveria pensar que as afirmações que deve proferir são as mais naturais, deverá sim hesitar recorrer às suas próprias opiniões de ordem geral, deverá ter em conta todas as outras afirmações possíveis, em suma, assumir a atitude de quem se admira. Deve assumir uma atitude assim para não definir demasiado cedo- isto é, antes de ter registrado a totalidade das suas afirmações, em especial, as das outras personagens — a sua personagem, à qual muito haveria depois a acrescentar, decerto; deve assumi-la, sobretudo, para incluir na estruturação da sua personagem a alternativa: "não… antes pelo contrário...", alternativa indispensável, caso se pretenda que o público que representa a sociedade, veja em que estes lhe surjam como possíveis de serem influenciados. O ator, em vez de lançar mão apenas ao que com ele se harmoniza, de "tudo que é pura e simplesmente humano", de sobretudo recorrer ao que não lhe é harmônico, ao especial. Junto com o texto, terá de decorar suas primeiras reações, reservas, críticas e perplexidades, para que elas não venham a ser, porventura, banidas "por absorção" da configuração definitiva do seu papel e sejam, pelo contrário, conservadas permanecendo perceptíveis. Tanto as personagens como os elementos cênicos devem apenas despertar a atenção do público, em lugar de arrebatá-la.
A aprendizagem de cada ator deve-se processar em conjunto com a dos outros atores e da mesma forma, a estruturação de cada personagem tem de ser conjugada como a das restantes. É que a unidade social mínima, não é o homem, e sim dois homens.
Também na vida real nos formamos uns com os outros.
Os maus hábitos que prevaleceram nos nossos teatros ensinam-nos que uma das razões porque o ator reinante, a "estrela", sobressai, é o fato de se fazer servir por todos os demais atores, ao dar à sua personagem, uma feição terrível ou sábia, compele os parceiros compelem os parceiros a darem uma feição receosa ou atenta às personagens que figuram. Para que todos possam gozar desta vantagem, e para beneficiar a fábula, os atores deviam trocar os papeis entre si nos ensaios de modo que todas as personagens tivessem possibilidade de receber, uma das outras tudo aquilo que necessitam reciprocamente. Convém, igualmente, que os atores vejam as suas personagens serem imitadas por outrem, ou que as vejam com outras configurações. Uma personagem desempenhada por uma pessoa do sexo oposto revelará o seu próprio sexo mais incisivamente, se for representada por um ator cômico, ganhará novos aspectos quer trágicos, quer cômicos. Ao elaborar conjuntamente com outras personagens, ou pelo menos, ao substituir seus interpretes, o ator consolida, sobretudo, a decisiva perspectiva social a que obedece o seu desempenho. Assim, o senhor será somente senhor na medida em que o criado o permitir, etc.
Quando a personagem surge entre outras personagens da peça, já a sua estrutura foi submetida a inúmera intervenções. o ator deverá, então, estudar todas as conjecturas que o texto tiver suscitado. Mas é sobretudo em função do tratamento que outras personagens lhe dispensarem que fica conhecendo melhor a sua personagem.
Chamamos esfera do gestus aquela que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação as outras. A posição do corpo, a entonação, a expressão fisionômica são determinadas pelo gestus social; as personagens injuriam-se mutuamente, cumprimentam-se, instruem-se mutuamente, etc. às atitudes tomadas de homem para homem pertencem, mesmo as que, na aparência, são absolutamente privadas, tal como a exteriorização da dor física, na doença, ou a exterioridade religiosa. A exteriorização do "gestus" é na maior parte das vezes, verdadeiramente complexa e contraditória, de modo que não é possível transmiti-la numa única palavra, o ator, neste caso, ao efetuar uma representação necessariamente reforçada, terá de fazê-lo cuidadosamente de forma a nada perder e reforçar, pelo contrário, todo o complexo expressivo.
O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com uma atitude crítica as suas múltiplas exteriorizações: e é com uma atitude crítica que acompanha as exteriorizações das personagens que com ele contracenam, e ainda, as de todas as demais.
Para melhor conceber o conteúdo do gestus, percorramos as cenas iniciais de uma peça moderna de minha autoria A Vida de Galileu Galilei.
E já que o nosso propósito é verificar também como as diferentes formas de exteriorização se esclarecem reciprocamente, partamos do principio de que não se trata de um primeiro contato com a peça. Esta principia com higiene matinal de um homem de 46 anos, que a interrompe a certa altura para vasculhar alguns livros e dar ao jovem Andrea Sarti uma lição sobre o novo sistema solar. Para desempenhar esta cena, não é verdade que o ator deve saber que a peça termina com a ceia de um homem de 78 anos, a quem esse mesmo aluno, terá acabado de deixar para sempre? Iremos encontrá-lo, então modificado, modificação, muito mais terrível do que a poderíamos esperar que se produzisse durante este período de tempo. É com uma gula irrefreável que devora a comida, com o pensamento alheio a tudo o que não seja comer desembaraçando-se da sua missão didática de forma ignominiosa, como se tratasse de um fardo, e pensar que é o mesmo que outrora tomava distraído o leite, ao café da manhã, ávido de ensinar o jovem discípulo! Mas estará de fato distraído ao tomar o leite? O prazer que sente em beber e em lavar-se não se identificará com o que sente devido aos novos pensamentos que o tomam? E não esqueçamos, também, que ele pensa pela voluptuosidade de pensar! Tal circunstância parece merecer apreço ou censura? Aconselho a que apresente como algo que mereça apreço, uma vez que ao longo de toda a peça nada encontrará que revele desvantajosa para a sociedade e, sobretudo, porque o próprio ator — assim o espero — é um digno filho da era científica. Note bem, muitas e terríveis coisas se vão passar. O fato de o homem que saúda agora a nova era ser obrigado, no fim, a lançar-lhe um repto, e de estar repeli-lo com desdém — se bem que expropriando-o simultaneamente — a sua obra — relaciona-se diretamente com o acontecimento. No que respeita à lição, o ator terá de decidir se ela brota de um coração repleto, que não consegue travar a língua e que diria o mesmo a quem quer que fosse, neste caso até a uma criança, ou se esta criança que tem de levá-lo a revelar-lhe o seu saber, mostrando-se interessada, como boa conhecedora que é de sua personalidade. E pode também dar-se o caso de se tratar de duas pessoas que não conseguem conter-se, uma de fazer perguntas, a outra de responder, tal afinidade seria interessante, pois haveria uma altura que seria severamente lesada. Decerto o ator concordará em fazer, um tanto precipitadamente, a demonstração do movimento de rotação da Terra, pois esta não lhe rende nada; surge então o discípulo estrangeiro rico, que paga a peso de ouro o tempo do sábio. Embora este não mostre interesse pelos seus ensinamentos, Galileu não pode deixar de atendê-lo, uma vez que se encontra sem quaisquer recursos; assim o vemos dividido entre o aluno rico e o aluno inteligente, e o vemos escolher escolher entre ambos com um suspiro. Não pode ensinar muita coisa ao novo discípulo, e é, antes, este que lhe ensina, através dele toma conhecimento da existência do telescópio, descoberto na Holanda. Tira, assim, partido à sua maneira, da perturbação que veio ao seu trabalho matinal. Aparece o Curador da Universidade. A petição de Galileu solicitando aumento de ordenado foi indeferida, a Universidade não dá de bom grado a teorias físicas a mesma quantia que paga pela teologia; dele, que se move num plano subestimado de investigação, apenas solicita algo que tenha utilidade para o dia a dia. Pela maneira como apresenta o seu tratado, notará que Galileu está habituado às recusas e às repreensões. O Curador aponta-lhe o fato de a República conceder liberdade de investigação, se bem que remunerando mal; Galileu responde que pouca coisa pode fazer com esta liberdade, desde que não disponha de tempo necessário que provém de boa remuneração. Convém que não atribua à impaciência de Galileu um caráter demasiado sobranceiro, senão à sua pobreza fica em segundo plano. Momentos depois ele está preso a lucubrações que precisam de uma explicação. O arauto de uma nova era de verdades científicas pondera acerca da possibilidade de burlar a República, apresentando-lhe o telescópio como invenção sua. Verificará que esta nova invenção que ele estuda visando, unicamente, a dela apoderar, não significa para Galileu senão a maneira de ganhar alguns ducados. Porém, se passar à segunda cena, verá que, ao vender a Singoria de Veneza esta invenção, com um discurso que as mentiras aviltam, quase esqueceu o dinheiro, pois descobriu que o instrumento, além de ter uma importância militar, é também valioso no campo da astronomia. A mercadoria que fabricou como que para chantagem, chamemos finalmente as coisas pelo seu nome, parece-lhe agora excelente para a investigação que tivera de interromper para fabricá-la. Ao aceitar, lisonjeado, durante a cerimônia, as honras imerecidas, ao apontar ao sábio amigo as suas maravilhosas descobertas — descobrirá nelas uma excitação muito mais profunda do que a que foi provocada pela perspectiva de lucro pecuniário. E mesmo que a sua charlatanice pouco signifique sob este aspeto, ela revela a que ponto este homem está decidido escolher o caminho mais fácil e utilizar a sua razão tanto de uma forma inferior como outra superior. Uma prova mais significativa está iminente, e não é verdade que a fraqueza conduz a outra fraqueza?
É com uma interpretação como a que acabamos de realizar, expondo o "gestus" que informa a ação, que o ator se apodera da personagem, ao apoderar-se da "fábula".
Só a partir desta, do acontecimento global delimitado, pode o ator conseguir chegar, como de um salto, à personagem definitiva, que funde em si todos os traços particulares. Se o ator tudo fez para surpreender-se com as contradições contidas nas diversas atitudes — consciente de que terá também de levar o público a surpreender-se com elas — encontra na fábula, encarada, como um todo, uma possibilidade de associação dos ápetos contraditórios. Na medida em que a fábula é um acontecimento restrito, dela resulta um sentido bem determinado, ou seja, a fábula, entre vários interesses possíveis satisfaz certos e determinados interesses.
Tudo depende da fábula, que é o cerne da obra teatral. São os acontecimentos que ocorrem entre os homens que constituem para o homem a matéria de discussão e de crítica, e que podem ser por ele modificados. Mas o homem particularizado que o ator desempenha ajusta-se ao fim, a mais do que apenas acontece; se é preciso ajustá-lo apenas ao que acontece, é porque a ocorrência é tanto mais sensacional quanto se realiza num homem particularizado. A tarefa fundamental do teatro reside na "fábula" composição global de todos os acontecimentos-gestus, incluindo juízos e impulsos. E tudo isto que doravante, deve constituir o material de diversão do público.
Cada acontecimento comporta um "gestus" essencial. Richard Gloster corteja a viúva da vítima. Por meio de um círculo de giz é descoberta a verdadeira mãe da criança. Deus aposta com o diabo a alma do dr. Fausto. Wozyek compra uma faca barata para assassinar a mulher, etc.
Pela agrupação das personagens em cena e aos movimentos de grupo, há que alcançar a necessária beleza, principalmente através da elegância, da elegância com que são apresentados e expostos ao olhar do público todos os elementos que constituem esse "gestus".
Visto que o público não é solicitado a lançar-se na fábula, como se fosse num rio, e a deixar-se levar à deriva, os acontecimentos isolados têm de ser interligados de tal forma que as funções sejam evidentes. Os acontecimentos não devem seguir-se de maneira imperceptível, devemos, sim, ter a possibilidade de intervir neles com nossos juízos críticos. (E a dar-se o caso de o caráter obscuro das relações causais se revestir de interesse para nós, haveria que dar a essa circunstância um distanciamento suficiente). Devemos, então, contrapor cuidadosamente as diversas partes da fábula, dando-lhes uma estrutura própria, a de uma pequena peça dentro da peça. Para atingirmos este objetivo, a melhor maneira é a adotarmos títulos, como encontramos no item precedente. Os títulos devem conter flechas certeiras, dentro de uma perspectiva social, e explicar, simultaneamente algo acerca da forma de representação desejável, isto é, devem imitar, consoante o caso, o estilo do título de uma crônica, de uma balada, de jornal ou de um quadro de de costumes. O tipo de representação a que os usos e os costumes são comumente submetidos gera facilmente o efeito de distanciamento. É possível apresentar uma visita ou a maneira de lidar com um inimigo, ou um encontro de namorados, ou quaisquer negociações comerciais ou políticas, como um costume típico em determinado local de ação. Apresentando deste modo, o acontecimento único e especial assume um aspeto "estranho", pois surge como algo geral, algo que se tornou um costume. Já o fato de se perguntar se é ao próprio acontecimento, ou a qualquer aspeto dele, que deverá ser dado o alcance de um costume, distancia esse acontecimento. Nas barracas de feira chamadas panoramas encontramos um exemplo de estilo histórico poético. Como o ato de distanciar significa também conferir celebridade a um acontecimento, é possível, desta forma, apresentar certos acontecimentos simples como se fossem famosos, como se fossem universais e conhecidos, há muito, e como se nos esforçássemos por não infringir, em ponto algum, a tradição.
Em suma, são possíveis muitas formas de narração: algumas já são conhecidas, outras ainda estão por serem inventadas.
A determinação da qual o aspeto a distanciar e como fazê-lo depende da interpretação dada ao acontecimento global, e é a que o teatro pode e deve defender vigorosamente os interesses de sua época. Citemos como exemplo de uma interpretação deste tipo uma peça antiga, o Hamlet. À luz dos tempos sangrentos que correm e em que estou escrevendo estas linhas, tempos sangrentos e tenebrosos, à luz da existência de classes dominantes criminosas e de uma desconfiança generalizada na razão, da qual continuamente se abuso creio poder ler esta fábula da seguinte forma: está-se num tempo de guerra. O pai de Hamlet, rei da Dinamarca, abateu, numa guerra de pilhagem, para ele vitoriosa, o rei da Noruega. Quando o filho deste, Fortinbras, se arma para uma nova guerra, o rei da Dinamarca, é também derrubado e por seu próprio irmão. Os irmãos dos reis assassinados, e agora de posse do trono, fazem que a guerra se desvie noutro sentido, as tropas norueguesas tem permissão de atravessar o territória dinamarquês para realizarem uma incursão na Polônia.
Mas o Jovem Hamlet é então chamado pelo espirito belicoso do pai a vingar o crime contra ele perpetrado. Após uma certa hesitação em responder a um ato sangrento com outro ato sangrento, e estando, mesmo, disposto a partir para o exílio, encontra na costa de seu pais o jovem Fortinbras, que vai a caminho da Polônia com suas tropas. Sugestionado por esse exemplo, volta atrás, e numa bárbara carnificina, liquida o tio e a mãe, e liquida-se a si próprio, deixando a Dinamarca à mercê do norueguês. Esses acontecimentos nos mostram que o jovem Hamlet, que contudo já é homem feito, a utilizar de forma absolutamente insuficiente, a nova visão racional que adquirira na Universidade de Wittenberg. Tal visão é para ele um obstáculo nas questões de caráter feudal às quais regressa. Perante a práxis irracional, a sua razão é por completo improcedente. Tomba tragicamente, sacrificado à contradição entre uma forma de raciocínio e outra forma de ação. Esta maneira de ler a peça (que admite mais de uma forma de leitura) poderia, a meu ver, interessar o nosso público.
Todos os avanços, toda e qualquer emancipação da natureza, no domínio da produção, que levem a uma transformação da sociedade, todas as tentativas orientadas numa nova direção, que têm sido empreendidas pela humanidade para melhorar o seu destino, conferem-nos um sentimento de triunfo e de confiança e nos proporcionam o gozo das possibilidades de transformação de todas as coisas, quer a literatura nos descreva essas tentativas, quer como bem sucedidas quer como fracassadas. É exatamente isto o que Galileu exprime quando diz: "Em meu parecer, a Terra é algo muito nobre e digno de admiração, em vista das muitas e variadas modificações e gerações que nela surgem, continuamente".
A interpretação da fábula e a sua transmissão por intermédio de efeitos de distanciamento adequados deverão ser a tarefa capital do teatro. Mas não é o ator que precisa fazer tudo, ainda que nada se deva fazer que não esteja com ele relacionado. A fábula é interpretada, produzida e apresentada pelo teatro como um todo, constituído pelos atores, cenógrafo, maquiladores, encarregados dos guarda-roupas, músicos e correógrafos. Todos eles conjugam as suas artes para um empreendimento comum, sem renunciar, no entanto, à sua autonomia.
O gestus geral da demonstração, que sempre acompanha o gestus que está sendo mostrado em particular, é realçado por meio de apelos musicais dirigidos ao público nas canções. Os atores jamais devem fazer uma passagem natural da fala para o canto: devem sim, destacá-lo nitidamente do restante, através de recursos cênicos adequados como, por exemplo, mudança de iluminação ou emprego de títulos. A música, por seu turno, tem de resistir por completo à "sintonização", que lhe é geralmente exigida e a que a degrada, tornando-a um autômato subserviente. A música não deve "acompanhar" a não ser por comentários. Não deve contentar-se com "exprimir-se", esvaziando-se pura e simplesmente, do tom emocional que lhe sobrevêm durante os acontecimentos, compondo uma música triunfante e ameaçadora para as cenas do Entrudo do Galileu Galilei, para desfile de máscaras das corporações, musica que revela como a plebe deu às teorias astronômicas de um sábio um novo teor revolucionário. Identicamente, no Círculo de Giz Caucasiano, o modo frio e indiferente com que o cantor canta, ao descrever o salvamento da criança pela criada, apresentado no palco sob a forma de pantomim, põe a nu todo o horror de uma época em que a maternidade pode transformar-se em fraqueza suicida. A música pode, assim, revestir-se de diversas formas, sem perder a sua independência. Pode também adotar uma atitude, a seu modo, em relação a temas. Mas sua única preocupação pode ser também a de tornar variada a diversão.
Tal como o músico readquire a sua liberdade não tendo de criar estados de alma que facilitem ao público abandonar-se irresistivelmente aos acontecimentos em cena, o cenógrafo passa igualmente a dispor de grande liberdade, se não tiver que conseguir a ilusão de um quarto ou de uma paisagem, ao montar a cena. Bastam-lhe citações: estas citações devem, contudo, ser um testemunho histórico ou social muito mais incisivo do que o ambiente real. No teatro judeu de Moscou consegui-se o efeito de distanciamento do Rei Lear com uma construção cênica que sugeria um tabernáculo medieval. Neher colocou Galileu à frente de projeções de mapas, documentos e obras de arte da Renascença. No Teatro Piscator, Heartfield empregou, em Tai Yang Desperta, um fundo de bandeirolas giratórias com dísticos que indicavam as modificações da situação política, desconhecida, por vezes, das pessoas em cena.
Também à coregrafia advêm, de novo, obrigações de caráter realista. É um equivoco afirmar, como se tem feito ultimamente que a coreografia não é chamada a uma reprodução dos "homens tal como são na realidade". Arte, enquanto espelha a vida o faz com espelhos especiais. A arte não deixa de ser realista por alterar as proporções, deixa sim, quando as altera de tal modo que o público, ao utilizar as reproduções, na prática, em ideias e impulsos, naufraga na realidade. Evidentemente, é necessário que a estilização não suprima a naturalidade do objeto, mas sim, que a estilização a intensifique. Porém, seja qual for o caso, a verdade é que um teatro que tudo extrai do "gestus" não prescinde de um movimento e a graça de determinada disposição coreográfica, já em si, efeitos de distanciamento e a invenção pantomímica são um poderoso auxiliar da fábula.
Há, pois, que intimar todas as artes afins da arte dramática a não produzirem uma "obra de arte global", na qual todas renunciem a si próprias e se percam, mas sim, a promoverem, nas suas diversas formas, em conjunto com a arte dramática, uma missão comum. As relações que devem manter entre si consistem em se distanciarem reciprocamente.
Mais uma vez deve ser lembrado que esta missão é a de divertir os filhos de uma era científica, proporcionando-lhes o prazer dos sentidos e a alegria. Não serão nunca demasiadas as vezes que repetiremos, a nós próprios, alemães, esta recomendação, pois, entre nós, tudo resvala muito facilmente para o plano imaterial e do abstrato, a ponto de nos pormos a falar de uma mundivivência, mesmo depois de o mundo já se ter desintegrado. O próprio materialismo, entre nós, quase não vai além de uma ideia. Do prazer sexual extraímos deveres conjugais, o prazer artístico está a serviço da cultura, e aprender não significa conhecer aprazivelmente, ma sim, aferrar o nariz ao objeto de conhecimento. Nada do que fazemos representa um esforço aprazível, e, para justificarmos, os nossos atos, não invocamos que gozamos com isto ou aquilo, mas sim, quanto suor nos custou.
Há ainda outra questão a abordar: a entrega ao público do que se preparou nos ensaios. É necessário que o "gestus" de entregar algo já concluído esteja sempre subjacente à representação. Perante o público surge, agora, tudo o que não foi rejeitado e foi submetido a múltiplas repetições: as reproduções concluídas devem, pois, ser apresentadas com absoluta lucidez, para que possam ser recebidas com lucidez.
Ou seja, as reproduções devem ceder ao passo que está sendo reproduzido, ao convívio dos homens, e o prazer de sua perfeição deve ser elevado ao nível de um prazer superior, que deriva da circunstância de as normas que se manifestaram neste convívio humano serem tratadas como provisórias e imperfeitas. Por esta forma superior de prazer o teatro leva seu público a uma atitude fecunda, para além do simples olhar. No "seu" teatro o espectador poderá divertir-se, como se tratasse de um recreio, com tremendas e infindáveis canseiras que lhe dão a subsistência, e com pavor que lhe inspira a sua interminável transformação. Num teatro deste tipo o público tem a possibilidade de educar a si próprio da maneira mais simples de existência é a arte que a proporciona.
Nota do tradutor:
O Teatro "Épico" E Bertold Brecht — O teatro de Brecht propõe contradições, análises profundas, sobretudo sociais, recheadas de climas de humor e jogo. Brecht chama seu teatro a princípio de "épico" e que se opõe ao teatro "aristotélico". Ao falar de teatro épico (em alemão: Episches Theater), ele queria fazer um te- atro cerebral,lento, que desse tempo à meditação e comparação. O teatro épico coloca diante do público situações onde devem ocorrer mudanças. O público não é um consumidor passivo, toma decisões a favor ou contra o que vê, transformando-se num "público produtivo", permitindo-lhe desenvolver um sentido crítico para chegar às suas próprias soluções. Brecht propõe a teoria do distanciamento ou estranhamento (em alemão: v-effekt) para organizar sua proposta de montagem. Impede ao público identificar-se instintivamente e confundir o teatro com a realidade. Na me- dida em que reconheça uma situação como histórica, o mundo aparecerá capaz de ser transformado. Dessa forma em suas soluções cênicas existem intervalos, canções que interrompem a trama, prólogos e epílogos, conselhos al público, gestos, música, cenografía...
Inclusão | 04/07/2018 |