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O ex-presidente Spínola, nas declarações que fez no seu acto de renúncia, mostrou a maneira como observa o presente processo de democratização que se desenvolve em Portugal depois do 25 de Abril.
O M.F.A. e o Governo Provisório não têm, de maneira nenhuma, aquela visão apocalíptica e catastrófica da sociedade portuguesa, neste momento. Estamos, de facto, atravessando um período pós-revolucionário; não é impunemente que um país vive 50 anos sob um regime fascista e, ao fim de cinco meses temos, fundamentalmente, os problemas herdados do regime anterior, que estava em crise flagrante, escondida atrás da censura férrea da Informação e da repressão de toda a ordem que exercia.
Temos, de facto, problemas a resolver nos diversos sectores da vida nacional, mas temos meios de os resolver. Não vivemos, por exemplo, em anarquia como foi dito. Haverá maior prova de civismo e de ordem do que aquilo que se tem passado nos últimos dias, em Portugal?
Nós não vivemos, de maneira nenhuma em anarquia, antes pelo contrário. Portugal é um país de ordem, não é um país de anarquia.
Não precisamos de declarar estados de sítio, nem recolher obrigatório. No próprio dia em que há uma súbita mudança de Presidente da República, o povo manifesta-se livremente na rua, sem aparatos de segurança. E a operação de vigilância popular e das Forças Armadas, para desmontar a conspiração, decorreu sem incidentes e sem coacções. Só os que traziam elementos de culpa reagiram ou tentaram fugir. Houve a melhor compreensão, o maior civismo de toda a gente.
Este País é um País de ordem, não de anarquia.
Não temos qualquer elemento de prova de que o general Spínola estivesse envolvido na conspiração reaccionária. Mas, quanto às saídas dos outros elementos da Junta (generais Galvão de Melo, Jaime Silvério Marques e Diogo Neto) só lhes posso dizer que uma democracia não pode ser feita sem democratas. Mas não estavam envolvidos na intentona.
O major Sanches Osório, deve dizer-se, foi um homem do 25 de Abril, ligado ao Movimento das Forças Armadas desde o princípio. Só que, após os acontecimentos dos últimos dias, não podia continuar no Governo.
Pensamos que a Informação é uma arma muito importante do ponto de vista ideológico, social, etc. Temos alguns órgãos de Informação do Estado — E. N. e R. T. P. — que devem exprimir com o máximo rigor e a maior correcção, os pontos de vista governamentais acerca dos diversos problemas nacionais e contribuir para o esclarecimento das questões nacionais e elucidar o pais sobre a actividade do Governo, isto sem exercer censura ou repressão, e muito menos, sem procurar condicionar a opinião pública no nosso país.
Têm os órgãos governamentais de Informação um grande papel a desempenhar no sentido de darem tranquilidade e calma, traduzindo fielmente a nossa acção e os nossos objectivos; de se oporem, também com calma, às calúnias constantes que são lançadas sobre o M. F. A., sobre as forças que estão interessadas no progresso económico e social do nosso país, na realização do Programa do M. F. A.
Não podemos de um dia para o outro dar o céu e a terra ao nosso povo. Temos, todos em conjunto, de trabalhar muito. Vivemos mais uma situação democrática do que uma democracia institucionalizada. Tratamos disso. As leis já aprovadas não serão as melhores do Mundo, mas estou certo de que garantem o bastante para cumprirmos correctamente o nosso Programa, atendendo às circunstâncias. É preciso ter em conta que partimos para a democracia na cauda dos países da Europa.
A impaciência não contribui para a resolução dos nossos problemas, nem para a consolidação do processo democrático.
Estabelecemos uma legalidade revolucionária baseada no Movimento do 25 de Abril, que tem diversos órgãos institucionalizados. Temos um objectivo fundamental: cumprir e fazer cumprir o Programa do M.F.A.. É isso que nos move, é esse o nosso objectivo e todos os nossos esforços são encaminhados nesse sentido.
A unidade entre o povo e o M. F. A. constitui, de facto, uma condição fundamental do nosso progresso. Mas deve ter-se em conta que, em nosso entender, estratégia anti-monopolista não quer dizer estratégia anti-capital privado. Queremos, de facto, uma maior justiça social mas há muitas distorções, de toda a ordem, a vencer.
Basta olharmos para o leque salarial. Vai levar tempo a equilibrar tudo isto. As distorções sociais muito grandes criam problemas ao processo democrático.
Quanto à política externa, o nosso Programa, o nosso desejo, é abrir em todos os sentidos. Temos obtido muitos êxitos no nosso caminho para as relações fraternais com todos os povos da Terra. E isto deve-se à sinceridade da nossa política de descolonização. Mas as relações diplomáticas, económicas e culturais que pretendemos, têm de basear-se no respeito mútuo da independência de todos. Seremos fiéis aos tratados e alianças a que nos comprometemos. Atribuímos muita importância ao desenvolvimento das nossas relações amigáveis com os Países do Terceiro Mundo. Estamos fortemente implantados em África e não podemos esquecer-nos que temos muito sangue árabe nas veias. Cometeram-se autênticos crimes, no regime anterior, destruindo as fontes históricas que comprovam essa realidade. Basta vermos que as obras literárias sobre a matéria, ultimamente publicadas entre nós, são a resultante de traduções de textos espanhóis. Por outro lado é preciso não se esquecer, é preciso que o Mundo saiba e mesmo os portugueses que não sabem pensar em português, a importância do processo original e sincero de descolonização em que estamos empenhados. Mantemos já óptimas relações de amizade e cooperação com o novo Estado de expressão lusíada, o da Guiné-Bissau. E em Moçambique desenvolve-se um processo extremamente honroso, do qual devemos ter orgulho. É uma experiência única. Ali se desenvolvem laços magníficos de relações entre raças, que a Frelimo compreendeu em toda a extensão e está comprometida e empenhada em levar a cabo. Não é isto uma obra formidável do 25 de Abril e do Movimento das Forças Armadas?
Angola é diferente, mas a nossa posição é igual: defesa de uma política de entendimento, anti-racista.
Temos em conta as realidades concretas de cada território. Em política não há princípios rígidos — é a nossa certeza.
Quanto à Igreja — as minhas relações com o sr. Cardeal-Patriarca julgo que posso dizer que são as melhores. Aqui há tempos nós fomos visitá-lo. Falámos com a maior franqueza e abordámos problemas que afectam as relações do Estado e da Igreja dizendo, com toda a clareza: nós não desejamos que em Portugal se desenvolva uma campanha anticlerical, de maneira nenhuma. O povo português é um povo católico e um povo que na sua grande maioria é cristão. Nunca seremos nós que misturaremos a religião com a vida política, social e económica. Da nossa parte não haverá misturas dessas, pois consideramos que há uma esfera para a religião e há uma esfera para as outras actividades humanas.
Religião é uma coisa, política é outra. A Igreja tem de compreender isso. Não seremos nós que romperemos tal compromisso. A Igreja tem de convencer-se que é muito mais importante colaborar na transformação positiva das nossas instituições, cultura e mentalidade. Há uma activa Imprensa clerical e reaccionária, sobretudo no interior, mas para essa temos nós meios de actuação e estamos atentos.
O Programa do M. F. A. será cumprido, custe o que custar, pelo que haverá mesmo eleições em Março. É um ponto de honra. O povo português vai expressar a sua vontade, livremente. Estaremos vigilantes a que não vote sob coacção de qualquer espécie. O Movimento das Forças Armadas aceitará o resultado dessa expressão de vontade, seja ele qual for. E seremos garantes da sua defesa.
Pergunta — Face às alterações ultimamente verificadas na vida portuguesa, como é que o Sr. Brigadeiro vê a possibilidade da existência em Portugal de um pluralismo político e da continuidade para a observância estrita do processo de democratização?
Resposta — O pluralismo político em Portugal está à vista. Só quem não o queira ver é que não verifica da sua existência. Ele é bem patente. Nós até estamos hoje numa situação em que, parece-me, se fala em que há dezenas de partidos, mas, independentemente disso, há alguns que são mais destacados, desde o Centro-Direita, digamos, até à Esquerda. Não compreendo mesmo como possa passar pela cabeça das pessoas que o Movimento das Forças Armadas não pudesse cumprir essa alínea do seu programa, que é a da instauração de uma democracia pluralista em Portugal. Só quem se queira opor ao nosso Movimento, só os nossos inimigos poderão pôr em dúvida a sinceridade dos nossos propósitos. Aliás, está à vista de toda a gente a existência das diversas correntes de opinião pública que existem entre nós, expressando-se livremente.
Essa garantia está fortalecida. Porque, depois da crise actual, as posições ficaram mais clarificadas, o Movimento das Forças Armadas e as Forças Armadas mais empenhados ainda no processo de democratização do nosso país. É isso que anima esse punhado de jovens, a quem eu me permito, sem querer com isso esquecer todos aqueles que contribuem para o desenvolvimento da democracia em Portugal, manifestar a minha gratidão, a esse punhado de jovens militares do Movimento das Forças Armadas, alguns dos quais há pouco aqui os viram, que são homens de uma generosidade, de uma têmpera, de uma dedicação extraordinárias. É nessa camada desses jovens, dos 30 e dos 40 anos, que temos grandes chefes militares que podem vir a ocupar mais tarde os lugares que têm ocupado o nosso general Costa Gomes, um dos militares mais ilustres, se não o militar mais ilustre das modernas gerações.
Eu não tenho uma visão catastrófica da realidade portuguesa. Nós vivemos momentos difíceis, mas estou convencido de que, com o esforço de todos, os ultrapassaremos. E um observador atento já teve oportunidade de verificar certos aspectos que são claros indícios de que o País não caminha de maneira nenhuma para um caos económico, nem para um colapso. Antes pelo contrário. Nós venceremos esta crise, porque eu pergunto: se nós, ao fim de oito séculos de História, não somos capazes de vencer uma crise como a que hoje vivemos, então somos algum povo no contexto dos povos? Um povo com as nossas tradições, uma nação que é provavelmente a nação mais velha da Europa, com todo este passado histórico, não será capaz de vencer as suas dificuldades que neste momento atravessa? Onde há um povo que tenha sofrido transformações tão profundas ao fim de cinco meses, depois de 50 anos de fascismo, que tenha conseguido as realizações que nós temos conseguido, praticamente sem um tiro? Eu pergunto: indiquem-me, em qualquer parte do Mundo, onde haja um povo como o nosso?
Início da páginaAbriu o arquivo | 05/05/2014 |