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As instruções prussianas aos censores, em 24 de dezembro de 1841, foram saudadas com alegria pelos intelectuais liberais que nelas viam as premissas da liberdade de imprensa. O artigo de Marx sobre a censura, que marca sua entrada na vida política, acentua a incompatibilidade entre a liberdade de imprensa e a censura, incompatibilidade que as instruções do rei da Prússia, Frederico Guilherme IV, procuram mascarar. O artigo de Marx, escrito nos começos de 1842 e dirigido em 10 de fevereiro de 1842 a Ruge para os seus Anais Alemães, não pôde neles aparecer, tendo a censura tornado sua publicação impossível; só foi publicado em fevereiro de 1843, em Anekdota, miscelânea de artigos filosóficos e políticos, editado na Suíça, por A. Ruge(1).
Minha propriedade é a forma; ela constitui minha individualidade espiritual. O estilo é o homem. E quanto! A lei me permite escrever, mas sob a condição de escrever em outro estilo que não o meu! Tenho o direito de mostrar a fisionomia de meu espirito, mas devo preliminarmente prendê-lo nos limites prescritos! Que homem de honra deixará de corar diante de tal pretensão e não preferirá esconder a cabeça debaixo da toga? A toga pelo menos deixa pressupor uma cabeça de Júpiter. As pregas prescritas não significam outra coisa que “bonne mine à mauvais jeu”.
Admirais a variedade encantadora, a riqueza inesgotável da natureza. Não exigireis que a rosa tenha o perfume da violeta, -mas o que há de mais rico, o espirito, não deve ter também a faculdade de existir de um só modo? Sou um humorista, mas a lei me ordena que escreva seriamente. Sou audacioso, mas a lei ordena que meu estilo seja moderado. Cinzento sobre cinzento eis a cor única, a cor autorizada da liberdade. A menor gota de orvalho, na qual se reflete o sol, cintila num inesgotável jogo de cores, mas o sol do espirito seja qual for o número de indivíduos e a natureza dos objetos, em que ele se reflete, não poderia dar senão uma cor: a cor oficial! A forma essencial do espirito é a alegria, a luz, e fazeis da sombra sua única manifestação adequada; ele não deve ser vestido senão de preto e não há entretanto entre as flores uma flor negra. A essência do espirito é sempre a própria verdade. E o que fixais como sendo a sua essência? A modéstia. Só o mendigo é modesto, diz Goethe; e é num tal mendigo que queres transformar o espirito? Ou a modéstia seria apenas essa modéstia do gênio de que fala Schiller? Então transformai inicialmente todos os vossos concidadãos em gênios e antes de tudo vossos censores.
(MARX, Observações sobre as Recentes Instruções Prussianas Relativas à Censura. Obras, t. I, pág. 154, ed. Al. Obras filosóficas, t. I, pgs. 124-127, Edit. Costes, 1927).
Marx publica em maio, 1842, na Gazeta Renana, uma série de artigos nos quais critica a posição tomada em face à censura pela Dieta Renana, assembleia provincial medíocre onde, no decorrer dos debates, não se encontrou, no seio de diversos partidos, nenhum defensor verdadeiro da liberdade de imprensa.
Como sempre acontece, Sancho(2) novamente não tem sorte com seus exemplos práticos. Pensa que ninguém pode “compor em teu lugar as partituras musicais, executar teus esboços pictóricos. Ninguém pode substituir os trabalhos de Rafael”. Sancho deveria entretanto saber que não foi o próprio Mozart, mas um outro, que compôs a maior parte e terminou completamente o Réquiem de Mozart; que Rafael não “executou” ele próprio senão uma ínfima parte de seus afrescos.
Sancho pensa que aqueles que são chamados os organizadores do trabalho, querem organizar toda a atividade de cada indivíduo, enquanto que são eles, precisamente, que fazem a diferenciação entre o trabalho diretamente produtivo que é preciso organizar e o trabalho que não é diretamente produtivo. No que concerne a esta última categoria, eles não pensam, como supõe Sancho, que cada um deve substituir Rafael, mas que todo aquele que traz em si um Rafael, deve poder desenvolver-se livremente. Sancho pensa que Rafael executou suas pinturas independentemente da divisão do trabalho que existia em Roma. Se comparar Rafael a Leonardo da Vinci e Ticiano, verá a que ponto as obras de arte do primeiro foram condicionadas pelos progressos, pela expansão de Roma, então devidos à influência florentina; as de Leonardo pelo estado social de Florença, e, mais tarde, as de Ticiano pelo desenvolvimento, inteiramente diverso, de Veneza. Rafael, como qualquer outro artista, foi condicionado pelos progressos técnicos da arte realizados antes dele, pela organização da sociedade e a divisão do trabalho em seu país e finalmente pela divisão do trabalho em todos os países com os quais o seu tinha relações. Que um indivíduo como Rafael possa desenvolver seu talento, isso depende inteiramente da procura, a qual depende por sua vez da divisão do trabalho e das condições de educação dos homens que dela decorrem.
Stirner, proclamando o caráter único do trabalho científico e artístico, coloca-se bem abaixo da burguesia. Considerou-se necessário, já em nossos dias, organizar essa atividade “única”. Horácio Vernet não teria tido tempo de executar a décima parte de seus quadros se os tivesse considerado como trabalhos “que só esse ser único pode realizar”. A grande procura de “vaudevilles” e de romances em Paris, fez nascer uma organização do trabalho para a produção desses artigos que, apesar de tudo, é melhor que seus concorrentes “únicos” na Alemanha. Em astronomia, homens como Arago, Herschel, Enke e Bessel, acharam necessário organizar-se para observações comuns, e só chegaram a realizá-lo depois de alguns resultados satisfatórios. Em história, é absolutamente impossível ao “único” realizar alguma coisa e os franceses, também neste terreno, e desde há muito tempo, ultrapassaram todas as outras nações graças à organização do trabalho. Não é preciso dizer que todas essas organizações baseadas sobre a divisão moderna do trabalho alcançam resultados ainda muito limitados e não constituem um progresso senão em relação ao retalhamento limitado até então existente.
É preciso acentuar ainda particularmente que Sancho confunde a organização do trabalho com o comunismo e vai até ao ponto de espantar-se de que o “comunismo” não responda às suas dúvidas a respeito dessa organização. Espanta-se assim um jovem camponês de Gasconha de que Arago não saiba dizer-lhe dentro de que estrela o bom Deus construiu sua moradia.
A concentração exclusiva do talento artístico em alguns indivíduos e seu sufocamento nas grandes massas, que daí decorre, é um efeito da divisão do trabalho. E mesmo se, em certas condições sociais, cada um pudesse tornar-se um excelente pintor, isso não impediria que cada um fosse também um pintor original, de maneira que, igualmente aqui a diferença entre o trabalho “humano” e o trabalho “único” é um absurdo. Com uma organização comunista da sociedade terminar-se-á em todos os casos a escravização do artista à estreiteza local e nacional, que provém unicamente da divisão do trabalho e a escravização do indivíduo a uma arte determinada que dele faz exclusivamente um pintor, um escultor etc.; esses títulos exprimem já suficientemente a estreiteza de seu desenvolvimento profissional e sua dependência da divisão do trabalho. Numa sociedade comunista não haverá pintores, mas homens que, entre outra coisa, farão pintura.
(MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã. Obras, t. V, pgs. 372-373, Ed. A..)
Só a escravização torna possível a divisão do trabalho entre a agricultura e a indústria numa larga escala e, daí, o completo desenvolvimento do mundo antigo, o helenismo. Sem escravidão, não haveria Estado grego, nem arte nem ciências gregas, sem escravidão, não haveria Império romano. E, sem esta base de helenismo e de Império romano, não haveria a Europa moderna. Não devemos nunca esquecer que todo o nosso desenvolvimento econômico, político e intelectual tem por condição preliminar um Estado onde a escravidão foi tão necessária quanto geralmente reconhecida. Nesse sentido, temos o direito de dizer, sem a escravidão antiga, não haveria socialismo moderno,
Não é difícil atacar a escravidão e outras coisas desse gênero em formas gerais e manifestar uma sublime indignação moral contra tal ignomínia. A desgraça é que assim fazendo se está apenas repetindo o que todo mundo sabe, quer dizer, que essas instituições antigas não correspondem mais à nossa situação presente e a nossos sentimentos determinados por essa situação. Mas isso não nos ensina nenhuma palavra sobre a origem dessas instituições, da razão que as mantém e do papel que elas desempenharam na historia. E, se estudamos de perto esta questão, somos obrigados a dizer, por mais contraditória e herética que pareça essa afirmação, que a introdução da escravidão foi, nas circunstancias em que ela se produziu, um grande progresso. É, uma vez por todas, um fato que a humanidade, nascida da animalidade, necessitou de meios bárbaros, quase animais, para sair da barbárie. As antigas comunidades, onde elas subsistiram, constituem desde há milhares de anos a base do sistema político o mais grosseiro: do despotismo oriental, da Índia à Rússia. Só onde elas foram dissolvidas os povos realizaram progressos sobre si mesmos, e seu primeiro progresso econômico consistiu no crescimento e desenvolvimento da produção por meio do trabalho servil. É claro, enquanto o trabalho do homem era ainda bastante pouco produtivo para só deixar um pequeno excedente sobre os objetos necessários à existência, incrementar as forças produtivas, alargar o comércio, desenvolver o Estado e o direito, fundar a arte e a ciência, não era possível senão por uma maior divisão de trabalho. Esta devia ter por base a grande divisão do trabalho entre as massas ocupadas no simples trabalho manual e o pequenino número de privilegiados tendo a direção do trabalho, do comércio, dos negócios públicos, e, mais tarde, ocupando-se de arte e de ciência. A forma primitiva e a mais simples desta divisão do trabalho foi precisamente a escravidão. Considerando os antecedentes históricos do mundo antigo, especialmente do mundo helênico, o progresso levado à uma sociedade fundada sobre antagonismos de classes só poderia realizar-se sob a forma de escravidão. E foi isto um progresso até mesmo para os escravos prisioneiros de guerra, entre os quais a massa dos escravos era recrutada, conservaram pelo menos a vida, em lugar serem, como anteriormente, mortos ou, mais anterior ainda, queimados vivos.
Acrescentemos, aqui, que, até o presente, os antagonismos históricos entre classes exploradoras e exploradas, dominantes oprimidos, todos os antagonismos se explicam por esse mesmo erro de desenvolvimento relativo na produtividade do trabalho humano. Enquanto a população trabalhando materialmente esteve de tal maneira ocupada por suas tarefas necessárias à vida, que não lhe restava tempo para se ocupar dos negócios comuns da sociedade, direção do trabalho, negócios públicos, negócios jurídicos, arte, ciência, etc., foi sempre necessário a existência de uma classe especial que, libertada do trabalho material, se ocupasse dessas coisas; fazendo-o, ela nunca deixou de impor às classes trabalhadoras, para seu próprio lucro, uma carga de trabalho cada vez mais pesada. Só o aumento enorme das forças produtivas, alcançado graças à grande indústria, permite a divisão de trabalho entre todos os membros da sociedade, sem exceção, e, daí, por esse meio, a-diminuição do tempo de trabalho de cada um, de tal maneira, que todos tenham bastante tempo livre para tomar parte nos negócios gerais teóricos e práticos — da sociedade. Porquanto somente agora é que toda a classe dominante e exploradora se tornou supérflua, ou, antes, se tornou obstáculo à evolução social, e é também somente agora que ela será inexoravelmente suprimida, mesmo tendo ainda nas mãos a “força imediata”.
(ENGELS, Anti-Dühring, pgs. 172-174, Ring Verlag, Zürich, 1934, ed. Al., Ed. Costes, t. II, pgs. 66-69).
A Introdução a uma Critica da Economia Política, á qual Marx alude em seu prefácio á Contribuição à critica da economia política (1859), foi reencontrada nos manuscritos de Marx e publicada pela primeira vez por Kautsky na revista Die Neue Zeif, em 1903. Nas últimas páginas da-Introdução, Marx levanta uma série de problemas históricos e sociológicos (papel intermediário do mito na arte, relações desiguais entre o desenvolvimento da produção artística, valor permanente da arte grega) que é necessário resolver-para elaborar uma estética e uma sociologia da arte, baseadas sobre o materialismo dialético.
Em relação à arte, sabe-se que determinados períodos de florescimento não estão em absoluto ligados ao desenvolvimento geral da sociedade, nem, por consequência, à base material, que é, de certo modo, o esqueleto de sua organização. Por exemplo, os gregos comparados com os modernos, ou ainda Shakespeare. No que concerne a certos gêneros de arte, por exemplo, a epopeia, admite-se que eles não possam jamais ser produzidos sob sua forma clássica, marcando uma época no mundo, desde que a produção artística aparece como tal; portanto, no domínio da própria arte, certas manifestações importantes só são possíveis num grau inferior do desenvolvimento da arte. Se isso é verdadeiro quanto às relações entre os diferentes gêneros de arte, no domínio da própria arte, não é de admirar que o mesmo aconteça nas relações do domínio total da arte com o desenvolvimento geral da sociedade. A dificuldade consiste apenas na formulação geral dessas contradições.
Desde o momento que nós a especificamos, elas estão explicadas.
Tomemos, por exemplo, a relação da arte grega e depois da arte de Shakespeare com o tempo presente. Sabe-se que a mitologia grega não foi apenas um arsenal da arte grega, mas seu domínio. A concepção da natureza e das relações sociais, que repousa no fundo da imaginação grega e, portanto, da arte grega, será compatível com as máquinas de fiar automáticas, as estradas de ferro, as locomotivas e o telegrafo elétrico? Que é Vulcano junto de Roberto e Cia., Júpiter perto do para-raios e Hermes diante do Crédito Mobiliário? Toda mitologia doma e domina e dá forma às forças da natureza pela imaginação e na imaginação; desaparece quando consegue dominá-las realmente. A que fica reduzida a Fama diante da printing-house-squadre?(3) A arte grega pressupõe a mitologia grega, quer dizer a natureza e as formas sociais, elas próprias modeladas, de um modo inconscientemente artístico, pela fantasia popular. Estes os seus materiais. Não é uma mitologia qualquer, isto é, não é uma transformação inconscientemente artística da natureza (esta ultima compreendendo aqui tudo o que é objeto, portanto também à sociedade), A mitologia egípcia não poderia nunca ser o terreno, o seio maternal da arte grega. Mas, de qualquer modo, era preciso uma mitologia. Em nenhum caso, portanto, a arte grega podia nascer de um desenvolvimento social que excluísse toda relação mitológica com a natureza ou toda relação com tendência mitológica, pedindo ao artista uma imaginação independente da mitologia.
Por outro lado, Aquiles seria possível na época da pólvora e do chumbo? Ou, de maneira geral, a Ilíada seria possível na época da imprensa moderna ou mesmo do prelo? Os cantos e as lendas e a Musa não desapareceriam necessariamente com barra do tipógrafo, e por conseguinte, as condições necessárias da poesia épica não desapareceriam?
Mas a dificuldade não consiste em compreender que a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade consiste em compreender que elas nos proporcionem até hoje prazeres estéticos e sejam tidas sob certos aspectos como norma e modelos inacessíveis.
Um homem não pode tornar a ser criança sem cair na infância. Mas não se diverte ele com a ingenuidade da criança e não deve ele próprio desejar reproduzir em um nível superior, sua verdade? Será que na natureza infantil o caráter próprio de cada época não revive em sua verdade natural? Por que a infância social da humanidade, no melhor de seu desenvolvimento, não haveria de exercer como uma fase para sempre desaparecida, uma eterna atração? Há crianças mal educadas e crianças envelhecidas. Muitos dos antigos povos pertencem a esta categoria. Os gregos eram crianças normais. A atração que encontramos em sua arte não está em contradição com o fraco desenvolvimento da sociedade em que cresceu. É antes o produto dessa sociedade e está indissoluvelmente ligada ao fato de que as condições sociais inacabadas em que nasceu essa arte — e só aí poderia ter nascido — nunca poderão voltar.
(MARX, Contribuição à Critica da Economia Política, pgs. 246-248, Ring Verlag, Zürich, 1934, ed. al.; Ed. Giard & Brière, pgs. 350-352).
Apoiando-se nas pesquisas do sábio americano Lewis Morgan, que descobria, a seu modo, quarenta anos depois de Marx, a concepção materialista da historia, Engels estuda na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1844), o desenvolvimento da sociedade primitiva até o aparecimento das classes e do Estado.
Para a quarta edição aparecida em 1891, Engels escreveu um prefácio onde passa em revista os historiadores da família que só começaram a aparecer depois de 1860.
A história da família data de 1861, da publicação do Direito matriarcal, de Bachofen. O autor apresenta as seguintes afirmações:
Bachofen encontra as provas dessas proposições numa infinidade de passagens da literatura clássica da antiguidade, recolhidas com extremo cuidado. A evolução do “hetairismo” para a monogamia, e do matriarcado para o patriarcado, realizou-se, segundo ele, notadamente entre os gregos, como resultado de um desenvolvimento das ideias religiosas, da introdução de novas divindades representando a nova concepção no grupo das antigas divindades que encarnavam a concepção antiga, de maneira que esta se encontra cada vez mais afastada para o segundo plano por aquela. Não foi, portanto, o desenvolvimento das condições materiais de existência dos seres humano, mas o reflexo religioso dessas condições nos cérebros desses mesmos seres que, segundo Bachofen, produziu as modificações históricas na situação social reciproca do homem e da mulher. Segundo esse ponto de vista, Bachofen apresenta a Orestes, do Esquilo, como o quadro dramático da luta entre o direito matriarcal em agonia e o direito patriarcal nascente e vitorioso na época heroica(4) Clitemnestra, por amor de seu amante Egisto, matou seu marido Agamemnon que voltava da guerra de Troia; mas Orestes, filho de Clitemnestra e de Agamemnon, vinga a morte do seu pai matando sua mãe. Por esse feito, é perseguido pelas Erínias, protetoras demoníacas do direito matriarcal, segundo o qual o matricídio é o mais grave e o mais inexpiável dos crimes. Mas, Apolo que, por seu oráculo, provocou Orestes a esse ato, e Ateneia, chamada como juiz — as duas divindades representam aqui a nova ordem, a ordem do direito patriarcal — o protegem; Ateneia ouve as duas partes. Todo o litígio é resumido no debate que então se trava entre Orestes e as Erinias. Orestes se baseia no fato de Clitemnestra ter cometido um duplo crime matando seu esposo, dela e seu pai, dele. Por que então as Erinias o perseguiram, a ele e não a ela, que é muito mais culpada? A resposta é surpreendente:
— “Ela não era unida pelos laços de sangue ao homem a quem matou.”
A morte de um homem não consanguíneo, mesmo quando é o esposo da assassina, é expiável, não interessa as Erinias: só faz parte de suas funções a perseguição do assassínio entre consanguíneos, e, segundo o direito matriarcal, é a morte da mãe o mais grave, o mais inexpiável. Então Apolo intervém em defesa de Orestes; Ateneia faz com que os areeopagistas — os vereadores de Atenas — votem; os votos são em igual número para a absolvição e para a condenação; Ateneia, então, na qualidade de presidente, vota por Orestes e o absolve. O direito patriarcal venceu o direito matriarcal; os “Deuses de jovem raça”, como foram designados pelas próprias Erinias, vencem-nas e, finalmente, elas também se deixam persuadir a entrai ao serviço da nova ordem de coisas.
Esta interpretação nova mas justa do Orestes é um dos mais belos e dos melhores trechos de todo o livro, mas prova também que Bachofen crê nas Erinias, em Apolo e em Ateneia, pelo menos tanto quanto Esquilo o creu em seu tempo; crê realmente que essas divindades realizaram, nos tempos heroicos da Grécia, o milagre de substituir o direito matriarcal pelo direito patriarcal. Está claro que uma tal concepção, em que a religião é considerada como a alavanca determinante da história do mundo, deve finalmente chegar a um puro misticismo. Assim é um trabalho repugnante e pouco proveitoso todo o estudo do grosso “in-quarto” de Bachofen. Tudo isso aliás não diminui seu mérito de pioneiro; ele foi o primeiro a substituir a frase sobre os tempos primitivos desconhecidos em que reinava a promiscuidade sexual pela prova que a literatura clássica da antiguidade nos apresenta numa infinidade de vestígios, segundo os quais, antes da monogamia, existiu, efetivamente, entre os gregos e os asiáticos, um estado de coisas em que não somente um homem tinha relações sexuais com várias mulheres, mas ainda uma mulher com vários homens, sem pecar contra os costumes. Bachofen provou que esse costume não desapareceu sem deixar traços num abandono temporário de seus corpos, pelo qual as mulheres deviam comprar seu direito a um casamento único; que, depois, a descendência não podia primitivamente ser contada senão em linha feminina, de mãe a mãe; que essa validade exclusiva da filiação feminina conservou-se muito tempo ainda no seio da época da monogamia, com uma paternidade assegurada ou pelo menos reconhecida; enfim, que essa situação primitiva das mães como os únicos autores certos de seus filhos lhes assegurava a elas e, por conseguinte, às mulheres em geral, uma condição social mais elevada que aquela que elas nunca mais obtiveram depois. Esses princípios, Bachofen não os enunciou, na verdade, tão claramente. O misticismo de suas concepções o impedia. Mas demonstrou-os e isso equivale, em 1861, a uma completa revolução.
(ENGELS, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, prefácio à quarta edição, pgs. 32-35, Ring Verlag, Zèrich, ed. al., Ed. Costes, 1931 pgs. XV-XX).(5)
No último parágrafo do prefácio que escreveu para a edição italiana do Manifesto do Partido Comunista, prefácio datado de Londres, 1 de fevereiro de 1893, Engels relembra que as épocas de transição são favoráveis à eclosão dos gênios literários.
O Manifesto faz inteira justiça à ação revolucionaria que o capitalismo exerceu no passado. A primeira nação capitalista foi a Itália.
O fim da Idade Média feudal e o nascimento da era capitalista moderna são marcados por uma figura colossal; um italiano, Dante, é, ao mesmo tempo, o último poeta da Idade Média e o primeiro poeta moderno. Hoje, como em 1300, uma nova era histórica se apresenta. Dar-nos-á a Itália um novo Dante que marque a hora do nascimento desta nova era proletária?
(ENGELS, Manifesto do Partido Comunista, prefacio à edição italiana, Milão, 1893).
Em abril de 1841 — meio século antes de escrever sobre Dante – o jovem Engels, que assinava Friedrich Oswald, na revista Telegraph für Deutschland, escreveu um artigo à memória do poeta Immermam acentuando como são complexos os escritores dos períodos de transição.
Parecerá sempre artificial fazer Corneille brotar da Idade Média romântica e pretender que Shakespeare deve à Idade Média mais do que a matéria bruta que nela encontrou.
(ENGELS, À Memória de Immermann. Obras, t. II, p. 116, ed. al.).
Depois das jornadas de março de 1848, um Parlamento nacional alemão foi eleito e reuniu-se em Francfort-sur-le-Mein. Engels o chama, em seu artigo da New York Tribune, de 27-de fevereiro de 1852, uma "assembleia de velhas", que "tinha mais medo do menor movimento popular que de todas as conspirações reacionárias dos governos alemães juntos."
Essa assembleia de poltrões e de tagarelas, sancionou a partilha da Polônia. Marx e Engels na Nova Gazeta Renana que editavam em Colônia, dedicaram, de 7 de agosto a 6 de setembro de 1848, uma série de artigos aos debates da assembleia sobre a Polônia. A proposito da ocupação da Polônia pela Rússia dos tsares, Marx e Engels lembram a-história da Provence que conheceu na Idade Média uma civilização brilhante e requintada e foi esmagada pelos franceses do norte, relativamente atrasados,-e por seus reis déspotas (Luiz XI).
A nação da França meridional, chamada comumente nação provençal, não somente atingira na Idade Média um “desenvolvimento precioso”, mas achava-se mesmo à frente do desenvolvimento europeu. E, sobretudo, de todas as nações recém-aparecidas era a que possuía uma língua cultivada. Sua arte poética servia de modelo, então inacessível, a todos os povos romanos, como, por exemplo, os alemães e os ingleses. Pelo requinte dos costumes cavalheirescos, ela rivalizava com os castelhanos, os franceses do norte e os normandos ingleses; quanto à indústria e ao comercio, ela em nada ficava a dever aos italianos. Não foi somente “uma fase da vida da Idade Média” que ela desenvolveu “até sua forma mais brilhante”, lançou mesmo um reflexo da antiguidade grega no coração da mais profunda Idade Media.
(MARX e ENGELS, Obras Póstumas de Karl Marx e Ferdinand Lassalle, editadas por Mehring, t. III, pág. 172, ed. al.).
Em 1873, Engels pode dedicar-se, como desejava desde muito tempo, ao estudo da dialética nas ciências naturais. Seus numerosos trabalhos até então o impediram: e ele não pode, no meio de suas ocupações, dar os últimos retoques à sua obra. Seus manuscritos foram publicados pelo Instituto Marx e Engels em 1927. A passagem sobre a Renascença figura no prefácio da Dialética da Natureza, escrito por Engels em 1880.
As palavras entre aspas são variantes, anotações ou rasuras de Engels.
O estudo moderno da natureza, — o único que atingiu um desenvolvimento cientifico, sistemático, completo, ao contrário das instituições geniais dos filósofos da natureza na antiguidade e das descobertas dos árabes, — de alta importância mas esporádicas e que ficaram a mais das vezes sem resultados — o estudo moderno da natureza, data, como toda a história moderna, dessa poderosa época que nós alemães chamamos, segundo a desgraça nacional(6), que nos atingiu então, a Reforma, os franceses a Renascença e os italianos o Cinquecento, e que nenhum desses nomes exprime perfeitamente. É a época que começa com a última metade do século XV. A realeza apoiando-se nos burgueses das cidades, quebrou o poderio da nobreza e fundou as grandes monarquias, baseadas principalmente sobre a nacionalidade, monarquias sob a proteção das quais, no seio das quais se desenvolveram as nações europeias modernas e a sociedade burguesa moderna; enquanto a burguesia e a nobreza se combatiam ardentemente, a guerra dos camponeses alemães anunciava profeticamente as futuras lutas de classes, fazendo aparecer em cena não somente os camponeses revoltados — e isso não constituía mais novidade — mas, atrás deles, os embriões do proletariado atual, com a bandeira vermelha na mão e nos lábios os gritos de comunidade dos bens. Nos manuscritos salvos depois da queda de Bizâncio, nas estátuas antigas desenterradas das ruínas de Roma, um mundo novo, a antiguidade grega, apareceu ao Ocidente espantado; diante dessas figuras luminosas [clássicas (?) plásticas] desapareceram os fantasmas da Idade Média, a Itália conheceu incrível florescimento de arte que surgiu como um reflexo da antiguidade clássica e que nunca mais atingiria idêntico esplendor. Na Itália, na França, na Alemanha, uma nova literatura criou-se, a primeira literatura moderna; pouco depois, a Inglaterra e a Espanha conheceram sua época literária clássicas. Os limites do velho orbis terrarum foram derrubados, a terra foi, verdadeiramente, descoberta pela primeira vez e lançadas as bases para o comércio mundial ulterior e para a passagem do artesanato à manufatura que, por sua vez, serviu de ponto de partida à grande indústria moderna. A ditadura espiritual da Igreja foi quebrada; os povos germânicos, em sua maioria, a repudiaram de maneira direta e se ligaram ao protestantismo, enquanto que nos povos romanos cada vez mais se enraizava um espírito otimista de livre exame emprestado dos árabes e alimentado pela filosofia grega recém-descoberta, que preparava assim o materialismo do século XVIII.
Foi essa a maior subversão progressiva que a humanidade conheceu até essa época, um período que necessitava de gigantes e que criou gigantes, gigantes do pensamento, da paixão e do caráter, gigantes pela sua universalidade e seu saber. Os homens que fundaram a moderna dominação da burguesia eram tudo, menos burgueses limitados. Pelo contrário, estavam mais ou menos impregnados do caráter aventureiro da época. Não havia então quase homens de valor que não fizessem grandes viagens, que não falassem quatro ou cinco línguas, que não fossem hábeis em várias coisas [e não somente no terreno teórico, mas também na vida prática. Quase todos os sábios dessa época viviam em...]. Leonardo da Vinci foi não somente um grande pintor, mas também um grande matemático, um mecânico e um engenheiro a que os diferentes ramos da física devem descobertas importantes; Alberto Durer foi pintor, gravador em couro, escultor, arquiteto, e além disso, encontrou um sistema de fortificações que contém já certas ideias muito mais tarde retomadas por Montalembert e pela fortificação alemã moderna. Macchiavelli foi homem de Estado, historiador, poeta e ao mesmo tempo o primeiro escritor militar, digno desse nome, dos tempos modernos, Lutero não somente limpou as cavalariças de Augias da Igreja, mas também as da língua alemã, criou a prosa moderna e compôs o texto e a música do hino vitorioso que se tornou a Marselhesa do século XVI. Os mestres dessa época não estavam ainda sujeitos à divisão trabalho, cujas influências limitativas, unilaterais, se fazem sentir frequentemente entre os seus sucessores. Mas o que ao caracteriza por excelência é que quase todos eles mergulham no movimento de sua época, misturam-se constantemente à luta prática, tomam partido e conduzem o combate, uns pela palavra e a escrita, outros pela espada, e outros pelas duas formas. Daí essa plenitude e essa força de caráter que fazem deles homens completos. Os sábios de gabinete constituem a exceção, são ou pessoas de segunda ou terceira ordem ou filisteus prudentes que não querem queimar os dedos (como Erasmo).
(ENGELS, Antigo prefácio à Dialética da Natureza. 1880, Marx Engels Arquivo, t. II, pgs. 239-240, ed. al.)
Karl Heinzen (1809-1880), publicista democrata, atacara na Deutsche Brusseler Zeitung, os comunistas. Engels e depois Marx responderam-lhe no mesmo jornal e denunciaram o caráter anti-histórico e-antieconômico de suas concepções políticas e sociais. Para Heinzen, a monarquia era devida apenas a uma aberração secular do espirito humano e-toda a questão social se resumia neste dilema: monarquia ou república.
Marx publicou, em outubro e-novembro de 1847, na Deutsche Brusseler Zeitung, uma série de artigos sob o titulo geral: A Critica Moralizante e a Moral Critica. Contribuição à Historia da Cultura Alemã. Contra Karl Heinzen. Em seu primeiro artigo de 28 de outubro de 1847, Marx vê nos escritos de Heinzen uma ressurreição da literatura dos rústicos do século XVI.
Um pouco antes e durante a época da Reforma, formou-se entre os alemães um gênero de literatura cujo próprio titulo é surpreendente — a literatura dos desastrados. Caminhamos hoje para uma época de subversão análoga a do século XVI. Nada há, pois, a espantar que, entre os alemães, a literatura dos desastrados ressurja novamente. O interesse pelo desenvolvimento histórico supera amplamente a repugnância estética que essa espécie de exercícios literários provoca e já provocava nos séculos XV e XVI, mesmo nas pessoas de gosto pouco desenvolvido.
Vulgar, jactanciosa, cheia de bazófias e de fanfarronadas(7), pretensiosamente grosseira no ataque, histericamente sensível à grosseria dos outros; brandindo a espada e gesticulando com um desperdício inaudito de forças, para deixá-la cair depois por terra; pregando constantemente a moral e violando-a constantemente; misturando da maneira mais cômica o patético e o vulgar; preocupada unicamente da coisa em si e esquecendo-a continuamente, opondo com a mesma presunção a semi-educação livresca, pequeno-burguesa, à sabedoria popular e aquilo que se chama o “bom senso comum” à ciência, infinitamente transbordante de não se sabe que leviandade satisfeita; dando uma forma plebeia a um conteúdo pequeno-burguês; lutando contra a linguagem literária, afim de lhe dar, por assim dizer, um caráter puramente corporal; deixando de bom grado aparecer em segundo plano a pessoa física do escritor que arde por executar algum golpe de força, por mostrar seus ombros largos, por estirar publicamente seus membros; louvando o espirito são no corpo são; inconscientemente envenenado pelas briguinhas as mais sutis e pela febre física do século XVI; acorrentada a noções dogmáticas estreitas, apelando contra a ideia, para uma prática mesquinha; esbravejando contra a reação e reagindo contra o progresso; cobrindo o adversário de toda a espécie de injúrias, por sua incapacidade de apresentá-lo sob o aspecto ridículo; Salomão e Marcolph, Dom Quixote e Sancho Pança, o idealista e o logista na mesma pessoa; uma forma grosseira de indignação, uma forma de grosseria indignada; e, pairando sobre tudo isso, a-consciência honesta do homem de bem contente de-si próprio — tal era a literatura dos desastrados do século XVI. Se nossa memória não nos trai, o espirito popular lhe erigiu um monumento lírico na canção de Heinecke, o valente rapaz. O senhor Heinzen tem o mérito de ser um dos restauradores da literatura dos desastrados e de parecer, sob este aspecto, uma das andorinhas alemães da primavera dos povos que se aproxima.
(MARX, A Critica Moralizante e a Moral Critica, t. VI, pgs. 298-299, ed. al.).
As robisonadas não exprimem de nenhum modo, como pensam os historiadores da cultura, uma simples reação contra excessos de requinte e uma volta à vida primitiva mal compreendida. Muito menos repousa sobre semelhante naturalismo o Contrato Social, de Rousseau, que põe em relações e em comunicação, convencionalmente, assuntos independentes por natureza. É essa a aparência, e a aparência apenas estética, das pequenas e grandes robisonadas. Elas são antes uma antecipação da “sociedade burguesa”, que se preparava desde o século XVI e que, no século XVII, caminhava a passos de gigante para sua maturidade. Nessa sociedade de livre concorrência, o indivíduo aparece como desembaraçado dos vínculos da natureza etc., que, nas épocas anteriores da história, fazem dele uma parte integrante de um conglomerado humano determinado, delimitado. Para os profetas do século XVIII, que trazem sobre seus ombros Smith e Ricardo, esse indivíduo do século XVIII — o produto, por um lado, da dissolução das formas da sociedade feudal, e, por outro, das forças produtivas novamente desenvolvidas a partir do século XVI — apresenta-se como um ideal cuja existência pertence ao passado. Não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da história. Porque esse individuo parecia conforme à natureza e correspondia à concepção da natureza humana da época, ele não aparecia como se formando historicamente, mas como feito pela natureza. Esta ilusão foi, até agora, peculiar à cada nova época. Steuart que se coloca, em certos pontos, em oposição ao século XVIII, e como aristocrata ainda mais no terreno histórico, evitou essa sandice.
(MARX, Contribuição à Critica da Economia Política, pg. 216. Ring Verlag, 1934, Ed. Giard & Brière, pgs. 305-306).
O antigo isolamento local e nacional em que cada um se bastava a si mesmo, deu lugar às relações universais, a uma interdependência universal das nações. E o que é verdadeiro quanto à produção material aplica-se à produção intelectual, As obras de uma nação tornam-se a propriedade comum de todas as nações. A estreiteza do espirito e o exclusivismo nacionais são cada vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais se forma uma literatura universal.
(MARX e ENGELS, Manifesto do Partido Comunista, Obras, t. VI, pg. 259, ed. al., Bureau de Edições, 17).
Num artigo aparecido no semanário inglês The Northern Star, a 18 de dezembro de 1847,-e em alemão no Deutsche Bmsseler Zeitung, a 30 de dezembro de 1847, Engels critica o discurso nacionalista pronunciado pelo democrata pequeno-burguês Luis Blanc, no banquete de Dijon.
Se a França, no fim do último século, deu um glorioso exemplo ao mundo inteiro, não podemos silenciar sobre o fato de que a Inglaterra, cento e cinquenta anos mais cedo, deu esse exemplo, e isso numa época em que a França não estava sequer preparada para acompanhá-la. No que concerne às ideias, essas ideias precisamente que os filósofos franceses do século XVIII – Voltaire, Rousseau, Diderot, D’Alembert e outros — tanto popularizaram onde foram concebidas, senão na Inglaterra? Não deixemos jamais empalidecer a memória de Milton, o primeiro defensor do regicídio, de Algernon Sydney, de Bolingbroke e de Shaftesbury, ante o esplendor de seus sucessores franceses.
(ENGELS, Reform Movement in France. Banquet of Dijon. Obras, t. VI, pgs. 367 e 375, ed. al.)
Sabemos agora que esse reino da razão não foi outra coisa mais do que o reino idealizado da burguesia; que a justiça eterna encontrou sua realização na justiça burguesa, que a igualdade atingiu o seu fim na igualdade civil perante a lei; que o que foi proclamado como um dos direitos essenciais foi a propriedade burguesa; e que o Estado segundo a razão, o “contrato social”, de Rousseau, nasceu e só poderia nascer sob a forma uma Republica democrático-burguesa. Assim como todos os seus antecessores, os grandes pensadores do século XVIII não podiam transpor o que lhes fixara sua época.
(ENGELS, Anti-Dühring, p. 2, Ring Verlag, 1934, ed. Al.; Ed. Costes, I. I. pgs. 2-3).
Entretanto, ao lado e depois da filosofia francesa do século XVIII, a filosofia alemã moderna nascera e encontrara sua conclusão em Hegel. Seu maior mérito foi a volta à dialética, como a forma superior do pensamento. Os filósofos gregos da antiguidade eram todos, de nascimento, por natureza, dialéticos, e o espirito mais universal entre eles, Aristóteles, já estudara as formas mais essenciais do pensamento dialético. A filosofia moderna, pelo contrário, se bem que a dialética tenha tido nela também brilhantes representantes (por exemplo, Descartes e Spinosa), se viu cada vez mais integrada, principalmente pela influência inglesa, no modo de pensar chamado metafísico, que domina também quase exclusivamente os franceses do século XVIII, pelo menos em seus. trabalhos especialmente filosóficos. Fora da Filosofia propriamente dita, eles eram igualmente muito capazes de dar obras primas de dialética; lembraremos apenas o Sobrinho de Rameau, de Diderot, e o Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre Homens, de Rousseau).
(ENGELS, Anti-Dühring, p. 2, Ring Verlag, Zürich, 1934, ed. Al.; Ed. Costes, paginas 6-7).
Dos escritores franceses, Diderot e Balzac foram os preferidos por Marx e Engels. Marx, traçando em largas pinceladas na Santa Família a história do materialismo francês: lembra sua influência sobre Fourier e sobre Owen e diz que “o comunismo desenvolvido data diretamente do materialismo francês". Ao lado da filosofia alemã e da economia politica inglesa, é o socialismo utópico francês, e-através dele o materialismo francês do século XVIII, a terceira fonte do marxismo. “Em sua forma teórica, ele socialismo moderno aparece desde seu início como uma continuação mais avançada e que quer ser o mais-consequente dos princípios estabelecidos pelos grandes enciclopedistas franceses do século XVIII." (ENGELS, Anti-Dühring, p. I, ed. al.) Diderot, o materialista e o realista, pode, com justiça, ser considerado como um precursor.
Achei hoje por acaso em casa, dois Sobrinho de Rameau e te mando um dos exemplares. A maior das obras-primas vai novamente te deliciar.
... Mais divertido que o comentário de Hegel é o do senhor Jules Janin do qual encontrarás um excerto no apêndice do volume. Esse cardinal de la m r deplora no Rameau, de Diderot, a ausência de pontos morais, e teria resolvido o caso descobrindo que todo o absurdo de Rameau provém de sua inveja de não ser “um gentil homem nato”. ...De Diderot a Jules Janin eis aquilo que os fisiólogos chamam a metamorfoses regressiva.
O espirito francês antes da Revolução Francesa e sob Luis Felipe!
(MARX, Carta a Engels, em 15 de abril de abril de 1869; Correspondência, t. IV, pgs. 183-184, ed. al.).
Engels publicou no órgão social democrata alemão Volksstaat, n.º 7, 1874, um artigo intitulado "Programa dos refugiados blanquistas da Comuna", onde denuncia-as concepções políticas, os métodos conspirativos, a fraseologia exagerada e o ateísmo verbal dos blanquistas. Criticando-lhes o programa, Engels acentua a importância deste, porque "é o primeiro manifesto em que os operários franceses aderem ao programa atual do comunismo alemão".
Os operários alemães sociais-democratas romperam com Deus, vivem no mundo real, são materialistas. Assim deveria acontecer com os operários franceses. Se não fosse assim, que se deveria fazer?
Nada mais simples que organizar a difusão em massa, entre os operários, da magnífica literatura materialista francesa do último século, na qual o gênio francês, tanto pela forma como pelo conteúdo, atingiu seu ponto culminante no passado. Esta literatura — se tomarmos em consideração o nível da ciência nessa, época — encontra-se hoje, ainda, em um nível infinitamente elevado do ponto de vista do conteúdo e, no ponto de vista da forma, não foi ultrapassado até hoje.
(ENGELS, Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna, Vokstaat, n.° 7, 1874).
Engels, num artigo do Telegraph für Deutschland (fevereiro de 1840), intitulado "Sinais retrógrados do tempo", mostra como, na Europa do século XIX e, principalmente. em França, as ideias reacionárias voltaram a imperar e como as sombras do passado se recusam a morrer.
Apareceu Victor Hugo, apareceu Alexandre Dumas e com eles um rebanho de imitadores; a monstruosidade das Ifigênia e das Atalla, cedeu o lugar à monstruosidade de uma Lucrécia Bórgia; ao entorpecimento sucedeu uma febre alta; ficou provado que os clássicos franceses plagiaram os antigos — e eis que aparece Mlle. Raquel e tudo fica esquecido, Hugo e Dumas, Lucrécia Bórgia e os plágios; Fedra e o Cid caminham a passos lentos no palco, declamando alexandrinos burilados. Aquiles pavoneia-se com suas alusões a Luís-o-Grande, e Rui Bias e Mademoiselle de Belle-Isle(8) mal se animam a sair dos bastidores para se refugiar logo nas fábricas alemãs de tradução e nos palcos nacionais alemães. Deve ser um sentimento feliz para um legitimista escutar as peças de Racine e poder esquecer a Revolução, Napoleão e a grande semana; a glória do antigo regime surge do solo, o mundo se cobre de tapetes de alto preço, Luís-o-Absoluto passeia em vestes de brocado e com peruca de rabicho, através das aleias de árvores podadas de Versalhes, o leque todo poderoso de sua amante rege a corte feliz e a França desgraçada.
(ENGELS, Sinais Retrógrados dos Tempos, Obras, t. II, pg. 64, ed. al.)
Se um alemão lançar um olhar atrás em sua história encontrará uma das causas principais da lentidão de seu desenvolvimento politico, assim como da situação miserável da literatura antes de Lessing, nos “escritores competentes”. Os eruditos profissionais, patenteados, privilegiados, os doutores e outros pontífices(9) os escritores de universidade sem caráter dos séculos XVII e XVIII, com suas perucas rígidas, sua pedanteria marcante, e suas dissertações microscópicas, se interpuseram entre o povo e o espirito, entre a vida e a ciência, entre a liberdade e o homem. Foram os escritores incompetentes que criaram nossa literatura. Entre Gottsched e Lessing escolhei vós mesmos o autor “competente” e o autor “incompetente”.
(MARX, Os Debates da 6.ª Dieta Renana. Obras, t. I, pgs. 225-226, ed. al.)
A literatura socialista e comunista de França que, nascida sob a pressão de uma burguesia-dominante, é a expressão literária da revolta contra essa dominação, foi introduzida na Alemanha no momento em que a burguesia começava sua luta contra o absolutismo feudal.
Filósofos, semi-filósofos e intelectuais alemães jogaram-se avidamente sobre essa literatura, mas esqueceram que, com a importação da literatura francesa na Alemanha não houvera a importação simultânea das condições sociais da França. Em relação às condições sociais alemães, essa literatura francesa perdeu toda a significação prática imediata e tomou um caráter puramente literário.
Ela só devia aparecer como uma especulação ociosa sobre a verdadeira sociedade, sobre a realização da natureza humana. Assim, para os filósofos alemães do século XVII, as reivindicações da primeira Revolução francesa eram apenas as reivindicações da “razão prática” em geral, e as manifestações da vontade da burguesia revolucionária francesa não exprimiam, seus olhos mais do que as leis da vontade pura, da vontade tal como deve ser, da vontade verdadeiramente humana.
O único trabalho dos homens de letras alemães, foi harmonizar as novas ideias francesas com a sua velha consciência filosófica, ou melhor, apropriar-se das ideias francesas adaptando-as à sua filosofia.
Apropriaram-se delas, como se faz com uma língua estrangeira, pela tradução.
Sabe-se como os monges recobriram com uma insípida hagiografia católica os manuscritos em que se encontravam as obras clássicas da antiguidade pagã. Os homens de letras alemães procederam de modo inverso a respeito da literatura francesa profana. Jogaram suas insanidades filosóficas sobre o original francês. Por exemplo, abaixo da critica francesa às funções do dinheiro, eles escreveram: “alienação da natureza humana” e abaixo da critica do Estado burguês, escreveram: “Supressão da supremacia da universalidade abstrata” etc.
Esta substituição dos desenvolvimentos franceses, por sua fraseologia filosófica foi por eles batizada: "Justificação da ação”. “Verdadeiro socialismo”, “Ciência alemã do socialismo”, “Justificação filosófica do socialismo” etc.
Desta maneira, emascularam completamente a literatura socialista e comunista francesa. E como, nas mãos dos alemães, ela deixou de ser a expressão da luta de uma classe contra outra, os alemães regozijaram-se por se terem colocado acima da estreiteza francesa, por terem defendido, em lugar das verdadeiras necessidades, a necessidade da verdade, em lugar dos interesses do proletariado os interesses do ser humano, do homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe, nem mesmo à realidade e que só existe no céu nebuloso da fantasia filosófica. Para os governos absolutos da Alemanha, com seu cortejo de padres, de pedagogos, de mendigos e de burocratas, esse socialismo serviu como desejado espantalho contra a burguesia ascendente e ameaçadora.
(MARX e ENGELS, Manifesto do Partido Comunista. Obras, t. VI, pgs. 549-551, ed. al.; Bureau de Edições, pgs. 36-37).
Engels, no The Northern Star, órgão cartista editado em Londres, publicou três cartas dedicadas à situação na Alemanha. A primeira, de 25 de outubro de. 1845, mostra o marxismo desse país na segunda metade do século XVIII, o entusiasmo artificial da classe média pelas ideias da Revolução Francesa e o caráter reacionário da "gloriosa guerra de libertação” de 1813-1814 e 1815.
Tal era a situação da Alemanha nos fins do último século, Não era mais do que uma só massa em putrefação e em nojenta decomposição. Ninguém se sentia à vontade. O comércio, o câmbio, a indústria e a agricultura do país estavam reduzidos a quase nada; os camponeses, os comerciantes e os industriais suportavam o jugo duplo de um governo sanguinário e da má situação do comércio; a nobreza e os príncipes achavam que suas rendas, apesar do que extorquiam àqueles que lhes estavam sujeitos, não atingiam ao nível de suas despesas crescentes; tudo ia mal e um descontentamento geral reinava no país, Não havia nem instrução nem meios de agir sobre o espirito das massas, nem liberdade de imprensa, nem espirito público, não havia sequer relações comerciais importantes com os outros países - nada mais do que ignomínia e egoísmo — um baixo espirito de mercador, servil, miserável, penetrara em todo o povo. Tudo estava podre, vacilante, prestes a cair, e não havia a menor esperança de uma modificação favorável nem mesmo a nação tinha bastante força para varrer os cadáveres envenenados das instituições mortas.
A única esperança num futuro melhor aparecia na literatura do país. No ponto de vista político e social, essa vergonhosa época, foi, ao mesmo tempo, a grande época da literatura alemã. Por volta de 1750, nasceram todos os grandes espíritos da Alemanha, os poetas Goethe e Schiller, os filósofos Kant e Fichte, e quase vinte anos mais tarde, o último grande metafísico alemão, Hegel. Cada obra notável desse tempo é penetrada de um espirito de desafio e de revolta contra toda a sociedade alemã tal como ela então existia. Goethe escrevia Goetz von Berlichingen, homenagem dramática à memória de um revoltado. Schiller, nos Saltadores, celebrava um jovem generoso que declara guerra aberta a toda à sociedade. Mas eram suas obras de juventude. com a idade perderam eles toda esperança; Goethe limitou-se às sátiras extremamente agudas e Schiller teria soçobrado no desespero se não houvesse encontrado um refúgio na ciência e particularmente na grande história da Grécia antiga e de Roma. Esses dois homens podem ser tomados como exemplo para o resto. Mesmo os mais fortes e os melhores espíritos da nação haviam perdido toda esperança no futuro de seu país.
(ENGELS, The state of Germany. Obras, t. IV, 482-483, ed. al.)
Karl Grün, um dos principais representantes do "verdadeiro" socialismo, publicara, em 1846, um livro Sobre Goethe do ponto de vista humano, no qual, como pequeno burguês limitado, admira o lado mais fraco e mais mesquinho do poeta e descobre o "conteúdo humano de Goethe". Engels dedica ao livro de Grün, seis folhetins no Deutsche Brusseler Zeitung (21 de novembro de 1847 e 9 de dezembro de 1847). "Competia ao sr. Grün, diz Engels, fazer de Goethe um discípulo de Feuerbach e um "verdadeiro" socialista”. Engels caracteriza Goethe em seu terceiro folhetim datado de 28 de novembro de 1847.
Em suas obras, Goethe se comporta de duas maneiras em relação à sociedade alemã de seu tempo. Algumas vezes lhe é hostil; tenta fugir daquilo que teme, como na Ifigênia e de maneira geral durante sua viagem à Itália; revolta-se contra a sociedade disfarçado em Goetz, Prometeu e Fausto; em Mefistófeles joga sobre ela seu escarnio mais amargo. Outras vezes, ao contrário, trata-a de maneira amigável, “une-se” a ela como na maioria de suas doces Xenies e em numerosos escritos em prosa; festeja-a como nas Mascaradas, e mais ainda, defende-a contra o movimento histórico que a assedia, como se constata em todas as obras onde chega a falar da Revolução Francesa. Não são somente alguns aspectos da vida alemã que Goethe aprecia em choque com outros aspectos que lhe repugnam. O mais das vezes são estados de espirito diferentes pelos quais ele passa; há nele uma luta continua entre o poeta genial que tem nojo da miséria de seu meio e o filho circunspecto do sr. conselheiro de Francfort ou o conselheiro privado de Weir que se vê obrigado a concluir um armistício com ela (miséria) e a ela habituar-se. Por isso, Goethe é ora colossal, ora pueril; ora um gênio altaneiro, irônico, que despreza o mundo, ora um filisteu precavido, satisfeito, estreito. Goethe foi incapaz, por si mesmo, de vencer a miséria alemã; foi ela, pelo contrário, que o venceu, e esta vitória da miséria sobre o maior dos alemães é a melhor prova de que ninguém poderia de nenhuma maneira liquidá-la “interiormente”. Goethe era muito universal, de natureza muito ativa, muito carnal para procurar, como Schiller, a salvação contra a miséria na fuga para o ideal de Kant; era muito clarividente para não ver que essa fuga se resumira finalmente em trocar a miséria da vulgaridade pela miséria da ênfase. Seu temperamento, suas forças, toda a direção de seu espírito destinavam-no à vida prática e a vida prática que ele achava diante de si era miserável. Nesse dilema: existir num mundo que só podia desprezar e estar contudo acorrentado a esse mundo como o único em que podia manifestar sua atividade, foi nesse dilema que Goethe se achou constantemente, e quanto mais envelhecia, mais o poeta formidável da guerre lasse desaparecia atrás do insignificante ministro de Weimer. Não acusamos Goethe, como o fizeram Boerne e Menzel, de não ter sido um liberal, mas sim de ter sido algumas vezes um filisteu, não de ter sido incapaz de entusiasmo pela liberdade alemã, mas de ter sacrificado o senso estético mais justo, que manifestava algumas vezes, ao temor de pequeno burguês diante de todo o movimento histórico importante da época; não de ter sido um cortesão, mas de, numa época em que Napoleão limpava as grandes estrebarias de Augias alemãs, ter-se ocupado com uma seriedade solene, de negócios minúsculos e de pequeninos prazeres de uma das menores cortes alemãs. Não o censuramos, de modo geral, de um ponto de vista moral ou do ponto de vista de partido, mas, quando muito, de um ponto de vista estético e histórico; não medimos Goethe nem por uma escala moral, nem por uma escala politica, nem por uma escala “humana”. Não podemos analisar, mais demoradamente, as relações de Goethe com toda a sua época, com seus precursores literários e seus contemporâneos, nem sua evolução, nem sua atitude na vida. Limitamo-nos simplesmente a constatar o fato.
(ENGELS, Karf Grün: Sobre Goethe do Ponto de Vista Humano. Obras, t. VI, pgs. 56-58, ed. al.)
O “homem tem razão”(10) Ele nasceu para as aventuras galantes com belas mulheres, nunca especulou sobre a sedução nem sobre o adultério, não é um “libertino”, mas um homem de consciência, um pequeno-burguês alemão cheio de honradez e de virtude. Ele é
le marchand pacifique
Fumant sa pipe au fond de sa boutique!
Il craintt sa femme et son ton arrogant;
De Ia maison il lui laisse l’empire,
au moundre signe obéit sans mot dire,
et vit ainsi, cocu, batu, content.
(PARNY, Goddam, canto terceiro)(11)
Precisamos ainda fazer uma observação. Se, nas linhas precedentes, consideramos Goethe apenas por uma face, a falta é do sr. Grün. Ele nos apresenta Goethe apenas pelo seu lado colossal. Em todas as coisas nas quais Goethe foi realmente grande e genial, Grün passa rapidamente, — como sobre as elegias do “libertino” Goethe — ou então joga sobre elas uma grande torrente de banalidades provando somente que sobre esse assunto nada sabe dizer. Por outro lado, procura, com um zelo que não lhe é habitual, tudo o que há de filisteu, de pequeno-burguês, de mesquinho, reúne tudo e exagera segundo as regras literárias, regozijando-se cada vez que pode apoiar sua própria estupidez na autoridade de Goethe que, por cúmulo, frequentemente deforma.
A apologia do sr. Grün, o caloroso agradecimento que ele murmura, para cada expressão do espirito filisteu, dirigindo-se a Goethe, eis a vingança mais amarga que a história ultrajada pode tomar do maior poeta alemão.
(ENGELS, Karl Grün: Sobre Goethe do Ponto de Vista Humano. Obras, t. VI, pgs. 69-.71, ed. al.)
A proposito de Grün, vou resumir o artigo de Grün sobre Goethe, reduzi-lo a meia folha ou a três quartos de folha e pô-lo em condições para nossa publicação, se isto te convém; responde-me depressa sobre o assunto. O livro é muito característico. Grün celebra todas as ideias de filisteu de Goethe como ideias humanas, faz de Goethe, francfortês e funcionário, o “homem verdadeiro”, enquanto que esquece ou denigre mesmo tudo o que há nele de colossal e de genial. A tal ponto, que esse livro prova de maneira brilhante que o homem — o pequeno burguês alemão.
(ENGELS, Carta a Marx, em 15 de janeiro de 1847, Obras. Correspondência, t. I, pg. 65, ed. al., Correspondência, t. I, pgs. 99-10, Ed. Costes).
Em seu Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, aparecido em 1888, Engels expõe as relações entre o marxismo e a filosofia hegeliana.
O primeiro capítulo é consagrado à evolução do pensamento alemão de Hegel e-Feuerbach. Engels indica, em particular, a contradição profunda entre o sistema idealista de Hegel, de tendência conservadora e seu método dialético revolucionário.
As necessidades internas do sistema bastam, por consequência, para explicar como se pode chegar a uma conclusão política multo moderada por meio de um método de pensamento profundamente revolucionário. A forma especifica desta conclusão provém, aliás, do fato de que Hegel era alemão e trazia atrás da cabeça, como o seu contemporâneo Goethe, uma mecha de cabelos de filisteu. Goethe e Hegel eram, cada um em seu gênero, Zeus olímpicos, mas nem um nem outro se libertaram completamente do filisteismo alemão.
(ENGELS, Ludwig Feuerbach, p. 20. Verlag für Literatur und Politik, ed. al., MARX e ENGELS, Estudos Filosóficos, pgs. 15-16, E.S.I.)
Durante sua estada em Paris, Marx escreveu, em 1844, numerosos estudos sobre assuntos filosóficos e-econômicos, que ficaram em manuscritos fragmentários.
Pela primeira vez, Marx aborda os problemas econômicos e o faz do ponto de vista materialista.
Em seu estudo, O Dinheiro, ele demonstra, sob o regime da propriedade privada, o poderio do dinheiro e suas consequências sociais: a exploração e a degradação dos homens.
Shakespeare descreve muito bem a natureza do dinheiro. Para compreendê-lo comecemos pela explicação da passagem de Goehte(12).
O que eu posso conseguir com o dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, aquilo que o dinheiro pode comprar, eu o sou — eu sou o possuidor do próprio dinheiro. Minha força é tão grande quanto for a força do dinheiro; as forças do dinheiro são as minhas virtudes e meu poderio, — as virtudes e o poder de seu possuidor. O que eu sou e o que eu posso não é, portanto, em absoluto, determinado pelo meu indivíduo. Sou feio, mas posso comprar a mulher mais bela. Logo não sou feio porque o efeito da feiura, sua força repulsiva, é aniquilada pelo dinheiro. Eu sou — meu individuo o é — coxo, mas o dinheiro me dá 24 pés; não sou, portanto coxo. Sou um homem mau, desonesto, sem consciência, sem espirito, mas o dinheiro é respeitado, seu possuidor o é igualmente. O dinheiro é o maior bem, logo seu possuidor é bom; o dinheiro afasta de mim, aliás, o trabalho de ser desonesto; sou portanto presumidamente um ser honesto; sou desprovido de espirito mas o dinheiro é o verdadeiro espirito de todas as coisas, e, portanto, como seu possuidor seria desprovido de espirito? E depois, ele pode comprar pessoas inteligentes e aquele que possui pessoas inteligentes não é mais inteligente que o mais inteligente? Eu, que graças ao dinheiro tudo posso daquilo que aspira o coração humano, não tenho em meu poder todas as riquezas humanas? Meu dinheiro não transforma todas as minhas insuficiências no contrário?
Se o dinheiro é o laço que me prende à vida humana, à sociedade, à natureza e ao homem, o dinheiro não será o laço de todos os laços? Não pode ele desfazer ou fazer todos os laços? Não é ele, por consequência, ao mesmo tempo, a fonte geral de toda a distribuição? Ele é a verdadeira moeda divisionária assim como o verdadeiro meio de ligação, a força galvanoquímica da sociedade.
Shakespeare põe em relevo sobretudo duas particularidades do dinheiro:
A primeira forma do amor sexual que aparece historicamente como paixão, paixão própria a todo ser humano (pelo menos nas classes dirigentes), como forma superior do instinto sexual — o que constitui preciosamente seu caráter especifico — esta primeira forma, o amor cavalheiresco da Idade Média, não foi em absoluto o amor conjugal. Pelo contrário, Em sua fisionomia clássica, entre os Provençais, ela desliza de velas soltas para o adultério e é este o exaltado pelos seus poetas. A flor dos poemas de amor provençais, são as Albas(13) em alemão as Tagelieder(14). Esses poemas descrevem, em cores ardentes, como o cavalheiro deitou no leito junto à sua amada — a mulher de outro - enquanto que fora está aquele que vigia e que o chama desde que surgem os primeiros clarões da aurora (alba), afim de que ele possa fugir sem ser visto; a cena da separação constitui então o ponto culminante do poema. Os franceses do norte, assim como nossos bons alemães, adotaram esse gênero poético como a maneira de amor cavalheiresco que lhe correspondia, e nosso velho Wolfram von Eschenbach, deixou sobre este tema atraente, três magníficos Tagelieder que eu prefiro a seus três longos poemas heroicos. Em nossos dias, há duas espécies de casamento burguês. Nos países católicos são, como antigamente, os pais que procuram para o rapaz da burguesia a mulher que lhe convém, e a consequência natural disso é que se desenvolve plenamente a contradição que a monogamia contém: exuberância do hetairismo do lado do homem, exuberância de adultério do lado da mulher. A Igreja católica só aboliu o divórcio porque ela está convencida que, contra o adultério como contra a morte, não há erva curativa. Nos países protestantes, pelo contrário, é de regra que se dê ao filho de burguês mais ou menos liberdade de escolher uma mulher de sua classe: daí resulta poder existir uma certa dose de amor no casamento e, por conveniência, supõe-se que amor sempre existe, que corresponde à hipocrisia protestante. Aqui o hetairismo do homem é menos elevado e o adultério da mulher é menos comum. Mas, como em toda espécie de casamento os seres humanos continuam a ser aquilo que eram antes de casar, e como os burgueses dos países protestantes são, em sua maior parte, filisteus, esta monogamia protestante só consegue, na média dos casos mais favoráveis, tornar comum ao casal um tédio de chumbo que é designado pelo nome de felicidade doméstica. O melhor espelho desses dois métodos de casamento é o romance, o romance francês quanto à norma católica, o romance alemão quanto à norma protestante. Em cada um desses casos, o homem “ganha seu quinhão” é no romance alemão, para o rapaz, a moça; no romance francês para o marido, os cornos. Qual dos dois é o que sofre mais? A questão continua aberta. É também por isso que o tédio do romance alemão inspira aos burgueses franceses o mesmo horror que a “imoralidade” do romance francês inspira ao filisteu alemão. Nestes últimos tempos(15) contudo, depois que “Berlim tornou-se uma capital mundial”, o romance alemão começa a fazer incursões um pouco menos tímidas, no hetairismo e no adultério, bem conhecidos na Alemanha desde há muito tempo.
(ENGELS, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, pgs. 55- 57, Ring Verlag, Zürich. ed. al., Edit. Costes, 7, 2-74).
A história não faz nada pela metade, e atravessa muitas fases quando quer conduzir uma velha forma social ao túmulo. A última fase de uma forma histórica é sua comédia. Os deuses da Grécia, que foram pela primeira vez tragicamente feridos de morte no Prometeu acorrentado, de Esquilo, tiveram que sofrer uma segunda morte cômica nos Diálogos, de Luciano. Porque essa marcha da historia? Para que a humanidade se separe alegremente de seu passado.
(MARX, Contribuição à Critica da Filosofia do Direito de Hegel. Obras, t. I, pg. 611, ed. al., MARX, Obras Filosóficas, t. I pgs. 90-91).
No dia seguinte ao golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte, Marx começou um artigo destinado à revista de seu amigo Weydemeyer no qual analisava os acontecimentos que acabavam de se verificar. O 18 Brumário Brumário de Luís Bonaparte (1852), quadro da França na metade do século XIX desmascara impiedosamente as ilusões democráticas e pequeno burguesas.- As famosas páginas do inicio demonstram como, no decorrer da história, as forças sociais do futuro se separam do passado, servindo-se das tradições literárias e artísticas.
Hegel observa que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos se repetem, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda coma farsa. Caussidière repete Danton. Luis Blanc, Robespierre. A Montanha de 1848 a 1851 a Montanha de 1793 a 1795, o sobrinho repete o tio. E constatamos a mesma caricatura em circunstâncias em que aparece a segunda edição do 18 Brumário.
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, em condições escolhidas por eles, e, sim, em condições diretamente determinadas e recebidas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa de maneira muito forte sobre o cérebro dos vivos. E mesmo quando eles parecem ocupados em se transformar e em transformar as coisas, em criar o inédito, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que eles evocam covardemente os espíritos do passado, que tomam emprestado seus nomes, suas palavras de ordem seus costumes, para aparecer na nova cena da historia sob esse disfarce respeitável e com essa linguagem de empréstimo. É assim que Lutero tomou a máscara do apóstolo Paulo, que a Revolução de 1789 a 1814 se veste sucessivamente com os trajes da República romana depois com a do Império romano e que a Revolução de 1848 não pôde fazer coisa melhor que parodiar ora 1789 ora a tradição revolucionária de 1793 a 1795. É assim que quem começa a aprender uma nova língua a traduz sempre para sua língua materna, e só consegue assimilar o espírito dessa nova língua, servir-se livremente dela quando pode manejá-la sem se lembrar de sua língua materna e quando consegue mesmo esquecer esta última.
O exame dessas conjuras dos mortos da história revela imediatamente uma diferença nítida. Camille Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis assim como os partidos e a massa da velha Revolução Francesa realizaram nas roupagens romanas e servindo-se de uma fraseologia romana a tarefa de sua época, isto é, a libertação e a instauração da sociedade burguesa moderna. Uns quebraram em pedaços as instituições feudais e deceparam as cabeças feudais que haviam surgido dessas instituições. Outro, Napoleão, criou no interior da França as condições graças às quais se podia, dia em dia, desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade parcelada do solo e utilizar as forças produtivas industriais libertadas da nação, enquanto que, no exterior, varria por toda a parte as instituições feudais, na medida em que isso era necessário para criar a sociedade burguesa na França, o ambiente de que ela necessitava no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova forma de sociedade, desapareceram os colossos anti-diluvianos e, com eles, Roma ressuscitava, — os Brutus, os Gracos, os Publicola, os tribunos, os senadores, e o próprio César. A sociedade burguesa, em sua sóbria realidade, criara seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes na pessoa doa Say, dos Cousin, dos Royer-Collard, dos Benjamin Constant e dos Guizot; seus verdadeiros capitães assentavam-se atrás dos balcões, e a “cabeça de toicinho” de Luís XVIII era sua cabeça politica. Completamente absorvido pela produção da riqueza e pela luta especifica da concorrência, ela esquecera que os espectros da época romana haviam velado seu berço. Mas por menos heróica que seja a sociedade burguesa, nem por isso deixaram de ser necessários o heroísmo, a abnegação, o terror, a guerra civil e as guerras exteriores para que ela nascesse, e seus gladiadores encontraram nas tradições estritamente clássicas da Republica romana os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para dissimular aos próprios olhos o conteúdo estreitamente burguês de suas lutas e para manter entusiasmo ao nível da grande tragédia histórica. Foi assim que, em outra etapa de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado do Antigo Testamento a linguagem, as paixões e as ilusões necessárias à sua revolução burguesa. Quando o verdadeiro objetivo foi atingido, isto é, quando se realizou a transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke, afastou Habacuc.
A ressurreição dos mortos, nessas revoluções, serve, por conseguinte, para enaltecer as novas lutas, não para parodiar as antigas, serve para exagerar na imaginação a tarefa a realizar, e não para se subtrair à sua solução refugiando-se na realidade, para reencontrar o espírito da revolução e não para evocar novamente seus espectros.
(MARX, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, pgs. 21-23; Verlag für Litecratur und Politik, Viena, 1927, ed. al., E.S.I., pgs. 23-25).
Demonstraste que a aprovação do testamento romano origimaliter(16) (e na medida em que as concepções dos juristas são tomadas em consideração) repousa sobre uma concepção errada. Mas não se deduz absolutamente que o testamento em sua forma moderna — quaisquer que sejam os erros dos juristas modernos em sua interpretação do direito romano para bem realizar suas construções — seja o testamento romano mal compreendido. Sem isso, poder-se-ia dizer que toda aquisição de um período anterior, apropriado a um período ulterior, é o antigo mal compreendido. É certo, por exemplo, que as três unidades, tais como as concebem os autores dramáticos sob Luís XIV, repousam sobre o drama grego mal compreendido (e sobre Aristóteles que as expôs). Por outro lado, é também certo que eles compreendiam os gregos justamente da maneira que correspondia às suas próprias necessidades artísticas, e eis porque se mantiveram muito tempo ainda no drama chamado “clássico” depois que Dacier e outros interpretaram Aristóteles, para eles, de maneira exata. É igualmente certo que todas as Constituições modernas repousam em grande parte sobre a Constituição inglesa mal compreendida e que retomam como essencial o que aparece como uma alteração da Constituição inglesa — o que, ainda agora, não existe de maneira formal senão por abusum(17)na Inglaterra, — por exemplo, o que se chama um Gabinete responsável. A forma mal compreendida é precisamente a mais difundida e, num certo grau de desenvolvimento da sociedade, aplicável a um uso geral.
(MARX, Carta a Lassalle, em 28 de julho de 1861, em Ferdinand Lassalle: Cartas e Escritos Póstumos, t. III, p. 375, Stuttgart, 1922, ed. al.)
Relativamente ao aspecto estético da educação, o senhor Dühring terá que fazer tudo de novo. A poesia, tal como existiu até agora, não serve de nada. Onde a religião é interdita “a imagética mitológica e religiosa” prestigiada entre os poetas antigos, não seria mais — naturalmente – tolerada na escola. Mesmo "o misticismo poético que Goethe, por exemplo, muito cultivou” deve ser desprezado. O senhor Dühring devia portanto se resolver a fornecer-nos, ele próprio, as obras primas poéticas que “correspondam às exigências superiores de sua imaginação reconciliada com a razão” e que representem o ideal verdadeiro, “a perfeição do mundo”. Que ele não nos faça esperar muito tempo. A comuna econômica não pode conquistar o mundo senão quando marchar ao passo de carga do alexandrino reconciliado com a razão.
(ENGELS, Anti-Dühring terceira parte, cap. V, pg. 316; Ring Verlag, Zürich, 1934, ed. Al.; Edit. Costes, t. III, pgs. 114-115).
Notas de rodapé:
(1) Para o estudo das obras da juventude de Marx e relativamente formação da doutrina marxista até 1845 (Teses sobre Feuerbach), assinalamos a excelente obra de Augusto Cornu: Karl Marx, o Homem e a Obra; Do Materialismo ao Materialismo Histórico. Livraria Alcan. Paris, 1934. (retornar ao texto)
(2) Nome que Engels dava por ironia a Max Stirner, autor de O Único e sua propriedade. (retornar ao texto)
(3) Tipografia do jornal The Times. (retornar ao texto)
(4) No IX século antes de J. C. (retornar ao texto)
(5) Edição brasileira do Editorial Calvino Limitada. (retornar ao texto)
(6) “Desgraça Nacional”, acentuada a lápis, provavelmente por mão. (retornar ao texto)
(7) Literalmente: à maneira de Traio (Traio é um personagem tagarela e fanfarrão de uma comédia de Terencio). (retornar ao texto)
(8) Este assunto também é rococó. (Nota de Engels). (retornar ao texto)
(9) Há no original aqui um trocadilho intraduzível. (retornar ao texto)
(10) Engels ridicularizava Grün que, a propósito do romance de Goethe, As Afinidades Eletivas, declara que Goethe nada tem de libertino. (retornar ao texto)
(11) O vendedor pacífico – fumando seu cachimbo no fundo da sua loja! – Ele tem medo da mulher e de seu tom arrogante – deixa-lhe o governo da casa – obedece sem dizer uma palavra ao menor gesto – e vive assim, corneado, espancado e contente. (retornar ao texto)
(12) Marx alude a duas passagens de Fausto e de Timor de Atenas, que ele citara antes. (retornar ao texto)
(13) Alvorada. (retornar ao texto)
(14) Críticos da manhã. (retornar ao texto)
(15) Em 1880. (retornar ao texto)
(16) Originariamente (retornar ao texto)
(17) Por abuso! (retornar ao texto)
Inclusão | 03/07/2019 |