Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África

As tentativas desesperadas de Debré(1)


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Michel Debré, Chefe do Governo Francês, veio recentemente à Argélia. Entrou em contacto com as autoridades colonialistas e definiu, em intenção destas, o programa do seu governo.

“A autoridade da França na Argélia”, dirá, “é uma exigência da história, da natureza, da moral.” Esta declaração, esclarecida por tomadas de posição mais firmes, como essa frase proferida perante os antigos combatentes: “É preciso que todos os argelinos saibam e compreendam definitivamente que cada habitante deste país é cidadão francês de pleno direito como qualquer outro cidadão da metrópole e que em nenhum caso o Governo Francês aceitaria que essa cidadania fosse posta em questão.”, ou aquela outra contida na alocução pessoal do Presidente do Conselho Francês: “A verdade é que a Argélia é terra de soberania francesa.”, indica simultaneamente a não modificação da população francesa na Argélia e a importância do hiato que existe atualmente entre a vontade nacional do povo argelino e a obstinação colonialista francesa.

Um tempo histórico falsificado

O programa de Debré situa-se num dogmatismo colonialista eminentemente ortodoxo.

Diz-se que a conquista cria laços históricos. O novo tempo inaugurado pela conquista, esse tempo colonialista, porque habitado por valores colonialistas, porque tirando a sua razão de ser da negação do tempo nacional, vai ser afetado de um coeficiente absoluto. A história da conquista, o desenvolvimento histórico da colonização e do despojamento nacional. vão substituir o tempo real dos homens explorados. E o que será afirmado pelos colonizados no momento da luta de libertação nacional como vontade de romper com a exploração e com o desprezo será rejeitado pela potência colonialista como símbolo de barbárie e de regressão. É que o colonialista, através de um mecanismo de pensamento ao fim e ao cabo bastante banal, chega a já não poder imaginar um tempo que se faça sem ele. A sua irrupção na história do povo colonizado é deificada, transformada em necessidade absoluta. Ora, um “olhar histórico sobre a história” exige, pelo contrário, que o colonialista francês se retire, porque se tornou historicamente necessário que o tempo nacional exista na Argélia.

A exigência histórica de Debré é o equivalente intelectualizado da velha fórmula colonialista: “Fomos nós que fizemos a Argélia.”

Na verdade, aquilo que se dá como fidelidade à história não é, em última análise, senão infidelidade à história, senão recusa se estar à altura do período de descolonização, senão desobediência à história.

Em 1959, o sentido da história exige que os 10 milhões de argelinos tomem o seu destino nas mãos. Desde há mais de quatro anos, os sucessivos governos franceses revelam-se incapazes de interpretar objetivamente este problema. As declarações de Debré não diferem em nada das declarações proferidas por Léonard ou por Soustelle: “A França está na Argélia e ali ficará”, diziam em 1954.

Em 1959, “a França permanecerá”.

Os doutrinários do colonialismo evocam geralmente um outro tema. o da união indissolúvel da Argélia com a França.

Uma geografia de intenções

Não podendo ser nem sentimental nem intelectual, esta união será geográfica. E ora a França é o prolongamento europeu da Argélia, ora a Argélia o prolongamento africano da França.

As dificuldades internacionais da Europa vão dar a esta união geográfica uma primazia cada vez mais marcada. No âmbito do sistema defensivo do Ocidente, o território argelino ocupa um lugar privilegiado. É o que irão realçar os diversos defensores da Argélia Francesa. É também neste sentido que o problema será evocado por Debré: “Por outro lado, devemos compreender que a liberdade e o progresso, a segurança e a paz, se ligam nesta parte do Mundo à unidade, por cima do Mediterrâneo, da França metropolitana, porta da Europa, com a Argélia, cabeça da África. Todo o atentado a esta unidade é um risco de insegurança! Todo o reforço desta unidade, uma garantia de paz. A França deve, pois, fazer com que ninguém possa duvidar da sua vontade de tornar esta unidade mais firme do que nunca.”

Assim, a Argélia deve permanecer terra francesa, porque as necessidades estratégicas da Europa e da França o exigem. A geografia de Debré é, pois, uma geografia animada de intenções: a autoridade da França na Argélia é uma exigência da natureza. É a ordem natural que impõe à França a manutenção do regime colonial na Argélia. A partir do momento em que os regimes ou os homens começam a ler as suas ações políticas nas sinuosidades do terreno, é do fascismo e do nazismo que passa a ser a questão.

É prolongando pela imaginação certas linhas do terreno que os governos tornam a pôr em causa a paz do Mundo. Queiram eles realmente dar livre curso às suas fantasias e estender o que há já vários séculos se chama as fronteiras naturais, e eis povos inteiros lançados no sangue e na miséria.

Não deveria ser segredo para ninguém que a geografia da Argélia reclama, em primeiro lugar, que este país seja independente.

E depois, sem dúvida, tem o seu lugar a tomar no Maghreb, em África, e no Mundo. Mas negar o destino nacional da Argélia em nome de uma “maior união franco-argelina” é uma impostura. Nisto Debré não inova. Desde há quatro anos que se estabeleceram tradições nos governos franceses.

Escapando à história e à natureza, Debré desemboca na moral. Encontra ainda, parece que sem esforço, os grandes princípios do ultracolonialismo: “Que farão os Argelinos sem nós?” Os colonos da Mitidja diziam e dizem ainda: “Estas vinhas, daqui a quatro anos, estarão transformadas em pântanos.”

Debré não diz outra coisa: “Quer-se lançar a Argélia na miséria, na barbárie e no sangue.”

A moral em socorro da exploração

Ora, outro tema é este: só a França é capaz de se encarregar beneficamente da Argélia.

Só a França pode encarregar-se economicamente da Argélia.

Debré dirá de novo tudo isto em Argel.

“A França tem uma obrigação de ordem económica... A França tem uma obrigação de ordem social... A França tem uma obrigação humana, pois só ela é capaz de manter e reforçar... esta união e até fraternidade dos espíritos que dão à Argélia um caráter e uma força única no Mundo.”

Sinal dos tempos! No princípio da conquista era este pretexto que era evocado. Luta contra a barbárie, contra a miséria, contra o atraso. Hoje, depois de cento e trinta anos de exploração, que constituem paradoxalmente um direito, e da luta dos blocos, é a história e a estratégia que tomam o primeiro lugar.

A moral francesa, os valores franceses são os únicos capazes de manter a Argélia no campo das “regiões humanas”.

Debré previne-nos de que a partida da França seria o sinal de uma recaída da Argélia no arcaísmo, no atraso e no embrutecimento.

Oito meses depois da tornada do Poder pelo general De Gaulle, voltamos aos primeiros meses da luta de libertação do nosso povo: “A França está em sua casa na Argélia, pois a Argélia é obra da França. A França tem necessidade da Argélia, pois, sem a Argélia, que faria a França? A Argélia tem necessidade da França, pois, sem a França, que faria a Argélia?”

E, para concluir, esta precisão contida na alocução pessoal de Debré: Quem pode duvidar, a não ser pessoas de má-fé, com segundas intenções, das resoluções do general De Gaulle? Quem ousa, a não ser pessoas dc má-fé, com segundas intenções, duvidar quando o general De Gaulle declarou que não haveria negociações políticas?”

A V República Francesa não parece dar mais provas de imaginação do que a precedente. Retomam-se as mesmas afirmações com a mesma obstinação cega, com o mesmo desprezo pelos acontecimentos, com a mesma inteligência da história.

Pretender em 1959 que todos os argelinos são franceses, que a França permanecerá na Argélia e que não poderá haver negociações políticas, é, a despeito do bom senso, prosseguir na via da intensificação da guerra.

É incontestavelmente voltar as costas à negociação e à razão.

É verdade que esta cegueira não é resultado de um erro de apreciação. A França e o seu Governo ainda estão dominados por interesses colonialistas. Ora, desde 13 de Maio, assistimos à aliança destes interesses tradicionais com a escalada fascista e militarista que continua muito forte em França (Boulanger, De La Rocque, Pétain...) e com uma certa fração do grande capital.

Enquanto esta aliança não for posta em causa, os Presidentes do Conselho franceses estão condenados a inspirar as suas declarações na tradição ultracolonialista.

É preciso saber que ainda está longe o tempo que assistirá à destruição do bloco colonialista pelo desenvolvimento das contradições.

Hoje, como há quatro anos, a palavra de ordem continua a ser intensificar a luta armada. Todas as tentativas de diversão do adversário devem ser aniquiladas.

Do lado francês, estão bem longe de se encontrar reunidas as condições para uma negociação. O programa de Debré é fazer a guerra, negar a nação argelina, aprofundar a anexação do nosso país.

Sim, como dizia Yazid, ministro da Informação, falar de soberania francesa na Argélia em 1959 é loucura. Não há outro termo.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) El Moudjahid, n.° 37, de 25 de Fevereiro de 1959 (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2018