Terceiro-Mundismo e Socialismo

Cajo Brendel

28 de abril de 2016


Fonte: Crítica Desapiedada

Tradução: Breno Teles, a partir da versão disponível em: https://archivesautonomies.org/spip.php?article2151. Revisado por Aline Ferreira.

HTML: Fernando Araújo.

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Durante as duas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, a cena política foi dominada por lutas anti-imperialistas dos povos colonizados. A revolução chinesa é apenas o caso mais importante de um povo colonial engajado em combates extremamente acirrados contra um inimigo imperialista muito mais poderoso – Cuba, Argélia e o Vietnã são também exemplos dentre outros.

Enquanto essas lutas anti-imperialistas se intensificavam, a classe operária metropolitana conduziu poucas batalhas notáveis, do ponto de vista político, contra seus próprios mestres; em nenhum dos países industrializados o proletariado se levantou contra a burguesia para questionar o seu poder político. A Revolução Húngara de 1956, assim como a Revolta de Kronstadt, em 1921, na Rússia,(1) teve uma importância política, mas tendo em vista que ela se desenrolou em um país onde a propriedade privada dos meios de produção já haviam sido abolidos, não entrou na análise marxista ortodoxa da dinâmica social, e seu significado mais profundo permaneceu ignorado. Foi em tais circunstâncias que emergiram as teorias “terceiro-mundistas”.

Essas teorias centraram-se principalmente nos dois pontos seguintes:

1º) O proletariado dos países industrializados não se revolta porque está saciado pelas migalhas da pilhagem do mundo colonial. Esse fato reprime a sua iniciativa revolucionária. O proletariado desses países está corrompido e integrado na ordem burguesa.

2º) A população dos países coloniais, cujo trabalho fornece as matérias-primas necessárias ao imperialismo, constitui um “proletariado mundial” (mesmo que se trate de camponeses, que não estão envolvidos em uma atividade industrial). Em escala global, eles são a classe revolucionária. E são eles quem se levantaram nas revoltas armadas contra o imperialismo. A revolução anticolonial é, portanto, a revolução socialista da nossa época.

3º) Os camponeses do mundo inteiro pegarão em armas e cercarão os centros urbanos (tal como na China e em Cuba). Por outro lado, esses centros se afundarão em uma crise econômica (tendo sido privados das fontes de matérias-primas, de mercados e de mão-de-obra). O proletariado urbano, nessa situação, se juntará à revolução vitoriosa dos camponeses coloniais.

Os três pontos acima, talvez simplificados de certa forma, representam o que entendemos por teoria do “terceiro-mundismo”. Como qualquer outra ortodoxia, ela possui diversas variantes, cada qual pretendendo ser a única autêntica. De qualquer maneira, esses três pontos constituem o denominador comum daqueles que aderem à ideologia “terceiro-mundista”.

O marxismo “terceiro-mundista” ignora as hipóteses fundamentais da análise marxista da sociedade. De acordo com Marx, uma revolução não é apenas uma revolta contra a miséria. Ela é a legitimação de um novo conjunto de relações sociais, surgidas antes da revolução como resultado de uma nova tecnologia de produção.  Ainda segundo Marx, não é a revolução que produz uma sociedade nova, mas um novo conjunto de relações sociais que produz uma revolução, e que lhe permite desenvolver-se. Assim, as grandes revoluções inglesas (1640) e francesa (1789) apenas legitimaram a ordem social que a burguesia tinha engendrado durante dezenas de anos.

Qual é o tipo de sociedade que amadureceu nos países coloniais antes de sua independência? O proletariado industrial desses países era quase inexistente e não podia desenvolver nenhum papel decisivo. A luta dos povos coloniais era, antes de tudo, uma revolta camponesa. Revoluções dirigidas por partidos semimilitares, realizadas pelo viés das lutas militares, produziram regimes profundamente marcados pelas suas origens. As novas estruturas políticas são a imagem das formas da luta pelo poder: arregimentadas, autoritárias, doutrinárias, burocráticas. Novos regimes desse tipo não podem inspirar milhões de pessoas que vivem em países modernos e industrializados. Toda revolução em um país subdesenvolvido produziu a dominação absoluta de uma burocracia política ou militar. Mesmo no caso em que são tolerados pelas suas próprias populações (por vezes após o encarceramento ou execução de toda a oposição – inclusive a esquerda), esses regimes não podem servir de modelo ou constituir um objetivo a ser alcançado pela população de uma sociedade industrial moderna.

Isso não quer dizer que essas revoluções não tiveram nenhum valor. Onde milhares de pessoas morrem de fome, reclamar da falta de democracia é estar fora dela. Mesmo que as revoluções chinesa, cubana e argelina não tivessem feito nada mais que diminuir a miséria que reinava nesses países coloniais, elas não teriam sido inúteis. Na verdade, elas fizeram mais do que encher os ventres famintos: eliminaram o analfabetismo, aboliram a propriedade privada da terra, começaram a industrialização, etc. Mas nada disso pode ser considerado, nem implicitamente e nem explicitamente, como tendo a menor relação que seja com o socialismo: os países desenvolvidos produziram muito mais que isso e nós os criticamos todos os dias, sem piedade. O socialismo concerne uma mudança fundamental nas relações de produção: a abolição da relação dominante-dominado nas forças de produção e em todos os aspectos da vida social. As revoltas do terceiro-mundo não produzem um novo tipo de ordem social que seja válido para a sociedade industrial.

Além disso, a margem de autonomia política nacional existente em tais Estados é frequentemente muito limitada. A ajuda econômica e militar, os “conselheiros” onipresentes, a herança de estruturas políticas particulares e correntes estabelecidas em questão de comércio, tendem a deixar tais estados em uma situação de dependência em relação aos seus antigos mestres imperialistas: veja as relações da Argélia com a França.  Naquela região, onde a revolta foi mais profunda, criam-se novas estruturas políticas e novas correntes comerciais e, em geral, o país se encontra em vias de se submeter cada vez mais à influência de outras superpotências. O apoio cubano à invasão russa da Tchecoslováquia mostrou a que ponto Castro dependia da compra da colheita de açúcar pelos russos – o comércio dos princípios estando em relação direta com o princípio do comércio. Mesmo quando uma independência “política” real é adquirida, como no caso da China, os princípios são sacrificados perante as vantagens encontradas pelo comércio. Em 1964, o PC maoísta japonês sabotou uma greve geral, relativo aos seus esforços, para favorecer as trocas sino-japonesas e, dois anos depois, soube que os chineses forneciam aos EUA aços planos e redondos que eram cruciais ao seu esforço de guerra no Vietnã.

Mesmo se a “catástrofe econômica” dos centros metropolitanos não se realiza mais – como qualquer um que seja mais familiarizado com a primazia do mercado interno no capitalismo moderno poderia facilmente ter previsto –, vê-se que os países industrializados dependem menos dos países subdesenvolvidos do que esses dos primeiros. Não apenas as fibras artificiais podem substituir o algodão, mas, além disso, os países produtores de algodão representam mercados extremamente pobres para os automóveis ou computadores, por exemplo. Os países industrializados modernos, em relação ao passado, dependem cada vez menos das suas antigas colônias, tanto por matérias-primas quanto pelos mercados. A Holanda perdeu a Indonésia, a Bélgica o Congo, os EUA foram expulsos de Cuba sem que suas economias afundassem.

Todavia, as lutas dos povos coloniais trouxeram algo ao movimento revolucionário. O fato que populações camponesas mal-armadas puderam enfrentar as forças enormes do imperialismo moderno abalou o mito da invencibilidade do poder militar, tecnológico e científico do Ocidente. A sua luta também revelou a milhões de pessoas a brutalidade e o racismo do capitalismo e conduziu diversas pessoas, sobretudo entre os jovens e estudantes, a entrar em luta contra os seus próprios regimes. Mas, o apoio aos povos coloniais contra o imperialismo não quer dizer, entretanto, o apoio a alguma das organizações implicadas na luta.

Nossa recusa de apoiar organizações políticas que possuem programas nacionalistas, burgueses ou capitalistas de Estado, não é apenas devido a uma questão de fidelidade a princípios revolucionários, morais e ideológicos. É também uma questão de solidariedade política. Em diversos casos, acontece que em grandes organizações, ricas e barulhentas, existem pequenos grupos de militantes e revolucionários internacionalistas em conflito extremamente aguçado não apenas contra o imperialismo, mas também contra seus próprios “companheiros” nacionalistas. Na China, por exemplo, tanto os anarquistas quanto os trotskistas foram esmagados no caminho do PC em direção à vitória. Os advogados do “realismo” que dão o seu apoio mais em função do tamanho do que do programa, em função de condições objetivas ao invés da consciência subjetiva, traem não apenas os seus princípios revolucionários, mas também aqueles que lutam pelos mesmos princípios no país em questão. É a política dos que se adaptam às “condições objetivas” em detrimento da daqueles que ousam desafiá-las e transformá-las.


Notas de rodapé:

(1) Cf. Hongrie, 1956 de Andy Anderson; e Ida Mett, La Commune de Cronstadt, Crépuscule sanglant des Soviets [A comuna de Kronstadt, crepúsculo sangrento dos sovietes], Cahiers Spartacus. (retornar ao texto)

Inclusão: 19/01/2022