Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro Cunhal

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Um País "Essencialmente Agrícola"


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Apesar das condições naturais favoráveis para a agricultura, esta não basta às necessidades do País. Diz-se que Portugal "quer pela sua população, quer pelo seu trabalho, quer pelas suas possibilidades, é, e não poderá deixar de ser, um país predominantemente agrícola"(27): repete-se, em todos os tons, esta opinião; confirmando-a, as estimativas do rendimento nacional, para os anos de 1949 e 1950, atribuem à produção agrícola e silvícola um valor ultrapassando os 10 milhões de contos, ao passo que a produção industrial e mineira não alcançaria o mesmo(28); a quota dos produtos agrícolas ultrapassa metade do valor das exportações; e, entretanto, a agricultura portuguesa não chega para abastecer o País, nem em alimentos nem em matérias-primas. Sendo a agricultura a sua maior riqueza, Portugal depende da importação de produtos agrícolas.

Decerto, nenhum país se pode abastecer totalmente a si próprio, e só o facto de estar o Mundo dividido por antagonismos e por ameaças de conflitos armados induz alguns Estados a procurarem, na medida das suas possibilidades, uma autarquia artificial, depauperante, antieconómica e anti-histórica. O mal não estaria, pois, em se importar do que se carece e não se pode produzir economicamente, em se ser mesmo deficitário em produtos agrícolas, desde que a isso correspondesse o desenvolvimento das culturas mais favoráveis e dos outros ramos de economia nacional, permitindo exportações compensadoras.

Decerto, também, nenhum dos pequenos países que cuide da sua independência pode, hoje, converter-se às ideias (defendidas pelos imperialistas) da "especialização internacional no desenvolvimento industrial", que, quando aceites, os reduzem a simples fornecedores de matérias-primas e alimentos de cultura menos remuneradora, ou seja, a "países agrícolas atrasados" de economia subsidiária dos "países industriais adiantados". O mal não estaria, pois, em não se ser um país exportador de matérias-primas produzidas pela agricultura e mesmo de alimentos, desde que a isso correspondesse um desenvolvimento da indústria e da riqueza em geral. O mal está em que, sendo Portugal um país "essencialmente agrícola", aceitando-se na prática a tal "especialização internacional" e o papel de "país agrário atrasado" subsidiário dos "países industriais adiantados", se seja, afinal, dependente em produtos agrícolas, abrindo regularmente, a estes últimos países, os mercados portugueses para artigos que a agricultura portuguesa produz ou pode produzir: de tal forma que o valor dos produtos agrícolas importados excede o valor dos produtos agrícolas exportados, sem qualquer compensação nos outros ramos da economia.

A tabela 1 compara a importação e a exportação de produtos agrícolas em 1947. E que se vê? Nos produtos alimentícios um défice em cereais e legumes secos ultrapassando 1 milhão de contos. Um défice de batatas de quase 100.000 contos. Um défice em carnes de 150.000 contos. Um défice de mais de 300.000 contos em açúcar. E ainda défice em gorduras e em lacticínios. Os saldos favoráveis em bebidas, produtos hortícolas (com excepção da batata), frutas e conservas vegetais estão longe de cobrir o défice de produtos alimentícios, subindo a diferença a mais de 1 milhão de contos. Nos outros produtos da agricultura, silvicultura e pecuária, embora as exportações de produtos florestais (cortiça, madeira e resinosos) tenham subido a mais de 700.000 contos, não chegaram para cobrir os défices em lã, peles e couros, algodão e outras fibras, tintórios e tanantes, óleos e tabaco. No conjunto, as importações de produtos agrícolas (abrangendo com esta expressão os silvícolas e pecuários) Ultrapassaram as exportações em 1.500.000 contos, ou seja, o equivalente a mais de um terço das receitas ordinárias do Estado.

Este desequilíbrio não se pode, é certo, atribuir apenas às deficiências da agricultura nacional, mas também às dificuldades e deficiências de orientação no comércio externo – no "nosso decadente comércio externo" –, como disse pessoa abalizada para o dizer(29), dificuldades e deficiências de orientação que tornaram possível, no curto espaço de 5 anos (1945-1949) um excesso de cerca de 20 milhões de contos das importações sobre as exportações – mais do que o total das despesas extraordinárias do Estado desde 1928 até à actualidade! Embora Salazar aponte, melancolicamente, pedras e calhaus, lamentando que os estrangeiros não queiram comprar tal mercadoria(30), e insinue, assim, que Portugal só não vende mais porque a nossa "pobreza natural" nada mais dá para vender – muitos ricos e abundantes produtos da agricultura portuguesa só não são exportados em maiores quantidades porque os grandes países abastecedores do mercado português, embora não se acanhem em mandar artigos de luxo e de bazar e concorram mesmo com os produtos da agricultura portuguesa no nosso mercado interno, se têm recusado a comprar produtos portugueses que não consideram essenciais. Tal o caso dos vinhos do Porto, cuja média anual de exportações depois da guerra (1945-1949) tem sido de 210.000 hectolitros, quando nos últimos cinco anos antes da guerra (1934-1938) fora de 410.000 e nos anos de 1925-1927 havia sido de 510.000 hectolitros. O mesmo se podia dizer das frutas (particularmente figos) e de outros produtos. Antes de nos levarem os calhaus, já não seria mau que nos comprassem produtos tão preciosos como os vinhos, as frutas, as cortiças.

TABELA 1
Importação e exportação de produtos da agricultura, silvicultura e pecuária(31)
  Milhares de toneladas Milhares de contos
Importação Exportação + - Importação Exportação + -
I.Animais vivos 1 - -1 8 7 -1
II. Produtos alimentícios 597 97 -500 1.875 786 -1.089
1. Bebidas e derivados 2 88 86 19 634 615
2. Farináceos 388 - -388 1.113 - -1.113
3 Batata 80 2 -78 97 5 -92
4. Produtos hortícolas - 4 4 - 10 10
5. Conservas vegetais - 1 1 - 14 14
6. Frutas - - - 6 92 86
7. Carnes 10 - -10 148 3 -145
8. Gorduras 2 1 -1 29 12 -17
9. Lacticínios 2 - -2 78 5 -73
10. Açúcar 101 - -101 307 - -307
11. Cacau, chá, 9 - -9 70 - -70
12. Vários 2 1 -1 7 11 4
III. Outros produtos 173 356 183 1.298 890 -408
1. Lã 7 - -7 298 11 -287
2. Peles e couros 8 - -8 195 10 -185
3. Algodão 26 - -26 300

-

-300
4. Outras fibras 11 - -11 88 1 -87
5. Óleos vegetais 67 - -67 184 4 -180
6. Tabaco em folha 4 - -4 100 - -100
7. Madeira cortiça e derivados 43 268 225 98 522 424
8. Resinosos - 59 59 - 281 281
9. Tintórios e tanantes 6 - -6 22 - -22
10. Vários - 27 27 13 61 48
IV. Alimento para gado 15 5 -10 30 9 -21

Total

786 458 -328 3.211 1.692 -1.519

Entretanto, se é verdade que mais produtos da agricultura se podiam exportar, não é menos verdade que, apesar das belas aptidões agrícolas do País, a agricultura não produz, nas condições presentes, o bastante para satisfazer o consumo nacional dos artigos que podia produzir e para cobrir com exportações o que o consumo nacional exige se importe.

Poupado Portugal aos estragos da Segunda Guerra Mundial pelas conveniências hitlerianas, a grande burguesia pôde negociar e traficar com os beligerantes vendendo os produtos nacionais. Pela ausência de destruições, pelo esforço para se auto-abastecer de alimentos num mundo em guerra, era de esperar que, terminado o conflito, Portugal aparecesse com uma situação relativamente melhorada, particularmente no referente à agricultura e, nesta, aos produtos alimentares. Ao contrário, porém, desta expectativa, a situação após a guerra apareceu ainda mais grave.

Antes da guerra (1935-1939), o valor das bebidas exportadas cobria o valor das importações de cereais e outros farináceos; depois da guerra, o valor destas últimas excede largamente o das bebidas exportadas, subindo tal excesso a mais de 2 milhões de contos nos anos de 1945-1949. Antes da guerra (1931-1939), importaram-se anualmente em média 279.000 toneladas de substâncias alimentícias, das quais 155.000 de cereais e outros farináceos; depois da guerra, tais importações mais do que duplicaram, subindo a média anual em 1945-1949 para respectivamente 581.000 e 412.000 toneladas. Desde o princípio do século, estas médias apenas em 1927, 1928 e 1930 tinham sido excedidas, tornando-se, assim, norma o que era excepcional. É clara, não só a gravidade da situação, como a sua piora.

Não é, contudo, este desequilíbrio no comércio externo o único aspecto grave de dependência do estrangeiro de um "país essencialmente agrícola" como o nosso.

Um país não pode considerar-se independente no ponto de vista agrícola apenas pelo facto de não ser deficitário no referente aos produtos agrícolas (o que infelizmente não é o caso português), mas sim quando o não é também nos artigos essenciais à exploração do solo, no referente a adubos, a insecticidas e fungicidas, a máquinas e utensílios, etc. Também nesse domínio Portugal é altamente deficitário.

Em 1947, semelhante neste particular a qualquer dos anos posteriores à guerra, as importações e exportações de artigos subsidiários da agricultura apresentavam-se nos seguintes termos(32):

  Milhares de toneladas Milhares de contos
Importação Exportação +- Importação Exportação +-
Adubos 248 2 -246 193 1 192
Fungicidas e insectisidas 2 - -2 13 - -13
Máquinas e alfaias - 1 1 13 12 -1
Total 250 3 -247 219 13 -206

Embora fosse quase nula a importação de máquinas agrícolas (de valor ligeiramente superior ao dos brinquedos importados...) apresenta-se um défice de mais de 200.000 contos. Ao reparar-se que de "enxadas cafreais" Portugal exportou um valor sensivelmente igual ao das máquinas e aparelhos agrícolas importados, tem-se uma ideia de como qualquer progresso técnico importante na agricultura portuguesa exigirá grandes fornecimentos estrangeiros e um aumento substancial do défice em produtos subsidiários da agricultura, hoje devido quase exclusivamente à importação de adubos.

Não é por falta de condições para a produção em Portugal de artigos subsidiários da agricultura que esta situação se mantém. Importam-se, por exemplo, aduelas para o fabrico da embalagem dos vinhos e, todavia, tal importação – di-lo, com estranha gramática, um especialista – "pode ser eliminada completamente pelo cravo rubra que até dão (sic) bolota no Porto, se deles (sic) se fizer devesas"(33). Os adubos químicos pareciam inacessíveis à produção portuguesa; e as novas fábricas mostram a completa viabilidade de o País se auto-abastecer. Quanto à maquinaria agrícola, de que se gasta tanto com as "enxadas cafreais" exportadas, mas de que se virá, por certo, a gastar incomparavelmente mais, também se virá a mostrar não ser sonho nem utopia afirmar-se a viabilidade da sua produção.

No mundo de hoje, uma agricultura independente implica a existência de uma indústria. E não só isso. Implica que essa indústria seja uma indústria independente. Se um país se liberta das importações de produtos subsidiários da agricultura, se deixa assim de pagar aos produtores estrangeiros esses produtos como importações, mas para continuar a pagá-las aos mesmos ou outros produtores estrangeiros, com a única diferença de que estes produzem agora, não nos seus países, mas no antigo país importador, não se pode ter por entusiasmante para este uma tal mudança. A diferença essencial entre a exportação de mercadorias e de capitais reside no facto de que, enquanto no primeiro caso a mais-valia é produzida no país exportador, embora realizada no importador, no segundo caso é produzida no país importador: se os capitalistas de um país preferem a exportação de capitais à de mercadorias, é porque conseguem maiores lucros. Assim, se se deixa de importar determinado artigo para que se produza no País em empresas dominadas por capital estrangeiro, o que deixa de sair "visivelmente" em pagamento das importações sai "invisivelmente" e reforçado na forma de lucro. Além disso, substituindo-se as importações pela instalação de uma indústria movida por capital estrangeiro, quebra-se uma cadeia para se soldar outra mais forte, pois atrás e à frente do capital estrangeiro corre sempre um cortejo de exigências, pressões, intervenções, poderes efectivos na política interna, agravando a situação de dependência. É isso, infelizmente, o que se verifica em Portugal nos dias de hoje.

Um dos passos mais significativos que está sendo dado no sentido de uma importante diminuição das importações de produtos subsidiários da agricultura é a fabricação de sulfato de amónio. Pelas posições das sociedades concessionárias tal fabricação fica em grande parte nas mãos de capitalistas estrangeiros. Além disso, o amoníaco é hoje fabricado (em Alferrarede e Estarreja) por via electrolítica, e os capitais estrangeiros têm forte posição na indústria eléctrica (de que a rega em grande escala está também dependente). Finalmente, depois de se ter pensado que, pela falta de carvões e óleos nacionais e pela abundância de possibilidades hidroeléctricas, e mais particularmente de energia temporária, a produção electrolítica de hidrogénio era aconselhável – e foi nessa base que se entrou pelo caminho da produção de sulfato de amónio e se construíram as fábricas à espera da energia –, o atraso das realizações hidroeléctricas e o preço da energia levam a fazer-se agora uma revisão apressada mas radical do problema, no sentido do fabrico do hidrogénio "a partir da gaseificação de combustíveis sólidos e líquidos"(34). "Parece que a solução do problema – diz-se – tem de se orientar no sentido do fabrico com base no hidrogénio químico."(35) E como a nova fábrica de Rio Maior, ou outra eventual, à boca da mina, da Batalha, pouco poderão produzir, isto significa que a produção do sulfato de amónio virá a estar dependente de novas e importantes importações de carvões e mais particularmente de óleos. Assim, em todas as hipóteses presentemente prováveis, embora fabricando-se em Portugal adubos químicos que dantes eram importados, a agricultura portuguesa continuará em matéria de adubos em larga medida dependente do estrangeiro.

Vê-se que, sendo as condições naturais favoráveis a uma agricultura próspera e rica, sendo Portugal um "país essencialmente agrícola", a agricultura não satisfaz as necessidades nacionais de artigos que muito bem podia produzir, não cobre com as exportações as importações de produtos agrícolas e depende da indústria estrangeira em matéria de produtos subsidiários.

E a verdade é que, enquanto, no mundo de hoje, Portugal for deficitário em produtos agrícolas, sua grande riqueza presente, enquanto não for independente sob o ponto de vista agrícola, não poderá haver desafogo na economia nacional.

Produção e Consumo

Mesmo que ao aumento das importações de géneros alimentícios correspondesse um aumento de consumo da população portuguesa, essas importações continuariam sendo, economicamente, desvantajosas, a não ser que se operasse uma viragem radical em toda a economia portuguesa de forma a deixar Portugal de ser o "país essencialmente agrícola" que hoje é. Entretanto, sempre se encontraria uma compensação no momentâneo aumento de consumo. Mas as coisas não se passam assim. As importações de géneros alimentícios aumentam ao mesmo tempo que os consumos por habitante diminuem.

Segundo os próprios cálculos das estatísticas oficiais, a capitação de consumo da grande maioria dos produtos agrícolas foi, no quinquénio 1945-1949, inferior à do decénio 1926-1935. O consumo anual de trigo por habitante, no continente, passou de 77 para 70 quilos; o consumo de centeio de 16 para 15 quilos; o de milho de 59 para 48; o consumo dos três cereais em conjunto de 152 para 132 quilos. O consumo de arroz desceu de 12 para 9 quilos e o de azeite de 9 para 8 litros. O consumo de feijão e grão-de-bico manteve-se sensivelmente igual. Só a capitação de batata e do vinho teria subido, respectivamente, de 70 para 105 quilos e de 87 para 94 litros(36).

Quanto ao consumo de carne de vaca, o peso de adultos e adolescentes abatidos é sensivelmente igual ao que era há 50 anos. Considerando apenas o último quarto de século, as capitações anuais teriam descido de 3,8 quilos em 1926-1935 para 3,6 em 1936-1945, para 3,5 quilos em 1945-1949. Regista-se, é certo, um aumento de 7 para 8 quilos da capitação do consumo geral de carne (de vaca, de carneiro, de porco e de cavalo), mas este aumento corresponde mais ao alargamento da inspecção a suínos e ovinos abatidos do que a um real aumento de consumo. Em Lisboa e Porto (onde não há divergência entre o número de reses abatidas e inspeccionadas), verifica-se não só uma diminuição progressiva nos últimos 25 anos dos bovinos aprovados para consumo (e, consequentemente, forte redução das capitações dado o grande aumento populacional), como uma diminuição geral da capitação de consumo de carne de todas as espécies pecuárias em conjunto. A capitação do consumo anual de carne bovina desceu em Lisboa de 11 quilos em 1926-1935, para 7 quilos em 1945-1949, e no Porto de 20 para 12 quilos; e a capitação do consumo total de carne desceu em Lisboa de 23 para 14 quilos e no Porto de 23 para 16 quilos(37). Para melhor se julgar a situação grave que estes consumos reflectem, basta dizer que, contra a capitação portuguesa de 132 quilos de cereais panificáveis em 1945-1949, a capitação média nos países do Plano Marshall foi de 159 quilos em 1946-1948; contra a capitação portuguesa de 105 quilos de batatas em 1945-1949, a capitação média nos mesmos Países foi de 228 quilos em 1947-1948; e, nos mesmos anos, contra a capitação portuguesa de 8 quilos de carne, a capitação média dos países do Plano Marshall foi de 30 quilos, excedendo os 40 na Suécia e os 50 na Dinamarca e Inglaterra(38). Não há dúvida de que, em Portugal, come-se mal e pouco. E como suceder de outra forma? Se em 1940 – ano em que se fez censo das pessoas e dos bichos – se tivessem consumido 40 quilos de carne por habitante na base das nossas existências pecuárias, teriam sido devorados todos os bovinos de trabalho e ceva, velhos e novos; todos os suínos grandes e pequenos; todos os ovinos e caprinos, machos e fêmeas de todas as idades; e, depois dessa hecatombe, teria ainda de ser devorada a totalidade dos bovinos leiteiros e a totalidade de cavalos e éguas de todas as raças e idades. Só à custa do completo extermínio de todas as espécies apontadas se conseguiria uma capitação de consumo de 40 quilos, coisa vulgar antes da guerra em países do Ocidente europeu.

Entretanto, em relação aos artigos alimentares de luxo (importados ou de produção nacional) a evolução dá-se no sentido contrário. É o que sucede com as indústrias de confeitaria e também com o chocolate e cacau, em que vemos a produção de bombons subir de 80 toneladas em 1940 para 279 em 1949, a produção de cacau em pó de 154 para 270 toneladas, a de chocolate em pó e moldado de 438 para 655 toneladas(39). É o que sucede também com bebidas "finas" (gins, brandes, uísques, conhaques), podendo bem dizer-se que tendem a diminuir as bebedeiras de vinho tinto, deselegantes, populares e de rua, para aumentarem as grossuras de vinhos espirituosos, odorantes, aristocráticas e de salão. É ainda o que sucede com os produtos de salsicharia, em cujos estabelecimentos de fabrico foram em 1944 consumidos 136.000 porcos equivalentes a 13.000 toneladas e em 1949, 225.000 porcos equivalentes a 22.000 toneladas(40). Em relação ao número de porcos abatidos para consumo a percentagem dos consumidores na indústria de salsicharia passou de 45% para 53%; em relação à tonelagem dos porcos aprovados para consumo, de 52% para 61%. Mas não só isso. Dentro da própria produção, nota-se, nos mesmos anos, o aumento absoluto e em percentagem de fiambres e "outros produtos preparados", isto é, artigos de maior luxo, e a diminuição da percentagem de ensacados, outros fumados e salgados. Mostra-se haver um desvio de consumo das classes populares e médias para consumo das classes abastadas.

O aumento das importações de géneros alimentícios, acompanhado pela diminuição da capitação dos consumos da grande maioria dos produtos agrícolas da alimentação popular e do crescente consumo de artigos alimentares de luxo, indica não só que, apesar do recurso crescente à produção agrícola de outros países, o nível alimentar do povo não tem melhorado como também que a agricultura portuguesa se mostra cada vez menos apta para satisfazer as necessidades do país.

Isto não significa que se esteja a assistir a uma progressiva diminuição global da produção agrícola e pecuária. Há diminuição nuns casos e aumento noutros.

TABELA 2
 Produções anuais médias(41)
  Unidade 1926-1935 1936-1945 1945-1949
Trigo 1.000 t 420 381 386
Milho 333 337 314
Centeio 115 104 139
Arroz 33 72 72
Batata 471 692 903
Azeite 1.000 hl 546 620 667
Vinho 6.930 9.000 8.614

Conforme mostra a tabela 2, nota-se um aumento no último quinquénio na produção de centeio; uma baixa na produção de milho depois da guerra em relação aos vinte anos anteriores; e uma baixa na produção de trigo em relação a 1926-1935, embora aumento em relação a 1935-1945. No conjunto dos três cereais panificáveis indicados, a produção média anual nos três períodos foi de 868.000, 822.000 e 839.000 toneladas, notando-se um retrocesso em relação a 1926-1935. Ao mesmo tempo, verifica-se, no último quarto de século, um aumento progressivo na produção da batata, azeite, vinho e arroz (sendo de acrescentar que, em 1950, a produção de arroz atingiu a cifra recorde de 135.000 toneladas).

O efectivo pecuário nacional das espécies comestíveis – de que talvez por temor das tristes verdades não se faz arrolamento desde 1940 – não tem tido, no conjunto, oscilações de vulto. O número de bovinos no continente era de 768.000, em 1925; 778.000, em 1934; 832.000, em 1940. O de cavalos (cuja carne aliás pouco se come) respectivamente 80.000, 86.000 e 81.000. O de ovinos, 3.684, 3.224 e 3.890 milhares. O de caprinos, 1.558, 1.257 e 1.196 milhares. O de suínos 1.117, 1.139 e 1.177 milhares(42). No conjunto, reduzidos os efectivos destas espécies a "cabeças normais", temos, para os três arrolamentos, 1.604, 1.557 e 1.670 milhares, o que mostra também uma prática estagnação.

As estimativas do rendimento nacional confirmam esta estagnação da produção agrícola portuguesa. Reduzido a preços de 1938, o valor do rendimento nacional da agricultura e silvicultura teria sido de 3.347.000 contos em 1938 e 3.585.000 em 1949. Dando ao rendimento nacional de 1938 o valor de 100, os índices de 1947, 1948 e 1949 teriam sido, respectivamente, 95, 110 e 107(43).

Fácil é de ver que, dado o importante aumento da população – mais de 2 milhões de 1920 a 1950 – estes ligeiros aumentos da produção agrícola (mesmo se os tomarmos como reais) representam efectivo retrocesso da agricultura portuguesa na sua aptidão para satisfazer as necessidades de consumo. As graves baixas das capitações da produção agrícola, particularmente no que respeita aos cereais, mostram-no claramente.

A produção média anual de trigo por habitante foi em 1926-1935 de 66 quilos, em 1936-1945 de 53 quilos e em 1945-1949 de 50 quilos. A produção média anual de milho por habitante, respectivamente, 52, 47 e 40 quilos. A produção de trigo, milho e centeio em conjunto 136, 114 e 107 quilos(44).

Na pecuária, o número de cabeças por 1.000 habitantes vinha decrescendo de forma notável até 1940, e é de presumir que essa tendência se tenha continuado a acentuar: bovinos 136 em 1925; 122 em 1934, 117 em 1940. Cavalares, respectivamente, 14, 14 e 11. Ovinos, 655, 507 e 543. Caprinos, 277, 198 e 167. Suínos, 198, 179 e 164. "Cabeças normais", 322, 284 e 266(45). Esta diminuição relativa do efectivo pecuário está na base da grande baixa do consumo de carne, fazendo admitir que outro tanto se esteja passando com a produção e consumo de leite. Em 1940, a produção de leite, por habitante, era de 15 litros(46), quando na Inglaterra subia a 120 litros; na Noruega, a 235; na Holanda, a 388; na Suíça, a 430; na Suécia, a 467; na Dinamarca, a 1.392(47). Nada permite supor que a situação tenha melhorado depois da guerra.

Assim se explica porque, embora recorrendo-se cada vez mais à agricultura estrangeira, embora aumentando as importações, diminuem os consumos. A causa aparente está em que, sem dúvida, em Portugal a população tem crescido mais depressa do que a produção das subsistências. Melhor: a população tem aumentado ante uma produção agrícola estacionária. Conforme será mostrado, tal disparidade não é uma "lei" do desenvolvimento das sociedades – nem sequer da sociedade capitalista –, ao contrário do que os mais variados discípulos de Malthus hoje proclamam nos mais variados tons. E, se desde já se notar que a agricultura portuguesa, dado o seu atraso geral, podia e pode produzir mais – incomparavelmente mais – do que produz, compreende-se que tal disparidade entre a população e as subsistências não é a causa real da diminuição dos consumos.


Notas:

(27) Lima Basto, Política Comercial Portuguesa, 1934, p. 88. (retornar ao texto)

(28) Parecer da Câmara Corporativa sobre a Lei de Meios para 1952, Diário das Sessões, 3.º supl. ao n.º 109, de 6 de Dezembro de 1951, mapa anexo n.º 18. (retornar ao texto)

(29) Carlos Mantero na Assembleia Nacional, Diário de Notícias de 19 de Janeiro de 1952. (retornar ao texto)

(30) M.me Garnier, Férias com Salazar. (retornar ao texto)

(31) Números referentes ao continente e ilhas, obtidos na base de elementos da estatística do Comércio Externo de 1947. Os farináceos abrangem cereais, farinhas, mascas e legumes secos. As frutas: frutas verdes, secas, em conservas e em doce. As gorduras: azeite, óleos, banha, unto e toucinho. Os "óleos vegetais" compreendem sementes e frutos oleaginosos. Os "vários" não incluem borracha; o que nesta rubrica mais pesa na exportação é a alfarroba, com 25.000 toneladas e 45.000 contos. Nas "bebidas" deu-se a cada litro o valor de um quilograma. Em anos posteriores, houve alteração da posição em algumas rubricas, mas mantém-se o aspecto geral deficitário. (retornar ao texto)

(32) Na base de elementos da estatística do Comércio Externo. Nas máquinas importadas não estão incluídos tractores e locomoveis (art. 764-B da pauta), porque não são discriminados os que se destinam à agricultura. Em 1947: 708 t, 13 867 contos. (retornar ao texto)

(33) Ezequiel de Campos, O Enquadramento, p. 285. (retornar ao texto)

(34) Diário de Notícias de 16 de Março de 1952. (retornar ao texto)

(35) Discurso do ministro da Economia na inauguração da fábrica de Estarreja, Diário de Notícias de 18 de Maio de 1952. (retornar ao texto)

(36) Na base da Estatística Agrícola de 1949. (retornar ao texto)

(37) Idem. (retornar ao texto)

(38) Salient Features of the World Economic Situation. 1945-1947, ONU, pp. 154-156. (retornar ao texto)

(39) Anuário Estatístico, 1940 e 1949. (retornar ao texto)

(40) Estatística Industrial, 1944 e 1949. (retornar ao texto)

(41) Na base de elementos da Estatística Agrícola. (retornar ao texto)

(42) Arrolamento Geral de Gado no Continente em 1925, Arrolamento Geral de Gado e Animais de Capoeira, 1934 e 1940. (retornar ao texto)

(43) Armando Castro, "Contribuição para Análise da Primeira Estimativa Oficial do Rendimento Nacional Português". Revista de Economia, IV, 4 de Dezembro de 1951, pp. 197 e 199. Parecer da Câmara Corporativa sobre a Lei de Meios, Diário das Sessões, 3.º supl. ao n.º 109, de 6 de Dezembro de 1951, mapa anexo n.º 18. (retornar ao texto)

(44) Calculado na base de elementos da Estatística Agrícola. (retornar ao texto)

(45) Costa Júnior, O Gado, Riqueza Nacional, pp 34, 35 e 40. (retornar ao texto)

(46) Calculado na base de elementos do Arrolamento Geral de 1940. (retornar ao texto)

(47) Calculado na base de elementos do Monthly Bulletin of Statistics da ONU. (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2006