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Por ocasião do centenário do nascimento de Herzen, Lenine escreveu para o jornal O Social Democrata, de 25 de abril (8 de maio) de 1912, um artigo: “À memória de Herzen", no qual lembra a atividade de Herzen e mostra o lugar que lhe compete no movimento revolucionário russo.
(Alexandre Herzen (1812-1870)t publicista e democrata revolucionária materialista, partidário de Feuerbach, emigrou em 1847, editando em Londres a Poliarnaia Zveda (Estrela Polar) (1855-1869) e o Kolokol (o Sino,) (1857-1867) nos quais estigmatizava o tsarismo e reclamava a emancipação política e econômica dos camponeses. Herzen via no mir — a comuna agrária russa — a promessa e o embrião da sociedade futura. A influência que exerceu na Rússia foi considerável e as ideias expressas. n'O Sino inspiraram toda uma geração de revolucionários.
Herzen criou uma imprensa russa livre no estrangeiro — o seu grande mérito. A Poliarnaia Zveda retomou a tradição dos decembristas. O Kolokol (1857-1867) lutou com todas suas forças pela emancipação dos camponeses. O silêncio servil foi rompido.
Mas Herzen pertencia ao meio agrário, nobre. Deixou a Rússia em 1847; não viu o povo revolucionário e não podia acreditar nele. Daí seu apelo liberal aos “de cima”. Daí suas inúmeras cartas adocicadas no Kolokol dirigidas a Alexandre II, o enforcador, cartas que hoje não se podem ler sem nojo. Tchernyechevski, Dobroliouv, Serno-Solovictch, que representavam a nova geração de revolucionários plebeus, tinham carradas de razão quando censuravam Herzen pelos seus recuos da democracia ao liberalismo. A verdade manda que se diga que, apesar de todas as hesitações de Herzen entre a democracia e o liberalismo, o democrata nele prevalecia.
Quando um dos tipos mais repugnantes da demagogia liberal, Kaveline, que antes se entusiasmara pelo Kolokol precisamente por causa de suas tendências liberais, levantou-se contra a Constituição, atacou a agitação revolucionária, protestou contra a “violência” e os apelos à violência e pôs-se a pregar a paciência, Herzen rompeu com esse sábio liberal. Atacou violentamente seu “panfleto medíocre, imbecil, pernicioso”, escrito para “servir de guia secreto para o governo em namoro com os liberais”, atacou “as sentenças político-sentimentais” de Kaveline representando “o povo russo como estúpido e o governo como inteligente”. O Kolokol publicou o artigo; “Uma palavra sobre um túmulo” no qual flagelava “os professores que tecem sobre tela podre suas ideias presunçosas e minúsculas, os ex-professores antes ingênuos, depois irritados, vendo que a juventude sadia não simpatizava com seus pensamentos anêmicos”. Kaveline reconheceu-se imediatamente nesse retrato.
Quando Tchernychevski foi preso, o imundo liberal Kaveline escreveu;
"As prisões não me indignam... O Partido revolucionário considera todos os meios bons para derrubar o governo e este se defende pelos meios de que dispõe.”
Herzen responde a esse cadete(1) quando se refere ao processo de Tchernychevski:
"Há homens lamentáveis, homens parecidos com a relva que se pisa, homens molúsculos que dizem: não se deve combater o bando de criminosos e celerados que nos governam.”
Quando o liberal Turguenev escreveu uma carta privada a Alexandre II, assegurando-lhe seus sentimentos de súdito leal e doou duas peças de ouro aos soldados feridos na repressão à insurreição polonesa, o Kolokol falou
“...da Madalena de cabelos brancos (do sexo masculino) que escreveu ao tsar dizendo que não conseguia mais dormir atormentada pelo temor de que o imperador ignorasse o arrependimento de que estava possuída.”
E Turguenev se reconheceu imediatamente.
Quando toda a horda dos liberais russos abandonou Herzen porque ele defendera a Polônia, quando toda a “sociedade culta” afastou-se do Kolol, Herzen não se perturbou. Continuou a defender a liberdade da Polônia e a verberar os pacificadores, os carrascos, os enforcadores de Alexandre II. Herzen salvou a honra da democracia russa.
“Nós salvamos a honra do nome russo, escreveu ele a Turguenev, eis porque sofremos as consequências do servilismo da maioria.”
Quando chegou a notícia de que um latifundiário fora morto um servo por ter atentado contra a honra de sua noiva,
Herzen declarou no Kolokol: “Ele fez muito bem!” Quando foi denunciado que os chefes militares haviam sido nomeados para “pacificar os campos”, Herzen escreveu:
“O primeiro coronel inteligente que se unir com seu destacamento aos camponeses, em lugar de enforcá-los, subirá ao trono dos Romanov.”
Quando o coronel Reitern se suicidou em Varsóvia (1860) para não se tornar auxiliar dos carrascos, Herzen escreveu;
“Se há de fuzilar-se alguém, devesse fuzilar os generais que dão ordens para atirar em pessoas desarmadas.”
Quando massacraram 50 camponeses em Bezda e executaram seu chefe Antonio Petrov (12 de abril de 1861), Herzen escreveu no Kolokol;
“Oh! se minhas palavras pudessem chegar até junto a ti, trabalhador e mártir da terra russa!... Como eu te ensinaria a odiar teus pastores espirituais que te foram impostos pelo sínodo de São Petersburgo e o tsar alemão... Tu odeias o latifundiário, tu odeias o burocrata, tu os temes — e tens toda razão; mas crês ainda no tsar e no arcebispo ... Não creias. O tsar está com eles e eles lhe pertencem. O tsar, tu vês agora, tu o pai do rapaz assassinado em Bezda, tu o filho do velho assassinado em Penza... Teus pastores são ignorantes como tu, pobres como tu... Assim foi o monge Antonio (não o bispo Antonio, mas Antonio de Bezda) que sofreu por ti em Kazan... O corpo dos teus santos não realizarão os 48 milagres, a oração que lhes ofereces não curará tua dor de dentes; mas sua memória, viva em ti, pode realizar um milagre, o da tua libertação.”
Vemos por essas citações quanto é covarde e vil a calunia de nossos liberais com respeito a Herzen: entrincheirados na imprensa “legal” servil, eles exaltam o lado fraco de Herzen e silenciam sobre seu lado forte. Não foi culpa de Herzen, foi desgraça sua o não ter podido ver o povo revolucionário da Rússia no decorrer dos anos quarenta. Quando ele o viu, nos anos sessenta, tomou corajosamente partido pela democracia revolucionária contra o liberalismo. Combateu pela vitória do povo sobre o tsarismo, e não por um compromisso da burguesia liberal com o tsar dos latifundiários. Desfraldou a bandeira da revolução.
Comemorando Herzen, vemos claramente três gerações, três classes que agiram na revolução russa. Primeiramente os nobres e os latifundiários, os dezembristas de Herzen. O círculo desses revolucionários é bem estreito. Estão terrivelmente longe do povo. Mas sua obra não se perdeu. Os dezembristas acordaram Herzen. Herzen desencadeou uma agitação revolucionária.
Essa agitação foi retomada, aumentada, reforçada, temperada pelos revolucionários plebeus, começando por Tchernychevski e terminando pelos heróis da Narodnaia Volia(2). Os círculos dos lutadores aumentou, suas relações com o povo tornaram-se mais estreitas. “Os jovens pilotos da futura tempestade” foi assim que os chamou Herzen. Mas não era ainda a própria tempestade.
A tempestade, é o movimento das próprias massas. O proletariado, a única classe revolucionária até o fim, levantou-se à frente das massas e, pela primeira vez, arrastou para a luta aberta, revolucionária, os milhões de camponeses. O primeiro assalto da tempestade verificou-se em 1905. O segundo começa a crescer a nossos olhos.
Comemorando Herzen, o proletariado aprende, pelo seu exemplo, toda a importância da teoria revolucionária, aprende a compreender que o devotamento sem limites à revolução e o fato de se voltar para o povo pregando-lhe a revolução, não se perdem, mesmo quando dezenas de anos separam as sementes da colheita; aprende a determinar o papel das diferentes classes na revolução russa e internacional. Enriquecido por essas lições, o proletariado preparará um caminho para a aliança livre com os operários socialistas de todos os países, esmagando esse réptil infame, a monarquia tsarista, contra a qual Herzen foi o primeiro a levantar o estandarte da luta fazendo ouvir às massas a livre palavra russa.
(LENINE, À Memória de Herzen “in” Social Democrata, de 25 de abril (8 de maio) de 1932. Obras, t. XV, pgs. 466- 469, ed. russa).
Nicolas Tchernychevski (1829-1889) “grande sábio e critico russo, que magistralmente evidenciou a falência da economia burguesa” (Marx), é um dos mestres do pensamento revolucionário do século XIX. Lenine, que o cita frequentemente, fala dele com a mais viva admiração. Em suas Recordações de Lenine, Kroupskaia conta que, em seu gabinete do Kremlin, ao lado das obras de Marx e Engels e Plekhanov, Lenine tinha sempre as obras completas de Tchernychevski e que nus horas vagas o relia constantemente.
Socialista utópico e materialista — sofrerá a influência de Fourier e Feuerbach — Tchernychevski, ideólogo da democracia camponesa revolucionária de 1860-1880, denunciou, em suas obras econômicas, o liberalismo burguês, popularizou o socialismo e combateu vigorosamente a “reforma” agrária de 1861. Ele também, como Herzen, acreditava no futuro socialista do mir. Ao mesmo tempo que seus trabalhos econômicos e políticos, seus brilhantes artigos de crítica literária sobre Lessing, Gogol, Pouchkine e seu romance Que fazer? (1883) escrito nas casamatas da fortaleza de Pedro e Paulo, exerceram uma profunda e duradoura influência na juventude revolucionária.
Preso em 1862, foi condenado a 14 anos de trabalhos forçados: sua deportação para a Sibéria só terminou em 1883. Durante todo esse período, se bem que o governo tsarista tenha interditado até seu nome, Tchernychevski continuou a ser o inspirador e o guia do movimento revolucionário na Rússia que atravessou, em 1879-1881, o período heroico do populismo.
George Dimitrov, o herói do processo de Leipzig (1933), num discurso pronunciado na Casa dos Escritores de Moscou, em 28 de fevereiro de 1935, acentuou o papel que desempenhou Tchernychevski em sua formação de militante revolucionário: “Qual o livro que me deixou em minha juventude uma impressão particularmente profunda, que influenciou minha vida de militante? Poderei dizer claramente que foi um livro de Tchernychevski intitulado Que fazer?”(3).
Acentuo as passagens que marcam a profunda, a excelente compreensão que Tchernychevski tinha da realidade de sua, época, a compreensão de como eram explorados os camponeses a compreensão do antagonismo das classes sociais russas. É Igualmente importante acentuar que ele sabia expor suas ideias puramente revolucionárias, na imprensa submetida à censura. Em suas obras ilegais, escrevia as mesmas coisas, mas sem rodeios.
...Era preciso justamente o gênio de Tchernychevski para compreender tão claramente na época da própria realização da reforma agrária(4) (enquanto que sua significação não havia sido suficientemente esclarecida mesmo no Ocidente), seu caráter burguês fundamental, para compreender que já então a “sociedade” e o Estado russos estavam submetidos ao domínio e à boa vontade de classes sociais irremediavelmente hostis ao trabalhador e conduzindo incontestavelmente o campesinato à sua ruína e à sua expropriação. Tchernychevski compreendia também que a existência de um governo que dissimulava o antagonismo de nossas relações sociais era um mal terrível fazendo particularmente piorar a situação dos trabalhadores.
...Tchernychevski compreendia que o Estado russo, escravagista e burocrático, era incapaz de libertar os camponeses, isto é, de derrubar os escravagistas; que não era capaz de tal “ignomínia”, de um miserável compromisso entre os interesses dos liberais (o resgate não se diferencia em nada da compra) e os dos latifundiários, compromissos que enganavam os camponeses fazendo brilhar ante seus olhos a miragem da segurança e da liberdade enquanto que, na realidade, os arruinava e os entregava, de pés e mãos atados, aos latifundiários. E ele protestava, amaldiçoava a reforma, querendo derrubá-la, desejando que o governo se embaralhasse em sua política de equilíbrio entre os liberais e os latifundiários, e que uma derrocada sobreviesse arrastando a Rússia para o caminho de uma luta de classes aberta.
E nossos “democratas” contemporâneos, hoje que as geniais previsões de Tchernychevski tornaram-se um fato consumado e que trinta anos de história impiedosamente liquidaram todas as ilusões econômicas e politicas, cantam loas à reforma, vêm nela a confirmação de uma produção “popular”, esforçam-se para extrair daí a prova da possibilidade de um caminho que .harmonizasse as classes sociais hostis ao trabalhador. Repito, sua atitude para com a reforma agrária, demonstra da maneira mais evidente a que ponto nossos democratas se aburguesaram. Esses senhores nada aprenderam, e esqueceram muitas, muitas ciosas.
(LENINE, O que são os “Amigos do Povo” e Como Eles Combatem os Sociais-Democratas”, 1894. Obras, t. I, pgs. 178- 180- ed. russa).
O dia 19 de fevereiro de 1861 abre uma nova etapa na história da Rússia, a época burguesa que se desliga da época da servidão. Os liberais de 1860 a 1870 de um lado, Tchernychevski de outro, são os representantes de duas tendências históricas, de duas forças históricas que, de então até os nossos dias, se defrontam na luta pela nova Rússia. Eis porque, no 50.° aniversário de 19 de fevereiro o proletariado consciente deve compreender o mais claramente possível, o fundo dessas duas tendências e suas relações recíprocas.
Os liberais querem “libertar” a Rússia “por cima”, sem destruir nem o regime tsarista nem a propriedade e o poder dos fidalgotes, pedindo-lhes somente “concessões” ao espírito do tempo. Os liberais foram e continuam sendo os ideólogos da burguesia que não pode aceitar a escravidão, mas que teme a revolução e o movimento das massas capaz de derrubar a monarquia e de aniquilar o poder dos latifundiários. Eis porque os liberais se limitam a “lutar pelas reformas”, a “lutar pelos direitos”, isto é, a dividir o poder entre os escravagistas e a burguesia. Com uma tal relação de forças não pode haver outras “reformas” senão as que são feitas pelos escravagistas, outros “direitos” senão aqueles que são limitados pelo arbítrio dos escravagistas.
Tchernychevski foi um socialista utópico que sonhava chegar ao socialismo pelo caminho da velha comuna camponesa, semifeudal; não via e não podia ver, nos anos 60 do último século, que só o desenvolvimento do capitalismo e do proletariado pode criar as condições materiais e a força social necessárias à realização do socialismo. Mas Tchernychevski não foi apenas um socialista utópico. Foi também um democrata revolucionário, afirmando — através de todos os obstáculos e ciladas da censura — a ideie da revolução camponesa, a ideia da luta das massas para a derrubada de todos os antigos ponderes estabelecidos. A “reforma agrária” de 1861, que os liberais inicialmente embelezaram, que mesmo glorificaram, Tchernychevski chamou uma sujeita porque nela viu claramente ocaráter escravagista, viu nitidamente que os camponeses roubados como numa floresta, pelos srs. emancipadores liberais. Tchernychevski chamou aos liberais dos anos 60 “palradores, gabolas e imbecis”, porque enxergou neles o medo da revolução, a falta de caráter e a baixeza diante do poder dos possuidores.
Essas duas tendências históricas desenvolveram-se no decorrer do meio século decorrido depois de 19 de fevereiro e separaram-se de maneira cada vez mais nítida, cada vez determinada, cada vez mais decisiva. Elas aumentavam as forças da burguesia liberal e monarquista, que preconizavam o simples trabalho “cultural” e condenavam a atividade revolucionária clandestina. Mas aumentavam também as forças da democracia e do socialismo — inicialmente reunidas no seio da ideologia utópica e nas lutas dos intelectuais da Narodnaia Volia(5) e dos populistas revolucionários o depois, de 1890 a 1900, separando-se, pouco a pouco, à medida que a luta revolucionária dos terroristas e dos propagandistas isolados cedia lugar à luta das próprias classes revolucionarias.
(LENINE, A Reforma Agraria e a Revolução Operaria e Camponesa. Social Democrata, de 19 de março (1 de abril) de 1911. Obras, t. XV, pgs. 143-145, ed. russa).
O movimento libertador da Rússia passou por três etapas principais correspondentes às três principais classes da sociedade russa que imprimiram seu cunho ao movimento: 1. o período feudal aproximadamente de 1825 a 1861; 2. o período plebeu ou burguesia democrática, pouco mais ou menos de 1861 a 1895; 3. o período proletário, de 1895 a 1917.
Os representantes mais eminentes do período feudal foram os dezembristas e Herzen. Nessa época, sob a servidão, não podia a classe operária pensar em traçar limites entre ela e a massa de servos privados de todo direito, a classe “mais baixa”, a classe mais miserável. A precursora da imprensa operária (proletária democrática ou social-democrata) foi então a imprensa democrática não submetida à censura, com o Kolokol de Herzen à frente.
Assim como os dezembristas fizeram aparecer Herzen, assim Herzen e o seu Kolokol auxiliaram o aparecimento dos plebeus, esses representantes instruídos da burguesia liberal, e democrática que pertenciam não à nobreza, mas à burocracia, à pequena burguesia, ao comércio e à, massa. V. G. Belinski foi, já na época da servidão, o precursor da espoliação completa dos nobres pelos plebeus em nosso movimento libertador.
A célebre Carta a Gogol, na qual se acha condensado o pensamento de Belinski, foi uma das melhores obras da imprensa democrática não submetida à censura e guarda, até nossos dias, uma imensa e viva significação.
A abolição da servidão provocou o aparecimento do plebeu como figura central do movimento libertador das massas em geral e da imprensa democrática não submetida à censura em particular. O populismo tornou-se a tendência dominante que correspondia ao ponto de vista do plebeu. Ele nunca conseguiu separar-se, como corrente social, do liberalismo à direita e do anarquismo à esquerda. Mas Tchernychevski que, depois de Herzen, desenvolveu as concepções populistas fez, com relação a Herzen, um enorme passo à frente. Tchernychevski era um democrata muito mais consequente e mais combativo. Suas obras respiram a luta de classes. Seguia resolutamente a linha, que consiste em denunciar as traições do liberalismo, linha que os “cadetes” e os ‘ liquidadores ainda hoje odeiam. Era um crítico do capitalismo notavelmente profundo, apesar de seu socialismo utópico.
(LENINE, Do Passado da Imprensa Operária na Rússia “in” Rabotchi (O Operário) de 22 de abril (5 de maio) de 1914. Obras, t. XVIII, d. 341-324, ed. russa).
Lembramos como, há um meio século, o democrata grão russo Tchernychevski dava sua vida pela revolução dizendo: “Triste nação, nação de escravos, de alto a baixo, todos escravos”(6). Os escravos grão-russos, aqueles que o são abertamente e aqueles que o são dissimuladamente (escravos em reação à monarquia tsarista) não gostam de lembrar essas palavras. A nosso ver, entretanto, essas palavras foram de verdadeiro amor pela pátria, amor nostálgico em consequência da falta de espírito revolucionário nas massas da população grã-russa.
(LENINE, Sobre o Orgulho Nacional dos Grãos-Russos “in” Social Democrata de 12 (25) de dezembro de 1914. Obras, t. XVIII, p. 81, ed. russa).
“A atividade histórica não é o passeio da perspectiva Nevski”, dizia o grande revolucionário russo Tchernychevski. Aquele que “admite” a revolução do proletariado somente “sob a condição” de que ela se desenvolva sem dificuldades e sem choques, que se produza ao mesmo tempo a ação coordenada dos proletários dos diferentes países, que seja prematuramente garantida contra as derrotas, que a estrada da revolução seja livre, ampla, direita, que não se tenha, por momento, na marcha para a vitória, de suportar os mais pesados sacrifícios, “de defender fortaleza sitiada”, ou embrenhar-se nos caminhos das toais estreitas montanhas, os mais inaccessíveis, os mais sinuosos e os mais perigosos — esse não é um revolucionário, esse não se libertou do pedantismo dos intelectuais burgueses, esse encontrará de fato constantemente arrastado para o campo da burguesia contrarrevolucionária como os nossos socialistas revolucionários de direita, os nossos menchevistas e mesmo (se bem que mais raramente) nossos socialistas revolucionários de esquerda.
(LENINE, Carta aos Operários Americanos na Pravda (A Verdade) de 22 de agosto de 1918. Obras, t. XXIII, p. 183, ed. russa).
Lenine escreveu, em julho de 1907, para o primeiro número da revista Golos Jizni (A Voz da Vida) que apareceu em S. Petersburgo, um artigo: “À memória do conde Heiden”, no qual mostra, atrás da máscara de democratas e amigos do povo, a verdadeira fisionomia dos burgueses liberais. O conde Heiden (1840-1807) fora um membro ativo dos Zemstvos em 1904-1905; eleito para a primeira Duma, dirigiu a ala esquerda dos outubristas partidários da Constituição de 1905, arrancada ao tsar pela revolução.
Lenine vê em Turguenev (1818-1883) assim como o fizera Herzen, um representante clássico da nobreza liberal Partidário de reformas moderadas, Ivan Turguenev é o autor das Narrações de um caçador (1858) onde exprime suas simpatias pelos camponeses nas vésperas da emancipação dos servos. Tornado suspeito ao governo Turguenev manteve-se afastado do movimento revolucionário, limitando-se a descrever sem complacência, em alguns de seus romances, tipos de revolucionários que ele conhecia mal. Tornou-se o verdadeiro escritor da vida dos fidalgotes na época, da penetração do capitalismo na Rússia. (Uma ninhada de gentis homens, Pais e Filhos, etc.)
Heiden era um “homem”, declaram sufocantes de entusiasmo os democratas de salão. Heiden era humano. Essa ternura diante da humanidade de Heiden faz-nos lembrar não somente Nekrassov e Saltykov mas também as Narrações de um caçador, de Turguenev. Temos diante de nós um latifundiário civilizado, instruído, culto, com maneiras doces e um verniz europeu. O proprietário rural oferece vinho a seu hóspede, fala de assuntos elevados. “Por que o vinho não foi arrolhado?”, pergunta ao criado. O criado fica mudo e empalidece. O proprietário toca a campainha e sem levantar a voz diz ao empregado que acaba de entrar: “Para Fédor... fazer o necessário”.
Eis um exemplo da “humanidade” de Heiden ou de humanidade à maneira de Heiden. O latifundiário de Turguenev é também “humano” assim... comparado com Saltytchinkha(7) por exemplo, tão humano que não vai pessoalmente à estrebaria fiscalizar se fizeram “o necessário” para açoitar Fédor. É tão humano que não se preocupa em mergulhar na água salgada as varas com as quais açoitam Fédor. Ele, o proprietário rural, não se permitirá nem bater, nem repreender seu criado, só faz “dar ordens”, de longe, como um homem instruído, em formas doces e humanas, sem barulho, sem escândalo, sem “publicidade”...
A humanidade de Heiden é exatamente da mesma espécie. Não participou pessoalmente das fustigações e das torturas dos camponeses ao lado dos Lougenovski, Filonov e dos Meller-Zakomelski. Não tomou parte nas expedições púnicas com os Renenkamkf. Não fuzilou o povo de Moscou com Doubassov. Era nesse ponto tão humano que se abstinha de tomar parte em tais empresas, incumbindo de “fazer o necessário” a esses heróis de “estrebaria” russa; quanto a ele, dirigia de seu calmo gabinete de trabalho de homem pacato e culto o Partido politico que sustentava o governo dos Doubassov e cujos chefes bebiam à saúde de Doubassov, vencedor de Moscou... Não era realmente humano: mandar os Doubassov “fazer o necessário em Fedór em lugar de ir pessoalmente à estrebaria? Para as velhas damas, que dirigem o comentário político em nossa imprensa liberal e democrática, é um modelo de humanidade... Um homem de ouro, incapaz de fazer mal a uma mosca! “Raro e feliz destino”. Sustentar os Doubassov, saborear os frutos das represálias dos Doubassov e não ser responsável pelos Doubassov.
(LENINE, À Memória do Conde Heiden “in” Golos Jizni (A Voz da Vida) de julho de 1907, Obras, t. XII, pgs. 9-10, edição russa).
Chtchedrine. (pseudônimo de Saltykov) (1826-1889) foi um dos escritores preteridos de Lenine: são os tipos aos romances e das novelas de Chtchedrine que ele cita com mais frequência. Chtchedrine exprimiu a luta da democracia camponesa russa entre 1860 e 1880 contra o regime semifeudal, semi-capitalista. Ninguém melhor acentuou a crueldade, a cupidez, a ignorância do latifundiário, ao comerciante, ao burocrata. A sátira impiedosa de Chtchedrine desmascara o liberalismo burguês, profundamente egoísta e conservador sob sua fraseologia humanitária e radical. Lenine saúda no autor de Senhores Golovlev um aliado em sua luta contra a hipocrisia dos cadetes e a covardia dos liberais.
Chtchedrine escreveu outrora uma sátira clássica contra a França, a França que fuzilava os comunardos, a França dos banqueiros de rastros diante dos tiranos da Rússia, apelando por uma República sem republicanos. É hora de nascer um novo Chtchedrine para escrever a sátira contra Vassiliev e os menchevistas que pretendem defender a revolução com uma palavra de ordem: Nada de revolucionários, nada de revolução!
(LENINE, Plekhanov e Vassiliev “in” Proletari (O Proletário) de 7 (20) de janeiro de 1907. Obras, t. X, p. 238 (ed. russa); E.S.I., t. X, p. 340).
É pena que Chtchedrine não tenha vivido até a “grande” revolução russa. Ele teria, possivelmente, acrescentado um novo capítulo ao Senhores Goloviev, teria descrito Ioudouchka(8) consolando um camponês açoitado, moído de pancada, prostrado, subjugado: esperas uma melhora? Estás decepcionado por que não há modificações num regime baseado na fome, nos fuzilamentos do povo e na nagaika? Lamentas a “ausência dos fatos”? Ingrato! Mas essa ausência de fatos é um fato. É um fato da mais alta importância! Porque o resultado consciente de sua vontade é que os Lidval são sempre os senhores, que os mujiks se deitam tranquilamente para apanhar, sem entregar-se a sonhos nocivos sobre ‘‘a poesia da luta”.
É difícil odiar-se os Cem-Negros: neles, todos os sentimentos estão já mortos, como dizem que os sentimentos morrem na guerra depois de uma longa série de batalhas, quando Já se está habituado aos fuzilamentos, ao arrebentar das gradadas e ao assovio das balas. A guerra é a guerra e se trava contra os Cem Negros, em todos os lugares, uma guerra aberta que faz parte dos hábitos.
Mas Ioudochka Goloviev cadete é capaz de inspirar o sentimento mais ardente de ódio e de desprezo. É que os próprios camponeses escutam este latifundiário “liberal”, este advogado burguês. É que ele embaça verdadeiramente os olhos do povo enfraquece verdadeiramente os cérebros!...
(LENINE, A Covardia Triunfante ou os Socialistas Revolucionários a Reboque dos Cadetes, “in” Naché Ekho (Novo Eco) de 4 (17) de abril de 1907. Obras, t, XI, pgs. 158-159, ed. russa).
De um modo geral, seria bom, de tempos em tempos, lembrar, citar e comentar no Pravda, Chtchedrine e outros escritores da “velha” democracia populista. Para o leitor do Pravda — para 25.000 pessoas — seria oportuno, interessante, e as questões atuais da democracia operária se achariam esclarecidas sob outros aspectos, de uma outra maneira.
(LENINE, Carta de Cracóvia à redação do Pravda (A Verdade) de 8 de setembro de 1912. Obras, p. XXIX, p. 75, ed. russa).
Nicolas Nekrassov (1821-1877), o maior poeta do populismo revolucionário, sentiu profundamente os sofrimentos do povo russo que evocou em seus poemas cheios de um sombrio realismo. Dissecou a ferocidade do regime tsarista, a escravidão, a opressão, a odienta satisfação dos bem pensantes.(9) Lutando pela vitória da revolução camponesa, sente que sua geração não verá essa vitória, daí certas hesitações, certos desfalecimentos e acentos de pessimismo e de desanimo muito frequentes nele.
“Temos generosos impulsos,
Mas nada nos é dado fazer”
Em época muito longínqua Nekrassov exclamou:
...Chegará o tempo,
(Vem, vem, tempo desejado)
E que não será Blucher
nem o milorde estúpido
Mas Belinski e Gogol
Que o povo trará do mercado?(10)
Esse “tempo”, desejado por um dos velhos democratas russos, chegou. Os comerciantes abandonaram(11) seu comércio de aveia e abriram um outro mais lucrativo: o da brochura democrática a baixo preço. O livro democrático tornou-se uma mercadoria de bazar. As ideias de Belinski e de Gogol que fizeram esses escritores tão caros a Nekrassov — como a todos os homens honestos da Rússia — invadiram inteiramente essa nova literatura de bazar...
...Nekrassov hesitava, sendo pessoalmente fraco, entre Tchernychevski e os liberais, mas todas suas simpatias iam para Tchernychevski. Nekrassov, em razão dessa mesma fraqueza pessoal, caiu muitas vezes no pecado do servilismo liberal, mas ele próprio lamentou amargamente seus “pecados” e deles se arrependeu publicamente:
Nunca vendi minha lira, mas aconteceu que quando me ameaçava o destino implacável um “som falso” escapuliu de minha lira de minha mão…
Um som falso! eis como o próprio Nekrassov chamou seus pecados de servilismo liberal. Quanto a Chtchedrine, ele ridicularizou implacavelmente os liberais e os marcou para sempre com sua fórmula; “de acordo com a sua covardia”(12).
(LENINE, Ainda uma Campanha contra a Democracia, “in” Nevskaia Zvezda (Estrela do Neva) de 5 (15) setembro de 1912. Obras, t. XVI, pgs 132-133, edição russa).
Nekrassov e Saltykov Já haviam ensinado à sociedade russá a descobrir, sob o exterior polido, tratado e empomadado do fidalgo escravagista, a sua rapacidade; ensinaram a odiar a hipocrisia e o egoismo de tais tipos, enquanto que o intelectual russo de hoje, que se considera o guardião da herança democrática pertencente ao Partido cadete e àqueles que lhe fazem eco, ensina ao povo a lutar e admira sua própria imparcialidade de democrata sem Partido.
(LENINE, À Memória do Conde Heiden “in” Golos Jizni (A Voz da Vida) de julho de 1907. Obras, t. XII, pg. 9, ed. russa).
Os narodniks (populistas) dos quais Nicolas Mikhailovski (1842-1904) era o teórico, travavam, na última década do século XIX, uma campanha feroz contra os marxistas. O populismo de 1890 com tendências liberais não é mais o populismo revolucionário de 1860-1880.
Os narodniks, ao contrário dos marxistas, consideravam o nascimento do capitalismo na Rússia como um fenômeno regressivo. Partidários de uma democracia camponesa, proclamavam apoiando-se em certas particularidades da vida rural e sobrevivências feudais como o mir (comuna agrária), — o caráter especifico da história russa. Enfim, à luta de classes, motor da história, eles opunham a concepção individualista dos “lutadores isolados”. (P. Lavrov).
Desde suas primeiras publicações, Lenine combateu profundamente as teses dos narodniks. Em seus estudos: “O contendo econômico do populismo”, escrito em 1894 e “Qual a herança que repudiamos?” escrito em 1897, desmascara a utopia pequeno-burguesa de Mikhailovski, apóstolo do “idealismo subjetivo” que confunde fatalismo com determinismo e pretende que o “objetivismo” do marxismo deve impedi-lo de tomar partido na luta de classes, pois que a história é o produto da necessidade econômica.
Pelo contrário, afirma Lenine, o materialismo desvenda objetivamente as contradições de classes e as necessidades da luta.
“O materialismo implica de algum modo o espírito de partido e obriga, em toda apreciação dos acontecimentos, a colocarmo-nos direta e abertamente no ponto de vista de um determinado grupo social.”
O sociólogo materialista, que estuda relações sociais definidas entre os homens, estuda por isso mesmo indivíduos reais cujos atos formam essas relações. O sociólogo subjetivista, que pretende partir dos “indivíduos vivos”, começa, na realidade, por atribuir a esses indivíduos “as ideias e os sentimentos” que considera como racionais (porque, tendo isolado esses “indivíduos” das condições sociais concretas, privou-se por isso mesmo da possibilidade de estudar suas ideias e seus sentimentos verdadeiros), quer dizer que ele “começa pela utopia”.
(LENINE, O Conteúdo Econômico do Populismo e sua Critica no Livro de M. Strouvé, 1894. Obras, t. I, p. 280, edição russa; Do Materialismo Histórico, p. 91, Bureau de Edições, 1935).
Se uma doutrina [Lenine alude ao marxismo] exige de todo homem público uma análise implacavelmente objetiva da realidade e das relações que se estabelecem na base dessa realidade entre as diversas classes, — por que milagre se poderá deduzir daí que o homem público não deve simpatizar com tal ou tal classe, que isso “não lhe convém”? É verdadeiramente ridículo falar aqui de dever, porque nenhum vivo pode deixar de se colocar ao lado de uma classe ou de outra desde o momento em que compreende que não pode deixar de rejubilar-se com os sucessos de determinada classe, não pode deixar de afligir-se com seus revezes, não pode deixar de levantar-se contra os inimigos dessa classe, contra aqueles que a impedem de desenvolver-se difundindo opiniões retrógradas, etc., etc..,
(LENINE, Qual a Herança que Repudiamos? 1897. Obras, t. II, p. 3335, edição, russa).
Mikhailovski foi um dos melhores representantes e interpretes das ideias da democracia burguesa russa no último terço do século passado. A massa camponesa que na Rússia é o único representante sério e o mais numeroso das ideias burguesas democráticas (sem contar a pequena burguesia das cidades) dormia ainda, nessa época, um sono profundo.. Os melhores homens saídos desse meio e os homens cheios de simpatia pela situação dolorosa dos camponeses, aqueles que se chamavam os plebeus — principalmente a juventude estudantil, os professores e os outros representantes dos intelectuais — esforçavam-se para esclarecer e acordar as massas camponesas adormecidas. O grande mérito histórico de Mikhailovski no movimento burguês democrático da Rússia, foi sentir uma ardente simpatia pelos camponeses oprimidos, lutar energicamente contra todas as manifestações do jugo da servidão, testemunhar na imprensa legal, — nem que fosse só por alusões — sua simpatia e seu respeito pelas organizações “subterrâneas” nas quais agiam os democratas plebeus os mais consequentes e os mais resolutos, e ajudar pessoal e diretamente essas organizações subterrâneas. Em nossa época, na qual, não somente os liberais, mas também os liquidacionistas, populistas, (Russkoie Bogatstvo)(13) e marxistas, adotam em relação às organizações subterrâneas, uma atitude envergonhada e muitas vezes traidora, não se pode deixar de lembrar de passagem esse mérito de Mikhailovski.
Mas, sendo um ardente partidário da liberdade e das massas camponesas oprimidas, Mikhailovski refletiu todas as fraquezas do movimento burguês democrático.
...Não somente no terreno econômico, mas na filosofia e na sociologia, as concepções de Mikhailovski foram concepções democrático-burguesas dissimuladas sob a face pretensamente “socialista”. Tais eram sua “fórmula de progresso”, sua teoria “luta pelo individuo”, etc. Em filosofia, Mikhailovski deu um passo atrás comparado com Tchernyechevski, o maior representante do socialismo utópico na Rússia. Tchernychevski um materialista que zombou até o fim de seus dias (isto é até os anos 80 do século XIX), das pequenas concessões feitas ao idealismo e à mística pelos “positivistas” em voga (os kantistas, os machistas, etc.). Quanto a Mikhailovski, colou-se a reboque desses positivistas. E até o presente, essas concepções filosóficas reacionarias dominam entre os discípulos de Mikhailovski mesmo entre os populistas os mais “de esquerda”, no gênero de Tchernov.
(LENINE, Os Populistas Sobre N. K. Mikhailovski “in” Pout Pravdy (O Caminho da Verdade), de 22 de fevereiro (7 de março) de 1914. Obras, t. XVII, páginas 223-224, ed. russa).
Sob o título Viekhi (as balizas), apareceu em 1909, em Moscou, uma coletânea de estudos sobre os intelectuais russos, escritos por ex-liberais e ex-socialistas como Berdiaev, Strouve, Boulgakov, pertencentes à facção da burguesia que o Manifesto de 17 de outubro de 1905 reconciliara com o regime tsarista. A imprensa reacionária, a Novoie Vrémia (Tempos novos), órgão dos Cem Negros, aplaudia esses intelectuais “reabilitados” que negavam seu passado revolucionário e condenavam as aspirações democráticos exprimidas, desde Belinski e Herzen, pelos melhores representantes do pensamento russo. Esse entusiasmo se compreende. Podia se ler em Viekhi assinado por “intelectuais”, esta profissão de “Devemos ser reconhecidos às autoridades porque elas nos protegem com baionetas contra o furor popular”. É uma réplica “liberal” à famosa frase do conservador Constantino Leotiev (1831-l891) “É preciso congelar a Rússia a fim de que ela não apodreça”.
Lenine, num longo artigo sobre Os Balisas, chama essas páginas de “enciclopédia da abjuração liberal”.
É muito natural que, sustentando esse ponto de vista, os Viekhi travam uma luta infatigável contra o ateísmo dos “intelectuais” e se esforcem da maneira a mais resoluta para restabelecer, em toda sua plenitude, a concepção religiosa do mundo. É muito natural que, tendo aniquilado Tchernyechevski como filósofo, os Viekhi aniquilem Belinski como publicista. Belinski, Dobroloubov, Tchernychevski são os chefes dos “intelectuais” (pgs. 134, 56, 32, 17, etc.). Tchaadaev, Vladimir Soloniev, Dostoiévski “não são propriamente intelectuais”. Os primeiros são os chefes da tendência contra a qual os Viekhi travam uma luta de morte. Os segundos “repetiram infatigavelmente” aquilo que justamente também repetem os Viekhi mas “não eram ouvidos; os intelectuais continuavam seu caminho sem prestar-lhes nenhuma atenção”, diz o prefacio dos Viekhi.
O leitor pode concluir que não são os “intelectuais” que atacam os Viekhi; é apenas uma expressão superficial confundindo as coisas. O ataque é travado em toda a linha contra a democracia, contra a concepção do mundo democrático, E como é aborrecido para os chefes ideólogos de um Partido que se proclama “constitucional-democrata” chamar as coisas pelo seu nome, eles tomaram emprestado sua terminologia aos Moskovskie Viedomosti(14), abjuram não a democracia (que Vergonhosa calunia!) mas apenas “o espírito dos intelectuais”.
Muito bem. Muito bem. O estado de espírito dos camponeses servos contra a servidão, é, sem dúvida, um estado de espírito “intelectual”. A história dos protestos e da luta das mais amplas massas da população, de 1861 a 1905 contra as sobrevivências da servidão em toda a estrutura social russa é, sem dúvida, “um pesadelo contínuo”. Ou então, talvez, segundo nossos autores inteligentes e instruídos, o estado de espírito de Belinski em sua carta a Gogol não exprimia o estado de espírito dos camponeses servos? A história de nossa imprensa política não exprimia a indignação das massas populares provocada pelas sobrevivências da servidão?
Os Moskovskie Viedomosti sempre afirmaram que a democracia russa desde — digamos — Belinski, não traduz de nenhum modo os interesses das mais amplas massas da população em sua luta pelos direitos os mais elementares do povo, direitos violados pelas instituições feudais, mas exprime, apenas, “o estado de espírito dos intelectuais”.
O programa dos Viekhi e dos Moskovskie Viedomosti é idêntico em filosofia e na imprensa política. Mas, em filosofia, os renegados liberais decidiram-se a dizer toda a verdade, j a revelar todo seu programa (a guerra ao materialismo e positivismo interpretado no sentido materialista; a restauração da mística e da concepção mística do mundo) enquanto que na imprensa política torcem o caminho, manobram, agem como jesuítas. Romperam com as ideias essenciais da democracia com as tendências democráticas as mais elementares, mas fingem romper somente com “o espírito dos intelectuais”. A burguesia liberal resolutamente abandonou a defesa dos direitos dos povos para defender as instituições dirigidas contra o povo. Mas os políticos liberais desejam conservar o nome democratas”.
O jogo de passa-passa que eles realizaram com a carta de Belinski a Gogol e com a história da imprensa política russa é renovada com a história do recente movimento.
(LENINE, Sobre os Viekhi, “in” Novy Dien (Novo Dia), de 13 (26) de dezembro de 1909. Obras, t. XIV, pgs. 218-219, edição russa).
Notas de rodapé:
(1) Cadete: iniciais russas (K. D.) do Partido Constitucional Democrata, organização da burguesia liberal. (retornar ao texto)
(2) O Narodnaia Volia, o partido da Vontade do Povo, intitulava-se socialista, proclamava “a felicidade e a vontade do povo como dois princípios os mais sagrados”, exigia a convocação de uma Constituinte livremente eleita pelo sufrágio universal e recorria ao terrorismo. Em seu período heróico (1878-1880) deu lutadores revolucionários como Sofia Perovskaia e Jeliabov. (retornar ao texto)
(3) A Comuna, n.° 20 — 1935. p. 836. (retornar ao texto)
(4) 19 de fevereiro de 1861. (retornar ao texto)
(5) A Vontade do Povo. (retornar ao texto)
(6) Tchernychevsky ´Obras, t. X, p. 171. (retornar ao texto)
(7) Personagem do Narrações de Caçador. (retornar ao texto)
(8) Ioudouchka, diminutivo de Judas, personagem do romance de Chtchedrine. (retornar ao texto)
(9) Longe daqueles que se alegram, que tagarelam – que tingem suas mãos no sangue – conduze-me ao campo daqueles que tombam pela grande causa do amor! (retornar ao texto)
(10) Versos tirados do poema de Nekrassov Porque é Bom viver na Rússia. (retornar ao texto)
(11) Trata-se da revolução de 1905. (retornar ao texto)
(12) Essa expressão de Chtchedrine é tirada de sua novela O liberal. (retornar ao texto)
(13) A riqueza russa. (retornar ao texto)
(14) As Novidades de Moscou, jornal cadete editado em Moscou. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/07/2019 |