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A instrumentalização da literatura anarquista e de sua divulgação no período que antecedeu a I Guerra Mundial dá-se de forma variada: através de efêmeras editoras; pelo esforço do próprio autor; pela listagem de livros e jornais, nacionais e estrangeiros, postos à venda pela redação de um periódico. Raramente temos a existência de editores no sentido moderno, isto é, os que por conta própria traduzem autores estrangeiros e publicam os nacionais e que, de lato, internacionalizam seu comercio.
Esse processo se apresenta em diferentes graus na história do anarquismo. Na primeira, na segunda e na terceira corrente, as publicações acráticas (livros, panfletos, jornais etc) são esporádicas.
Na primeira corrente, a individualista, o papel principal cabe a Max Stirner, com a obra O único e a sua propriedade. cuja repercussão se dá mais nos países anglo- saxônicos. Para ele,
"o indivíduo humano, corporal, é a única realidade e o único valor; uma energia voluntária, uma impulsão egoísta e egocêntrica, que não se curva diante de nenhum ídolo, que não reconhece senão a si próprio e que se serve de tudo como um instrumento".
Procurar uma solução para o indivíduo corporal e egoísta equivale, para Stirner, a conservar a religião sob novas formas, isto é, a aumentar de fato a servidão do homem. “Eu” é a única lei, não há obrigação para com nenhum código, nenhum credo, nenhuma concepção filosófica.
A sua argumentação individualista volta-se também para a crítica ao liberalismo, à propriedade e a outros aspectos da sociedade. No entanto, a produção literária desta primeira fase, que engloba a década de 1840, é restrita, igual ou pouco maior é a produção da segunda corrente, a mutualista, de 1840 a 1850, que apresenta maior acento social do que a anterior. Seu teórico é Joseph Pierre Proudhon; ele afirma ser a propriedade um roubo, portanto
“incompatível com a justiça, porque determina a exclusão dos produtores do direito a uma repartição equitativa dos produtos, fruto do trabalho comum”.
A revolução é necessária, mas não deve ser violenta. Fundamentais são as tendências
‘‘associativas e federativas dos homens, cuja ação autonômica contra a intervenção dos monopólios deveria levar à liquidação dos Estados e elevar a associação e a federação dos órgãos de verdadeira utilidade social ao grau das necessidades humanas, sem obstáculos autoritários”.
A terceira corrente é a do coletivismo autoritário, que se desenrola primordialmente na época da I Internacional (1864-1872). Para se contrapor a Marx, Mikhail A. Bakunin funda a efêmera Aliança Internacional pela Democracia. O seu programa defende o ateísmo; fala da abolição total das classes e da luta pela igualdade política, econômica e social dos dois sexos; defende que a terra e os instrumentos de produção devem tornar-se propriedade coletiva e que os Estados políticos e autoritários devem limitar-se à simples função de administrar os serviços públicos nos diferentes países e desaparecer para ceder lugar à união universal das livres associações, tanto agrícolas como industriais. Para Bakunin, a educação é para todos e a ação política só tem sentido se for utilizada para o triunfo da classe operária contra o capital; a passagem do capitalismo à sociedade comunitária é processo baseado na
"ideia de liberdade e solidariedade, considerada como o motor da história”; “o Estado é quem cria o capital e o capitalismo é dono do capital graças ao Estado”.
Afirma:
“...nós dizemos: destrua o capital — e também a apropriação de todos os meios de produção por alguns” e o “Estado acabará por si mesmo”.
E diz ainda que a força motriz da revolução social deve caber aos mais miseráveis da sociedade — desclassificados, subproletariado urbano, camponeses — e que, unindo o subproletariado das cidades ao do campo, com vistas a uma ação revolucionária comum, teremos o processo para o desencadeamento da revolução social.
Estes momentos se desenrolam numa Europa em mudança, prenhe de crises (1830, 1848, golpe de 1851, Comuna de Paris), mas e na França que temos o pivô do processo de reação e o da contrarreação. Passados alguns anos após a brutal aniquilação do comunards (30.000, entre homens e mulheres), pouco a pouco aparecem indícios de que o movimento operário se reorganiza. Resistindo à lei sobre o fechamento dos sindicatos e agrupamentos operários, às medidas sobre a censura e às leis de exceção, os trabalhadores se reúnem nas províncias e em Paris, organizando congressos a partir de 1876. O primeiro congresso é seguido por outros, a cada ano. Surgem jornais e literatura, das diversas correntes, distinguindo claramente as diferenças entre anarquismo e socialismo. E entre 1880 e 1890 que se define melhor a nova corrente acrática, a quarta delas, denominada comunista libertária. O eixo principal de sua expressão se dá na França e na Itália, apesar de um dos seus líderes ser o russo P. Kropotkin. Outros nomes: Enrico Malatesta, Carlos Cafiero, Cario Pisacane, Jean Grave. A nova corrente defende a ideia de que o processo histórico é pacifico e inevitável e que a mudança e impulsionada pelo desenvolvimento da sociedade, principalmente de suas forças produtivas, e pelo progresso da educação. Para Kropotkin,
“todas as coisas são para todos os homens, porque todos os homens têm necessidades, porque todos os homens contribuíram segundo suas forças para produzi-las e porque não é mais possível avaliar a parte de cada um na produção de riquezas do mundo. Se o homem e a mulher realizam a parte justa de seu trabalho, eles devem ter também a justa parte de tudo o que é produzido por todos, e esta parte é suficiente para assegurar o seu bem-estar”.
A quinta corrente é a da violência(1) e se limita aos casos de atentados perpetrados contra autoridades e indivíduos pertencentes à classe dominante; e, em alguns casos, a populares. A figura maior é a de Ravachol, que inicia essa onda de atentados em 1891, prosseguindo com dezenas de outros incidentes terroristas. Finalmente, o aparecimento do anarco-sindicalismo, a partir dos anos 1890, inaugura a sexta corrente do anarquismo.
De todas, a quarta é que nos interessa. Como vimos, ela representa a retomada do movimento social francês — e, em parte, europeu. Fugindo do massacre da Comuna de Paris, muitos militantes se refugiam na Suíça ou nas proximidades da fronteira francesa com aquele pais; outros, em Barcelona e até nas Américas.
Os refugiados organizam um congresso secreto em Lion, em 1872. O esforço não resulta em dividendos imediatos, porque a reação governamental se intensifica e, por sua vez, os operários mais ativos se dividem, nesta hora, em coletivistas (anarquistas) e mutualistas (socialistas). Em 1877, a crise aumenta com o aprofundamento da divisão ideológica, hora em que Jules Guesde se afasta do movimento acrático e funda o jornal Égalité; em 1882, inaugura o Partido Operário. Além dessa defecção, temos a de Paul Brousse, em fins de 1877.
E porém em 1881 que socialistas e anarquistas se separam definitivamente.
"Ate então, os guedistas, os mutualistas e os coletivistas — que agora se voltavam para o comunismo anarquista — participaram dos congressos do Trabalho Nacional realizados durante a segunda metade dos anos de 1870, na esperança de criar um movimento dos trabalhadores unificado; apenas os blanquistas. liderados por Edouard Vaillant. mantiveram-se à parte. O primeiro e o segundo congressos, em Paris (1876) e Lion (1878), foram dominados pelos moderados mutualistas. Quando o terceiro congresso se realizou, em Marselha (1879), evidenciou-se uma importante mudança no clima geral da França: as tendências reacionárias do início da Terceira República enfraqueciam e diversos movimentos de esquerda começaram a surgir. No congresso de 1879, a nova atmosfera refletia-se no triunfo do coletivismo sobre o mutualismo; os socialistas e os anarquistas votaram juntos em favor da propriedade pública dos meios de produção. Discordaram, entretanto, quanto à questão da atividade parlamentar, e a vitória guedista sobre esse ponto preparou a ruptura da instável unidade entre as várias facções."(2)
O mal-estar entre anarquistas e socialistas acaba em ruptura definitiva em 1881, depois de ambos discordarem sobre a identificação dos seus delegados ao congresso. A partir de então, “um movimento anarquista, separado e reconhecido, iniciou sua trajetória independente na França”. No entanto, os anarquistas continuam a negar a ideia de organização: os cinquenta grupos existentes deliberam por iniciativa própria, e é somente com a fundação da Confederação Geral do Trabalho (CGT), em 1906, que se concretiza uma organização una e permanente na França. Por sua vez, os socialistas estão organizados em partidos, que se dividem em cinco facções diferentes, que irão formar um único Partido Socialista em 1905.
O avanço do movimento operário, tanto do ponto de vista das leis sobre sindicatos e segurança de trabalho como do direito de manifestação, mostra a sua recuperação, a partir da década de 1880. Um dos efeitos da herança é a proliferação de grupos anarquistas e de jornais, seus instrumentos de propaganda. Com exceção do jornal La Révolution Sociale, financiado secretamente pela polícia e que aparece em 1880, temos Le Revolté (1883), de Jean Grave, que depois passa a se denominar La Révolte (1885); Le Droit Social (1882); L'Étandart Révolutionnaire (1882). E o mais importante de todos. Le Pèrepeinard (1889), de Emile Pouget, com seu caráter doutrinário e humorístico e linguajar popular. Na última década do século temos o Libertaire e o Journal du Peuple, que surgem após a Lei da Antiviolência, decretada em 1893. Na França, as medidas repressivas governamentais contra os atentados individuais não resultam em dividendos imediatos para as autoridades, mesmo depois de terem armado o Processo dos Trinta, isto é, o julgamento dos que praticaram atos de violência e dos que, teoricamente falando, justificaram estes atos. Apesar de tudo, Jean Grave, Sebastian Faure, Paul Reelus, Emile Pouget e outros são absolvidos e o governo consegue condenar unicamente dois acusados. Com essa vitória o anarquismo volta a se expandir.(3)
No entanto, o avanço anarquista na França não se iguala ao das correntes socialistas. Ainda mais, a avaliação de sua força leva o interessado a basear-se em dados menos seguros por falta de estatística, que seriam possíveis se os acráticos fossem organizados em partidos ou participassem de eleições. A avaliação numérica, entretanto, é feita por outras fontes, como a polícia, e também pelo próprio movimento anarquista. Apesar das dúvidas que podem ser levantadas, elas são as únicas existentes. Um dos primeiros levantamentos é de iniciativa do jornal La Révolution Sociale, em 1881: publica a lista de grupos, com o nome e o endereço de seus responsáveis. Segundo a lista, Paris conta dez grupos, mais 2 nos bairros e 26 nas províncias; entre as províncias, o Este e o Midi (sul) são os mais importantes. Pela informação do próprio jornal, a lista está “longe de ser completa”. Alguns acreditam que outros grupos, possivelmente existentes, evitam se denunciar por causa da policia. O jornal Le Revolté, de Jean Grave, no mesmo ano confirma a informação do La Révolution Sociale. Em relatório policial secreto, o agente Droz chega à mesma conclusão: La Révolution assinala 38 grupos; Le Revolté 40: e a polícia 42. Para o último, 16 na capital; Lion e Reims, 3 cada um; Narbonne, Saint-Etienne e Toulouse, 2; e apenas 1 em outras 12.
No ano seguinte, Le Revolté assinala que existe em Paris "uma dezena de grupos anarquistas" e cada um deles possui um pequeno número de aderentes. O Relatório de Droz fala de 10 grupos em Paris e na Província, além dos 7 que existiam desde o ano anterior. Em 1883, segundo a polícia, há 13 grupos em Paris, que reuniam 200 membros. Em 1887 a polícia afirma existir 19 grupos, cada um com 20 a 30 membros. Em 1887, segundo a policia, existem 19 membros. No ano seguinte, a polícia diz que há 14 grupos em Paris. No começo da década de 1890, com a reação governamental aos atentados e o Processo de Lion (1893), o número de anarquistas cai, e assinala-se entre 1890 e 1894 o total de 50 grupos. Finalmente, por dados comparativos, pode-se avaliar, de 1894 em diante: 1.000 militantes ativos; 4.500 simpatizantes, que opinam a favor do anarquismo, ou até são leitores dos seus jornais; 100.000 que “sentem simpatia vaga pelo movimento e que votariam nos candidatos anarquistas se se apresentassem às eleições."(4)
Quando os anarquistas falam de si próprios, eles usam o termo “grupo anarquista”. A denominação não se assemelha a nada que possa estar ligado às seções ou grupos de outros partidos. Não há sede nem cotização fixa, e nenhum dos companheiros é obrigado a dizer de onde vem, o que faz e para onde vai. O local da reunião do grupo é lugar de passagem, onde cada um discursa à vontade, é lugar de educação e não de ação. Ninguém é obrigado a revelar seus projetos a quem quer que seja. Os primeiros a se espantarem com o ato de um Ravachol, por assassinar o ermita de Chambles, ou de um Vaillant, por jogar uma bomba na Câmara dos Deputados, serão os próprios membros do grupo a que pertenciam esses companheiros. A rotatividade de indivíduos que passa pelos grupos e depois não mais aparecem é norma comum. Esta é uma das razões negativas para se avaliar o contingente anarquista e a razão da dificuldade da polícia em verificar as diferenças entre os elementos perigosos e falantes.(5)
Com a maior parte da sua população flutuante, e a mínima permanente, temos, assim, a existência do que os anarquistas consideram organização. A composição social e os costumes dessa população variam entre oficiais de diversas atividades profissionais, preferentemente aquelas em que o indivíduo possa “filosofar” enquanto exerce sua atividade. Num levantamento profissional feito em 1894 sobre 500 anarquistas parisienses, temos, entre os que se denominam propagandistas: 10 jornalistas, 25 tipógrafos, 2 corretores; entre os adeptos: 17 alfaiates, 16 sapateiros, 20 operários de construção, 15 marceneiros, 12 bombeiros, 15 mecânicos, 10 pedreiros e 250 de diversas outras atividades.(6)
À dinâmica de organização e de manifestação se complementa por alguns traços herdados de outros movimentos e por outros traços que são originais. O uso da ação discursiva e um dos instrumentos utilizados pelos anarquistas, o que provoca o aparecimento de uma elite de oradores. Fortune Henry, Tortelier, Jacques Prolo, Tennevin, Paul François e muitos outros fazem-se notar pela ação oratória em viagens incessantes pela França, na tentativa de difundir por meio da palavra o pensamento acrático. Exemplo da preparação do projeto nos é dado por Sebastian Faure em 1891. Pretendendo excursionar, com a intenção de levar “boa palavra” aos companheiros do interior, ele envia circular pedindo auxílio financeiro para os gastos necessários e ausculta quem deseja ouvir a sua palavra. Com os dados em mãos Faure projeta a sua viagem, que engloba Troyes, a região lionesa, Marselha, Toulon, Bordeaux etc. Somente na região de Lion, onde passa por cinco cidades, temos a receita de 3.829,75 francos, correspondentes a 40 reuniões, e o total de 4.114,00 francos em despesas (aluguel das salas: 1.107,00: anúncios: 1.698,00; cartazes: 262,00; gastos de viagem: 310,00; gastos pessoais: 767,00).
Durante seu itinerário são realizadas 40 reuniões públicas; afixados 2.460 cartazes; distribuídos 134.000 manifestos; vendidos 2.000 brochuras de sua autoria. As entradas pagas totalizam 15.319 francos: 12.000 não pagaram entrada; e a média de frequentadores por conferência é de 683 indivíduos.(7)
Apesar de o anarquismo viver seu período de amadurecimento nas duas décadas finais do século XIX, a ênfase no individualismo torna-o vulnerável e frágil, levando-o a repetir os mesmos erros. Desta maneira, a exaltação da vontade pessoal estreita a sua visão de sociedade, deturpa a análise das forças sociais existentes e enfraquece o poder de luta contra as classes dominantes, que cada vez mais se reforçam para se manterem como força hegemônica. Por essas e outras razões — a que se acrescenta a exaltação da dinâmica artesanal e suas consequências — o anarquismo se caracteriza, em parte, pelo seu aspecto conservador e pouco dinâmico. Com isto não queremos afirmar que o movimento não tenha traços renovadores e progressistas mas, dentro da sua própria evolução, o aspecto de renovação é menor do que a acomodação. Para exemplos, vamos analisar a vida e obra de Jean Grave.
Jean Grave nasce em 16 de outubro de 1854, em Breuil-Sur-Couzc, e falece em 8 de dezembro de 1939. Vai morar em Paris quando tem seis anos de idade; com o tempo, trabalha como sapateiro e, depois, como tipógrafo.
À esta atividade ele dedica a maior parte de sua vida. É conhecido como “uma boa cabeça de operário, de olhar leal e inflexível, de fisionomia enérgica, beirando a ingenuidade pela tenacidade quase cândida de sua fé. Pelo menos reconheciam sua probidade”. Grave considera-se o guardião vigilante da pura doutrina, e os anarquistas que não são seus amigos o chamavam de “o papa da rua Mauffetard"(8)
Em 1871 chega a Paris e, no ano seguinte, torna-se testemunha dos acontecimentos da Comuna de Paris. À partir de 1876, trabalhando como sapateiro, começa a frequentar reuniões anarquistas; em 1877 vota em eleição, erro que não irá praticar nunca mais. Em 1879 e 1880 participa da luta pela anistia, frequenta o Congresso da Federação do Partido dos Trabalhadores de França. Em 1882, lança pequena brochura anarquista, La société au landemian de la révolution, que, ampliada em 1895, vai denominar-se La société future. A partir de 1883, seu nome e trabalho começam a tornar-se populares. Uma das razões é o convite que recebe, em 1883, de Elisée Reclus para dirigir, em Genebra, o jornal La Revolté. O jornal, de 1879, é dirigido e impresso no estrangeiro por causa da perseguição da policia. Sua tiragem, no inicio, oscila entre 1.300 e 2.000 exemplares, passando a 5.000 em 1888 e a 8.000 quatro anos depois. Em 1885, passa a ser editado em Paris, pretexto para que as autoridades multem o jornal e prendam seu diretor. Apesar de sua tenacidade, Jean Grave é obrigado a fechar o periódico em setembro de 1887. Ao parar de editar o jornal, imediatamente abre outro, Le Revolte (1887-1894), que é a mesma publicação com outro nome. Afinal, com o aumento da reação durante os anos de 1893 e 1894, Le Revolte desaparece e surge o Temps Nouveaux (4-5-1895 a 1-8-1914).
É através deste último jornal que Jean Grave se torna mais conhecido. Não por ser unicamente jornalista, mas também, como veremos, escritor de bagagem literária razoavelmente grande e obra variada.
O aparecimento do Temps Nouveaux se deve à proposta de M. Michelot, que oferece a Jean Grave o capital necessário e um salário de redator-chefe. Para a total aquiescência de Michelot, seria preciso que houvesse a colaboração de Kropotkin, Reclus, Severine e outros, todos eles pertencentes à ala pacifica, a comunista-libertária, como Jean Grave. Diante da exigência, Grave escreve para Londres, onde mora Kropotkin, e para Bruxelas, onde reside Elisée Reclus. Este confessa não poder continuar a auxiliar financeiramente, mas teria a máxima vontade de fazê-lo em outros campos; Kropotkin, entusiasmado pelo futuro jornal, promete doar dinheiro e trabalhos literários.
A mecânica da articulação do jornal segue lógica característica. Certo do apoio inicial — financeiro e intelectual — Jean Grave procura tipógrafo. Sua casa — ou a redação e a impressora, se quisermos — situava-se no fim do vale de La Bierre, no fim da rua Mauffetard.
“Uma velha casa (...) rodeada de janelas irregulares, com algumas delas sofrendo estrangulamento de portas. E no alto, nesta mansarda que se assemelha a uma pequena casa, que pousa este ninho de anarquistas, em pleno vento e em pleno céu, como um ninho de andorinhas”.(9)
Depois de um incidente e da saída do primeiro tipógrafo, o segundo acaba permanecendo na sua função até 1908. Pronto o esquema para o aparecimento do jornal, torna-se necessário batalhar no campo permanente da tiragem, dos colaboradores e das finanças. Segundo os dados, os primeiros números saem com 18.000 exemplares. Uma das razões do sucesso e o anúncio de que haveria a colaboração de nomes ilustres; porém, como parte deles deixa de enviar artigos, pouco a pouco a tiragem abaixa e se mantém em 8.000 exemplares por número. Ao lado de alguns que deixaram de cumprir a promessa, outros não se esquecem da palavra dada e se tornam colaboradores sistemáticos ou ocasionais. Dentre os que escrevem para o jornal, podemos citar: Paul Adam, A. Hamon, Lucien Descave, G. Eckoud, Théodor Jean, Fortune Henry, P. Kropotkin, Bernard Lasare, G. Mirbeau, Elisée Reclus etc. Outro campo que se mostra simpático ao jornal é o dos artistas plásticos: de maneira constante aparecem trabalhos do pintor Camille Pissaro e de seu filho Lucien; caricaturas de Paul Signac, Van Degen, Fleix Valloton, Caran d’Arche e outros. Outro aspecto que se liga intrinsecamente com a dinâmica anarquista é a ação dos militantes e dos simpatizantes: no início do século existe na França 1.000 militantes ativos, 4.500 simpatizantes declarados e 100.000 simpatizantes vagos.(10) Com essa reserva humana, por que as publicações de caráter acrático passam por inúmeras dificuldades financeiras? A pergunta é do próprio Jean Grave, que não a responde:
“Outro dos meus sonhos — ai de mim! — não realizado teria sido que o jornal vivesse de sua venda e de suas assinaturas. Isto nunca aconteceu. Nos períodos mais prósperos, era preciso sempre de 3 a 4.000 francos para equilibrar o orçamento. E isto apesar das subscrições”.(11)
Para superar a situação, Jean Grave usa de todos os recursos: pede a Reclus, a Kropotkin e a outros que façam conferências com público pagante; pensa em publicar o Temps Nouveaux semanalmente, em vez de quinzenalmente; levanta subscrição entre os adeptos etc. Logo depois, organizam-se listas para arrecadar mais fundos e, assim, permitir o equilíbrio financeiro da publicação. Na verdade, no decorrer de quase todos os anos de existência do Temps Nouveaux, o que domina é a palavra deficit. Por alguns exemplos podemos verificar esta situação. Em 1903 a receita é de 41.428,55 francos; as despesas, 44.567,80; e o deficit., 3.139,25. Em 1905 a receita é de 26.600,40; as despesas, 25.868,65; e o excedente, 731,75. Em 1906 a receita é de 26.332,30; a despesa, 28.056,50; e o deficit, 1.724,20.
Para evitar repetição, ficamos restritos a esses únicos exemplos. Mas a razão do deficit, não cabe unicamente à direção do jornal, seja pela sua falta de iniciativa, seja pela ação individualista da direção, aspectos muito ao gosto do anarquismo.
As dificuldades encontradas — algumas superadas, outras não — não impedem que o jornal circule de 1895 até agosto de 1914. E a drôle de guerre que o leva a paralisar a sua publicação, pois o interesse da pátria, nessa hora, está acima de qualquer outro valor. Assim, o Temps Nouveaux, com uma das trajetórias mais longas da imprensa acrática francesa, desaparece para sempre.(12)
Alguns outros aspectos têm de ser indicados para se avaliar a atividade globalizante de Jean Grave: 1) seu apego à ação pedagógica da Escola Nova e a sua tentativa fracassada de fundar uma em Paris; 2) a elaboração de livros pedagógicos para serem usados pelos alunos da Escola Moderna de Francisco Ferrer, em Barcelona: Las aventuras de nono (P.V. Stock, Paris, 1901; Publicaciones de la Escuela Moderna, Barcelona, 1902), Terre libre e Temps nouveaux (Paris, 1908).
No entanto, é grande a obra partidária que redige no decorrer de sua militância. Citamos alguns de seus livros: La société mouranle et l'anarchie (1893); La société future (1895); L 'individu et la société (1897); L'anarchie, son but, ses moyens (1899); Reformes et révolution (1910). E mais dois romances: La grande famille (1895) e Malfaiteurs (1903). Todos eles saem pela Librairie Stock, Paris, e aparecem traduzidos em várias línguas, inclusive em português (Guimarães e Comp., Lisboa).
Outro aspecto da obra de Jean Grave é a defesa de sua posição ideológica, que se traduz nos vários planos assinalados: jornal, livros, incentivo à realização de conferências, defesa dos injustiçados etc. No primeiro deles, verifica-se a ideia da estratégia que ele põe em prática: em La Révolle e em Le Revolte, por razão de possível perseguição policial numa época em que o governo procura qualquer pretexto para intervir e processar as lideranças de esquerda — a colaboração aparece sem indicação de autor, sob a responsabilidade da direção do jornal; no período do Temps Nouveaux, artigos e notas, quando redigidos por terceiros, aparecem com o nome de seus colaboradores.
No entanto, o seu esforço dirige-se também para outro instrumental de ação, tão meritório como o de secretário do jornal: a publicação de folhetos editados pelo Temps Nouveaux nos seus 19 anos de existência.
Quem segue a trajetória das organizações sociais pode verificar que a partir de 1880 se multiplicam as publicações de panfletos de todas as tendências: socialistas, anarquistas, cooperativistas, católicas etc. A maioria volta-se para a defesa ideológica da própria corrente, outros para questões candentes do momento, como feminismo, malthusianismo, educação, guerra etc. O resultado é o grande número destas publicações em países como França, Espanha, Portugal, Argentina e Brasil. Boa parte da produção depende do esforço de pequenos grupos, que passam por constantes dificuldades financeiras — o que os leva à utilização de papel de segunda, má impressão, circulação geográfica limitada etc. O material assim produzido desaparece facilmente com o tempo, sendo poucos os exemplares que restam. Quase sempre, este tipo de literatura aparece irregularmente. Algumas vezes é organizado em forma de coleção, em outras, individualmente.
Exceção à regra é o caso das publicações de Temps Nouveaux. O ritmo é de uma (ou mais) publicação anual, fora as reedições. Na primeira edição o panfleto sai com 10.000 exemplares e, da segunda em diante, com 10.000 de cada vez; há casos de até sete edições. O panfleto de G. Mirbeau, La grève des electeurs, chega a 150.000 exemplares. A razão do sucesso deve-se à persistência de Jean Grave, ao baixo preço da brochura e ao crescimento do público comunista-libertário, na França e no estrangeiro.
Bibliografia:
GRAVE, Jean. Le mouvement libertaire sous la Troisième République: souvenirs d'un révolte, Paris. Les OEevres Representatives, 1930 (Collection Hier).
. Quarente ans de propagande anarchiste, Paris. Flammarion, 1973.
MAITRON, Jean. Le mouvement anarchiste en France, v. I: Des origines a 1914, Paris, Maspero, 1983.
. Le mouvement anarchiste en France, v. II: De 1914 a nos jours, Paris, Maspero, 1983.
WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das ideias e movimentos libertários. Porto Alegre. LP&M. 1983. 2 v.
. Os grandes escritores anarquistas, 2a ed. Porto Alegre. LP&M, 1981.
SERGENT, Alain & HARMEL. Claude. Histoire de l'anarchie. Paris. Le Portulan, 1949.
JOLL. Jean. Anarquistas e anarquismo, Lisboa. Dom Quixote.
NETILLAM, M. Bibliographie de l'anarquie, Paris. P.V. Stock, 1897.
TORRIZZO, Domenico. L'anarchie, Paris. Seghers, 1978.
Notas de rodapé:
(1) A corrente Violência engloba os indivíduos que, por vontade própria, praticam atentados contra os representantes dos sistema dominante: a nobreza, os Congressistas, a policia etc. A maior parte dos que estão comprometidos com essa tática são pessoas que passaram levemente, ou de maneira mais assídua, pelos círculos acráticos. A onda de violência começa no início da década de 80 e prossegue até a I Guerra Mundial. Alguns exemplos; em 1881 houve um atentado contra o czar Alexandre II; em 1882, morre Ravachol, autor de vários atentados contra políticos; em 1893, o anarquista Auguste Vaillant joga bomba no Congresso francês; em 1894, o anarquista italiano Sante Caserio apunhala o presidente da França. Sadi Carnot; em 1893, ocorre o assassinato do presidente dos Estados Unidos, Mack Kinley, por um anarquista; e em 1901, o assassinato do rei da Itália, Humberto I, também por um anarquista. (retornar ao texto)
(2) George Woodcock, Anarquisme, v. 2, p. 51. (retornar ao texto)
(3) As noticias sobre jornais: Jean Grave. Quarente ans.... p. 362; G Woodcock, Anarquisme. p. 55; J. Maitron. Le mouvement anarchiste en France, v. I., pp. 146-148. (retornar ao texto)
(4) Jean Maitron, Le mouvement anarchiste en France, v. I. pp 130- 135. A análise do autor é bem mais complexa, o que fizemos é resumir os dados fornecidos por Maitron. (retornar ao texto)
(5) Jean Maitron. idem, pp. 122-123. (retornar ao texto)
(6) Jean Maitron. idem, pp. 130-131. (retornar ao texto)
(7) Jean Maitron. idem, p. 133-135. (retornar ao texto)
(8) Jean Grave, idem, p. 145. (retornar ao texto)
(9) Jean Maitron. idem, pp. 145-146. (retornar ao texto)
(10) Jean Grave, idem, pp. 554-564. (retornar ao texto)
(11) Jean Grave, Quarente ans..., p. 558. (retornar ao texto)
(12) Jean Grave pertenceu à corrente anarco-comunista, mas a partir de 1906 torna-se anarco-sindicalista. Esta é a razão do aparecimento de uma seção sindical no seu jornal. O jornal conta com a direção de Delasalle, substituído por Pierre Monatte, Demoulin, A. Dumois e outros. (retornar ao texto)
Inclusão | 28/06/2016 |