Marxismo e o Negro
(parte 2)

Harold Cruse

Junho de 1964


Primeira Edição: ....
Fonte: Marxism and the Negro Struggle
Tradução: Juventude do PSTU
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

capa

O marxismo clássico rejeita todas as formas de materialismo vulgar porque esse “nega toda evolução genuína no sentido do surgimento de novas formas e novas qualidades de coisas novas”. Assim, a principal premissa do pensamento dialético necessita, nesse caso, admitir que “novas formas de consciência social” podem se desenvolver dentro das sociedades capitalistas as quais são mais relevantes politicamente que até mesmo a “consciência social” do movimento operário conservador. Toda conclusão além dessa é manifestamente anti-dialética. Assim, fundamental para a crise de todas as escolas do marxismo ocidental dos países avançados (as nações brancas) é a crise que há muito tem segurado o sistema filosófico de pensamento, o “eixo” em torno do qual a inteira estrutura política, econômica, cultural, teórica e programática necessita se articular. É uma crise do materialismo dialético o qual foi concebido por Marx como um método o qual tinha de compreender a realidade do mundo, mas não é mais capaz de fazê-lo. A realidade dos eventos mundiais revolucionários está botando para correr a teoria marxista.

Em 1939, quando a classe trabalhadora branca europeia estava armada até os dentes pelas fronteiras de seus países pronta para espalhar a guerra e o caos contra eles próprios, toda a Europa e metade do mundo, Trotsky, escrevendo sobre “O marxismo nos Estados Unidos” podia dizer com alto deslocamento:

“Pelo exemplo e com a ajuda das nações avançadas as nações atrasadas irão também ser arrastadas pelo caminho do socialismo.”

Aqui está expresso de maneira ilustrada as supremas ilusões do marxismo branco ocidental ou (no caso de Trotsky) “ocidentalizado”. Eles não conseguem largar a idée fixe da classe trabalhadora branca “salvando” a humanidade. Enraizado nas suas noções preconcebidas, nas suas ideias anti-dialéticas, está profundamente impregnado o “ideal da nação branca”. Por isso, “socialismo” se torna como “capitalismo”, uma concepção branca, a grande prerrogativa da “classe trabalhadora branca”. Assim, o “fardo do homem branco” muda dos missionários capitalistas para os socialistas revolucionários cujo dever na história é elevar os povos “atrasados” do seu estado primitivo para a civilização socialista mesmo se os brancos precisam postergar essa elevação até atingirem tal estágio em casa. Mas, fazendo isso, as concepções marxistas brancas de dialética sobre o desenvolvimento do mundo viram uma imagem distorcida da realidade que está tomando corpo na frente de seus próprios olhos.

Disso decorre que as análises dialéticas que os marxistas projetam concernentes ao desenvolvimento mundial são, na verdade, distorções vulgares, grosseiras do método dialético original de Marx o qual era essencialmente verdadeiro para o seu próprio tempo e circunstâncias. Não foi culpa de Marx que as mudanças mundiais já estavam explícitas na dialética. Mas as distorções do marxismo ocidental atual residem no fato de que os marxistas tratam o materialismo dialético somente pela ótica de como as forças produtivas impessoais se desenvolvem, como as forças materiais englobam a sociedade e trazer relações de classes, ou faz a sociedade humana percorrer estágios do feudalismo ao capitalismo. Ou além, como o capitalismo penetra no mundo subdesenvolvido e traz este para a rede capitalista, etc. Mas Marx pontuou que:

“Na produção social a qual os homens levam adiante, eles entram em relações definidas as quais são indispensáveis e independentes da sua vontade” (ênfase nossa).

O que significa que os homens são sujeitos às forças cegas das leis da produção social a menos que eles passem a ter “consciência social” de o que está acontecendo com eles. Mas como os homens passam a ter tal consciência é um problema da Teoria do Conhecimento e Reflexão a qual é uma categoria inseparável do método dialético de investigação social. Se os homens não compreendem a natureza das forças materiais eles não serão capazes de intervir no processo dessas forças para mudar os eventos, i.e., para controlar forças cegas. Logo, os homens, as classes ou grupos ou mesmo nações não poderiam assumir a tarefa de “revolucionar” sociedades a menos que estejam posicionados para isso e também que tenham a consciência necessária para mudar os eventos. Nesse aspecto, os desenvolvimentos sociais podem posicionar certas classes para mudar eventos, dá-las potencial, ainda que essas classes continuem sem a consciência ou a vontade de fazer história.

Mas existem sempre outras classes e é função subentendida da dialética prever corretamente quais classes estão sendo trazidas para a linha de frente da consciência social pelas forças materiais “cegas”. Essa classe virá a ser a força social escolhida pelas “leis históricas” para papéis históricos em vez de classes preconcebidas que a história deixou para trás. Lenin lidou mais exaustivamente sobre como os homens e as classes recebiam as suas percepções sensíveis do mundo real, mas os marxistas de hoje ignoram esse aspecto da dialética porque eles acreditam que o papel social do “proletariado” sozinho liquida essa questão para sempre.

Os marxistas brancos tentaram fazer a realidade mundial se encaixar nas suas concepções dialéticas preconcebidas, mas o desenvolvimento dos eventos requer que as concepções dialéticas se moldem à realidade mundial. Mas tais concepções não podem vir das cabeças dos marxistas ocidentais cujo ponto de vista filosófico ficou provincianamente enraizado na realidade e crise do mundo ocidental e não consegue transpor as limitações conceituais daquele mundo. Eles falam de “revolução”, mas a revolução está sendo feita pelos outros. Desse modo, os eventos sociais mundiais correm à frente do desenvolvimento da teoria social mundial. Warde diz que os princípios do materialismo histórico são aplicáveis em qualquer lugar “considerando que eles são aplicados analisando a realidade concreta da situação concreta”. Mas a questão que Warde não discute é: “Quem vai determinar isso? Aqueles que estão fazendo a revolução mundial ou aqueles do ocidente cujas visões ‘dialéticas’ estão ancoradas no atraso da classe trabalhadora branca?”

A Teoria Marxista do Conhecimento (dialética) implica que se os “povos atrasados” do mundo estão guiando a si próprios pelo “caminho do socialismo” em vez de serem liderados pela “ajuda das nações avançadas” como Trotsky disse, então os “povos atrasados” necessitam substituir a classe trabalhadora branca como o “povo escolhido” dos mecanismos dialéticos da sociedade mundial. Assim, para a “ciência histórica” ou “dialética” ser considerada verdadeiramente científica ela precisa ser desenvolvida e verificada no mundo real pela inclusão das experiências sociais, a história, as ideias e as filosofias políticas, os pontos de vista dos povos atrasados. Em síntese, são as reflexões sociais dos povos atrasados que realmente importam hoje. Por isso é a consciência social deles que é determinante no modo como a história muda. Daí decorre que o materialismo dialético não é mais a “filosofia do proletariado” (i.e.: do proletariado europeu) como os marxistas ocidentais o consideram.

É o destino dos marxistas estarem aprisionados nas suas próprias ilusões e isso é a fonte de sua crise. Eles não podem lidar com a questão racial na América em termos de seu método dialético senão superficialmente, o que eles tentam esconder por meio de todo o expediente político mais óbvio, como a indicação de DeBerry. Isso necessariamente precisa metê-los num conflito sério com o próprio movimento negro. Para o movimento negro, as suas afinidades são não com a classe trabalhadora branca da América cujo status face ao capitalismo americano é qualitativamente daquele dos negros. O auge [do movimento] dos trabalhadores brancos está atrás deles, na história dos anos 30. O movimento negro americano é atualmente uma revolta semicolonial a qual é mais inspirada em eventos fora da América do que dentro dela. Nós podemos melhor explicar a relação do movimento aos desenvolvimentos mundiais atuais citando Leopold Sedar Senghor, presidente da República Africana de Senegal, em seu panfleto sobre Socialismo africano:

“Nós não somos comunistas….”

“O paradoxo da construção socialista nos países comunistas da União Soviética é que essa parece cada vez mais com a construção capitalista nos Estados Unidos da América… E aquela tem menos arte e liberdade de pensamento.”

“Mas uma ‘terceira’ revolução está tomando corpo, como uma reação contra o materialismo capitalista e comunista, a qual integrará valores morais, se não religiosos, com as contribuições políticas e econômicas das duas grandes revoluções. Nessa revolução os povos não-brancos, incluindo os negros africanos, precisam ter a sua voz, eles precisam trazer as suas contribuições para a construção de uma nova civilização planetária.”

Sobre o negro americano nessa “terceira revolução”, Senghor cita Paul Morand quando diz:

“Os negros prestaram um enorme serviço à América. Mas para eles, alguns têm pensado que os homens não podem viver sem uma conta bancária e uma banheira.”

Os fatos vivos da revolução mundial hoje são muito mais persuasivos que qualquer teoria revolucionária que veio da Europa Ocidental desde a morte de Marx. Nós não atribuímos a Marx quaisquer desvios e distorções que, seja a história, sejam os homens impuseram para degenerar a sua doutrina. Ele foi um produto da sua época por excelência e suas conclusões sobre a sociedade jogaram fora o véu que escondia as profundas forças que moviam as sociedades. Entretanto, suas previsões foram negadas por cada processo dialético que ele mesmo revelou. Ainda, podemos insistir, que a história dever atuar justamente do modo que Marx pensou que ela deveria é uma injustiça ao grande pensador e implica, portanto, que a dialética é uma fraude filosófica como muitos tentaram fazer (mesmo aqueles que chamam a si próprios de “marxistas”). Mas nem a história, nem a dialética, que é o seu motor interno, permanecem paradas. Nem a história está propensa a agraciar com prerrogativas históricas especiais uma classe ou povo especial para sempre. É a combinação peculiar de tempo, lugar, e circunstâncias sociais que decidirá quem cumprirá o papel principal de motor da história. Assim, nós conseguimos entender a afirmativa de Marx: “Eu não sou um marxista”. Seria um tributo histórico à auto-obliteração de Marx se Léon Trotsky tivesse admitido:

“Embora eu tenha jogado com as leis de Marx, eu não sou um dialético”.

Logo, na América, atualmente, o Socialist Workers Party precisa batalhar duro para conciliar a falência teórica do marxismo ocidental pela estratégia política altamente questionável de entrar em competição política com um partido político negro (o qual ainda nem está estabelecido) usando um candidato negro como cabeça de chapa. Alguns capitalistas tentando quebrar e explorar o mercado dos negros não poderiam ser mais oportunistas e grosseiros. Mas o que é revelado aqui que é mais que mera grosseria é a falta de base na realidade na maior parte do que os marxistas americanos fazem. Na base de tudo isso estão as ilusões marxistas sobre o “mito da classe operária”, como mostra a experiência russa. Para os trotskistas serem forçados a desistir desse assunto morto seria como forçar a admitir que a Quarta Internacional trotskista é e sempre foi utópica. Depois da chegada ao poder na Rússia pelos bolcheviques e da criação dos sovietes esse problema ficou mais kantiano que marxista. Os idealistas revolucionários marxistas pressupuseram que as elites marxistas, uma vez no poder deveriam agir de acordo com o “imperativo categórico” de Kant e exerceriam suas funções de acordo com um código ético de “conduta correta”. Esse tem sido e sempre será um problema das revoluções.

Entretanto, as durezas da realidade americana e o movimento negro forçaram os trotskistas a empurrar todos esses assuntos que uma vez já agitaram internacionalmente os anos revolucionários atrás, para o pano de fundo, longe, nos livros, e passaram a atuar pragmaticamente saltando para o carro de som da ideia do partido político negro. Mas isso não pode funcionar. O Freedom Now Party não será usado para salvar a tradição marxista na América de suas próprias ilusões sobre a natureza da realidade social atual. O problema do papel de Clifton DeBerry como uma marxista negro nos moldes ocidentais é algo contraditório que não pode ser resolvido dentro do contexto da filosofia política, social e cultural a qual o Freedom Now Party está tentando modelar. Tendo em vista o que Leopold Senghor diz em matéria de comunismo, um marxista americano negro vira um rosto realmente fora de lugar no quadro geral das coisas. E sua posição fica ainda mais ridícula quando é envolvido politicamente em bater no “cachorro morto” da polêmica stalinismo versus trotskismo. No que isso pode realmente importar ao “terceiro mundo” tendo em vista o fato de que o lugar da Rússia no impacto das revoluções no século XX já está demonstrado e é bem conhecido? Os trotskistas no ocidente têm reduzido o seu papel a esmiuçar os vestígios stalinistas nas correntes revolucionárias pelo mundo, analisando as “distorções” das revoluções já feitas, projetando um ideal de “revolução socialista” que nunca foi visto ou tentado, enquanto reconstroem a teoria de Trotsky da “revolução permanente” - um conceito anti-dialético porque tudo, incluindo as revoluções são um processo de mudanças e desenvolvimentos. Os trotskistas são os “puristas” do campo marxista – astutos, analíticos e obcecados com o discernimento de refinar, do seu próprio ponto de vista, cada aspecto do materialismo histórico. Mas eles não podem escapar da teia teórica da crise do marxismo no ocidente. Logo, Clifton DeBerry vira um mero fantoche o qual os trotskistas tentam forçar goela abaixo ao partido político negro, vestindo uma coroa a qual é muito superdimensionada.

O movimento negro possui qualidades interiores de diferentes graus de nacionalismo e integracionismo cujas implicações econômicas, políticas, culturais e psicológicas são muito para a teoria marxista de hoje. Tentar confundir essas qualidades desconhecidas com o misticismo do trabalho branco da esquerda marxista seria romper o desenvolvimento natural do Freedom Now Party, confundindo os reais assuntos nativos dos negros com a fantástica e irrelevante visão dos marxistas sobre a realidade americana. Tais intrusões serão combatidas com cada arma à disposição do FNP.

O Freedom Now Party é baseado na ideia de conseguir poder político negro independente nos Estados Unidos por meios culturais, econômicos e administrativos. Desse modo, o movimento negro na América fica alinhado com a natureza real dos eventos mundiais envolvendo os povos não-brancos. Nesse realinhamento das forças sociais mundial a realidade é que as nações capitalistas brancas, incluindo todas as diferentes classes nessas nações, da mais alta burguesia até o proletariado pobre viram, de fato, estratos burgueses e relativamente de classe média em comparação com os povos não-brancos que viram, de fato, os “proletários do mundo”. Esse é o resultado real dos processos “dialéticos” da nossa época. Se a unidade internacional dos povos deve ser atingida com uma estrutura democrática, essa unidade deve ser forjada sobre os caminhos da “consciência social” que claramente revelam possibilidades de futuro em vez de “becos sem saída” do passado que encontramos, antes, na política radical.


Inclusão 19/05/2017