Centralismo Democrático e Direção Coletiva

Giocondo Dias

20/27 de novembro de 1981


Primeira Edição: Jornal Voz da Unidade, S. Paulo, nº 83, 20/27 de novembro de 1981.

Transcrição: Lucas Silva

HTML: Fernando Araújo.

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Há cerca de 14 anos, em dezembro de 1967, os comunistas brasileiros realizavam os trabalhos finais de seu VI Congresso. Efetivado sob duras condições de clandestinidade e repressão, e no calor de uma ardorosa luta ideológica contra as formas com que, à época, se apresentava o “esquerdismo”, o VI Congresso do PCB marcou um indiscutível momento de avanço nas concepções dos comunistas brasileiros.

Na resolução política daquele congresso, entre outras tematizações, deu-se especial importância à questão orgânica; em certa passagem, afirma-se explicitamente a necessidade de “assegurar o pleno funcionamento da democracia e da disciplina partidárias, com base no centralismo democrático e na prática da direção coletiva”. Temos a mais firme convicção de que esta proposta, legítima ao tempo do seu enunciado, é hoje tanto mais válida. E temos mesmo a certeza de que a mais radical democracia partidária só pode ser garantida se se mantém os pressupostos leninistas do partido novo: o centralismo democrático e a direção coletiva.

O centralismo democrático tem sido objeto de inúmeras críticas. Se é verdade que nem todas são derivadas de oportunismos variados, é inconteste que a sua maioria resulta de um claro desconhecido da teoria e da prática leninistas. A pretexto de combater as deformações engendradas no período de vigência do “culto à personalidade”, deformações que liquidaram com a democracia em favor do burocratismo, passa-se a combater o próprio princípio de Lênin.

Em relação à teoria de Lênin, não são cabíveis as reservas que se generalizaram nos mais diferentes meios e círculos políticos. Nos termos leninistas, o centralismo democrático tem um conteúdo muito claro: liberdade de discussão com disciplina rigorosa e unidade de ação. Não há contradição entre centralismo e democracia: há uma relação dialética. A prática correta do centralismo cria as melhores condições para o florescimento da democracia interna e o desenvolvimento desta, por sua vez, fortalece o centralismo.

É esta relação dialética que viabiliza o partido dos comunistas como vanguarda revolucionária. A democracia sem direção centralizada converteria o partido num clube de discussões. O centralismo sem democracia, por seu turno, engendra o culto das personalidades, as mistificações e o caudilhismo. E o centralismo, combinado apenas com uma democratização atrofiada e subdesenvolvida, deságua no burocratismo adubado pela “compreensão” deste ou daquele dirigente, que acaba por se tornar “um juiz”, um “árbitro” de polêmicas.

É preciso reafirmar novamente: somente a justa relação entre democracia e centralismo pode criar as condições para que militantes e dirigentes tenham iniciativas, dinamizem suas intervenções e atividades e as compatibilizem com uma direção firme, sem a qual a condução da luta é impensável.

Dizíamos que a concepção leninista do centralismo democrático é inequívoca. De fato, a perspectiva de Lênin não admite dúvidas: o centralismo significa que o partido tem um só programa e um só estatuto, obrigatório para todos os membros e todas as organizações; que sua direção é única, devendo os órgãos e organizações cumprirem incondicionalmente as decisões centrais; que só existe uma disciplina, válida para todos os membros; que a minoria se subordina à maioria.

A democracia significa que o programa e os estatutos, assim como as decisões mais importantes, só são aprovados depois de discutidos pela totalidade dos membros do partido; que todos os membros são igualmente eleitores e elegíveis; que todos os órgãos dirigentes têm caráter eletivo, sendo renovados periodicamente e obrigados a periódicas prestações de contas; em suma: que todos os membros participam, direta e indiretamente, da vida partidária.

O centralismo e a observância incondicional da disciplina são necessários para que o partido articule uma vontade política comum capaz de expressar-se numa prática coerente e unitária. Mas estas vontade e prática só se alcançam pela democracia: a discussão coletiva das questões fundamentais e a determinação de resoluções que envolvam compulsoriamente todos os membros. A garantia única de uma prática democrática sistemática reside na disciplina; sem a disciplina mais rigorosa, a democracia passa a ser uma eventualidade tática. Por isto mesmo, Lênin sempre foi incisivo: sem a subordinação à maioria, desaparecem os mecanismos que dão estabilidade e coesão à vida partidária. Consequentemente, quem se nega a cumprir as decisões da direção central está renunciando a sua condição de membro do partido.

Entretanto, o centralismo democrático, tal como Lênin o formulou, só adquire uma eficiência plena quando a vida partidária está submetida a uma organização de tal ordem que a direção se realize sob forma coletiva (aliás, a prática de Lênin como dirigente sempre se apoiou no trabalho coletivo, como sabem todos aqueles que conhecem a história dos bolcheviques).

A própria vida social, cada vez mais complexa e diferenciada, impõe a direção coletiva. A magnitude dos problemas sócio-políticos, a estrutura das questões que o desenvolvimento histórico apresenta, a diversidade das variáveis concorrentes nas conjunturas políticas – tudo isto requer uma direção agilizada pela especialização, pela reflexão plural, pela assessoria profissional e qualificada.

Foram-se os tempos da prática artesanal e improvisada do dirigente monopolizador de respostas e soluções.

Ademais, é na direção coletiva que pode ser estimulado o espírito crítico e criativo. Neste contexto, o exame de todos os prismas de uma questão, a tolerância e a ponderação nada têm a ver com a vacilação: passam a ser o requisito para superar a ligeireza e a superficialidade no trato dos problemas.

O corolário natural da direção coletiva é que a tomada de decisões importantes cabe ao coletivo correspondente e não a indivíduos isolados. O que fortalece a responsabilidade pessoal: a decisão coletiva não exclui o controle das ações, antes o revigora na perspectiva das atividades solidárias.

Estas reflexões não nos parecem um exercício de especulação. A história política dos comunistas brasileiros é pródiga no exemplário de equívocos resultantes da incompreensão dos princípios de organização leninistas. Entretanto, elas nos parecem essenciais para esclarecer o futuro imediato dos comunistas brasileiros.

Uma correta definição da estrutura orgânica do partido legal que queremos construir será decisiva para o perfil da revolução brasileira. De fato, sem ela, corremos o risco de ressuscitar velhas fórmulas golpistas, estimuladas pelos benefícios com que uma tradição de clandestinidade favorece os sectarismos. Ao mesmo tempo, podemos escorregar na tentação fácil de projetar um partido eleitoreiro, com um grande contingente de aderentes.

Centralismo democrático com direção coletiva, tal como sumariamente os caracterizamos aqui, parece-nos ser a alternativa superadora do blanquismo e do populismo. A partir dela, poderemos edificar, na conquista da legalidade, um partido revolucionário de massas, situado igualmente além do saudosismo conspirativo e da degenerescência social-democratizante.


Inclusão: 01/10/2022