Entrevista à Agência «Prensa Latina»

Vasco Gonçalves

Outubro de 1974


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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Pergunta:Com o Movimento do 25 de Abril o povo português obteve um grande triunfo no plano político saindo da ditadura e estando em vias de estabelecer um regime democrático. Contudo, no plano económico, a tarefa parece muito mais complicada. O que se propõem fazer as autoridades portuguesas para estender o 25 de Abril ao plano sócio-económico? Estão em estudo medidas contra os grupos monopolistas ou há algum projecto de Lei de Reforma Agrária?

Resposta: — No ponto 6 do Programa do Movimento das Forças Armadas, programa que nós estamos empenhados em cumprir, afirma-se:

«O Governo Provisório lançará os fundamentos de:

  1. Uma nova política económica, posta ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia anti-monopolista;
  2. Uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade da vida de todos os Portugueses.»

Na sequência destes princípios e tendo em conta que as escolhas essenciais caberão ao Povo Português, por meio de sufrágio universal, o Governo já começou a executar uma política concretizadora daqueles princípios.

Assim, iniciou-se uma reforma fiscal visando tomar mais justa a redistribuição do rendimento. Aumentou-se o crédito e melhorou-se a sua selectividade. Fomentou-se a construção social. Orientou-se o défice orçamental no sentido de uma maior dinamização social. O Governo estuda neste momento uma série de projectos que têm como principal finalidade dinamizar o sector agrícola e aumentar a produção. Acabou-se com toda uma série de subsídios e proteccionismos vários.

Como corolário de uma política «de verdade» em que o Governo está empenhado, tivemos que aumentar os preços de alguns produtos de grande consumo, medida indispensável ao saneamento económico e financeiro. Os preços destes produtos, no anterior regime, eram preços políticos, mantidos artificialmente com subsídios ao consumo, geradores de défice do sector público, e causa imediata de inflação.

Estamos convencidos que, apesar das condições difíceis em que estamos a executar esta política, devido ao peso da herança de 48 anos de fascismo e à desfavorável conjuntura económica internacional em que vivemos, com a execução desta política criaremos ao Povo Português as condições necessárias para uma escolha em liberdade do seu futuro.

Pergunta: — Se os sectores depostos pelo MFA ficarem de braços cruzados sem tentar recuperar o poder e os seus privilégios, pela primeira vez na história se verifica um facto como este. Houve indícios de alguma conspiração contra-revolucionária, ou existiu alguma tentativa de desvio dos objectivos do 25 de Abril?

Resposta: — Exceptuando a tentativa de modificação do Programa do Movimento das Forças Armadas que teve como consequência o afastamento do Governo do Sr. Prof. Dr. Palma Carlos e a entrada de militares para o Governo a fim de garantirem com firmeza o cumprimento do Programa do Movimento, não é lícito falar-se em complot de forças reaccionárias.

O que tem havido é a promoção de uma campanha de boatos alarmistas, decerto dirigida pelos sectores reaccionários apeados do poder em 25 de Abril, que pretende criar um ambiente de intranquilidade e insegurança propício aos seus desígnios, que intenta quebrar a unidade do Povo com as suas Forças Armadas. O País tem demonstrado uma apreciável consciência política mantendo-se tranquilo, vigilante e unido às Forças Armadas e ao Governo Provisório que por sua vez está atento e será intransigente e duro em relação a todos aqueles que tentem promover manobras reaccionárias.

Pergunta:Apesar das decisões sobre este assunto serem tomadas colegialmente, V. Ex.ª como Primeiro-Ministro e um dos mais destacados dirigentes do MFA tem muito que dizer e uma contribuição importante a dar no processo de descolonização de Angola e Moçambique. Segundo a sua opinião como poderá realizar-se, rápida e eficazmente, a independência efectiva desses territórios?

Resposta: — A solução da descolonização em relação aos territórios da Guiné, Angola e Moçambique tem de ser diferente de território para território em função da particularidade de condições locais no respeitante ao aspecto político, económico e social.

Já firmámos acordos quanto à Guiné e Moçambique que confirmam o que atrás ficou dito.

O problema de Angola é mais complexo, de solução mais difícil mas a rapidez e os termos dos acordos que firmámos em relação à Guiné e Moçambique e o curto prazo em que foram realizados, demonstram a sinceridade das nossas intenções e são garantia de que chegaremos a uma solução adequada quanto a Angola.

Em qualquer dos casos é constante dos nossos objectivos a obtenção de acordos que respeitem a autodeterminação e a independência dos povos, os legítimos interesses dos portugueses nesses territórios e conduzam à formação de novas nações multiraciais de expressão portuguesa.

Estas soluções nunca envolverão posições neo-colonialistas.

Pergunta:A independência das colónias iniciará uma nova era nas relações de Portugal com a África. Como é que Lisboa vê essa perspectiva?

Resposta: — O Governo encara com optimismo o futuro das relações de Portugal com os países de África.

Fazendo parte do Programa do Movimento das Forças Armadas o «alargamento e a diversificação das relações internacionais com base na amizade e cooperação» é evidente que se nos abrem muito boas perspectivas quanto ao futuro que não deixaremos de aproveitar.

Sintomas positivos que já podem ser apontados são constituídos pelo reatamento das relações diplomáticas com o Senegal e a Tunísia e o levantamento por parte de alguns países africanos da proibição que tinham imposto a Portugal de sobrevoar os seus territórios.

Pergunta:Existem hoje em Portugal órgãos de poder: Junta de Salvação Nacional, Conselho de Estado, Governo Provisório, Movimento das Forças Armadas. Porquê esta diversidade e qual a tarefa de cada um? Num dado momento, não poderá a existência de tantos órgãos constituir um freio ao desenvolvimento do processo revolucionário português?

Resposta: — A definição de competência dos vários órgãos de poder está contida na lei n.° 3 de 74 de 14 de Maio. Assim:

Art.° 10.° «Compete à Junta de Salvação Nacional:

1° Vigiar pelo cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas e das leis constitucionais ;

2° Escolher de entre os seus membros o Presidente da República, o Chefe e Vice-Chefes do Estado- -Maior-General das Forças Armadas, o Chefe do Estado Maior da Armada, o Chefe do Estado Maior do Exército e o Chefe do Estado Maior da Força Aérea;

3° Designar, em caso de impedimento do Presidente da República, qual dos membros desempenhará interinamente as suas funções.»

Art. 13.° «1. Compete ao Conselho de Estado:

1° Exercer os poderes constituintes assumidos em consequência do Movimento das Forças Armadas até à eleição da Assembleia Constituinte;

2° Sancionar os diplomas do Governo Provisório que respeitem:

  1. À eleição da Assembleia Constituinte;
  2. À definição das linhas gerais da política económica, social e financeira;
  3. Ao exercício da liberdade de expressão de pensamento, de ensino, de reunião, de associação e de crenças e práticas religiosas;
  4. À organização da defesa nacional e à definição dos deveres desta decorrentes;
  5. À definição do regime geral do Governo das províncias ultramarinas;

3° Vigiar pelo cumprimento das normas constitucionais e das leis ordinárias e apreciar os actos do Governo ou da Administração, podendo declarar com força obrigatória geral, mas ressalvadas sempre as situações criadas pelos casos julgados, a inconstitucionalidade de quaisquer normas;

4° Autorizar o Presidente da República a fazer a guerra, se não couber o seu uso à arbitragem, ou esta se malograr, salvo o caso de agressão efectiva ou iminente de forças estrangeiras, e a fazer a paz;

5° Pronunciar-se em todas as emergências graves para a vida da Nação e sobre outros assuntos de interesse nacional sempre que o Presidente da República o julgue conveniente.

2. Os diplomas que devem ser sancionados pelo Conselho de Estado não poderão ser promulgadas pelo Presidente da República sem que a sanção tenha sido concedida.»

Art.° 16.° — 1. «Compete ao Governo Provisório:

  1. ° Conduzir a política geral da Nação;
  2. ° Referendar os actos do Presidente da República;
  3. ° Fazer decretos-leis e aprovar os tratados ou acordos internacionais;
  4. ° Elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das leis;
  5. ° Superintender no conjunto da administração pública;
  6. ° Elaborar a lei eleitoral.

2. Os actos do Governo Provisório que envolvam aumento de despesas ou diminuição de receitas são sempre referendados pelo Ministro da Coordenação Económica».

Como se vê não há antagonismos nas missões destes órgãos de poder; pelo contrário as suas atribuições completam-se; sendo assim, não é na existência desses órgãos que se devem procurar os travões ao processo de democratização do país.

Pergunta:Num passado recente, Portugal esteve marginalizado na Europa, sendo um bastião do anticomunismo e um aliado seguro da política norte-americana. Esse legado da ditadura fascista foi desfeito pelo 25 de Abril e esse esquema já não corresponde ao Portugal de hoje. Como encaram os dirigentes portugueses o futuro das suas relações com a Europa, os Estados Unidos e os Países Socialistas?

Resposta: — De acordo com o programa do MFA o Governo Provisório orientar-se-á em matéria de política externa pelos princípios da igualdade e independência entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros países e da defesa da paz, alargando e diversificando relações internacionais com base na amizade e cooperação.

Pergunta:Que significa para V. Ex.ª o Continente Latino-americano e como crê que se poderão estabelecer relações de cooperação entre Portugal e países como o Peru, Argentina, Panamá, México e Cuba, por exemplo?

Resposta: — Vejo as relações de Portugal com o continente latino-americano integradas no plano geral de abertura do meu país à cooperação com todos os povos do mundo. No plano concreto de estabelecimento de acordos de cooperação ele terá de ser concretizado através de vários acordos bilaterais nos vários campos quer da economia, cultura, etc.

NOTA DO EDITOR:

A entrevista à «Prensa Latina» foi concedida imediatamente antes do 28 de Setembro. Após esta data e antes da sua publicação o entrevistador apresentou uma nova questão, que vem completar a entrevista, tal como foi publicada.

Pergunta: Os últimos acontecimentos que culminaram com a renúncia do general Spínola, demonstram que os que foram desalojados do poder em 25 de Abril não se resignaram com a sua sorte e chamaram a si todas as forças para fazer parar o processo revolucionário e recuperar os seus privilégios. Que medidas se propõem tomar o MFA e o Governo a que V. Ex.ª preside para evitar a repetição de intentonas semelhantes e assegurar a marcha em frente do processo revolucionário português?

Resposta: — Nós sabíamos que as forças desalojadas do poder em 25 de Abril não ficariam inactivas.

Sabíamos que logo no dia 26 de Abril tinham começado os contactos e as reuniões entre elementos reaccionários.

Tentaram pela primeira vez sair à rua em 10 de Junho: através de uma «manobra palaciana» esforçaram-se por modificar o Programa do MFA; este último episódio acabou com a demissão do Prof. Palma Carlos e de alguns ministros que o apoiavam.

De todas estas vezes os reaccionários saíram derrotados e as posições do MFA saíram fortalecidas.

Estes factos que aponto foram as primeiras provas, mas podemos caracterizá-las de factos sem grande significado; foram apenas indícios que no entanto revelavam a disposição dos contra-revolucionários.

Apesar destes desaires parciais os contra-revolucionários não desarmaram. Aproveitando o clima de liberdade que hoje se vive em Portugal teceram as malhas de uma operação contra-revolucionária que visava criar as condições para uma tomada de poder pelas forças extremistas da direita.

Mais uma vez o MFA e o Povo Português se mostraram à altura da situação: apararam o golpe é contra-atacaram rapidamente, desmantelando as organizações reaccionárias e solidificando ainda mais a aliança firmada a 25 de Abril.

Não temos porém ilusões. Sabemos que se tratou da primeira grande batalha. Outras se seguirão, mas estamos atentos e vigilantes.

Pensamos que é de importância extrema manter a vigilância popular contra a reacção; pensamos criar rapidamente um serviço de defesa das conquistas da nossa jovem democracia e pensamos, também em breve, num plano de acção económico de emergência, definir melhor os contornos de «uma nova política económica, posta ao serviço das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida o que necessariamente implicará uma estratégia anti- monopolista», como nos impõe o Programa do MFA, Programa que estamos, mais do que nunca, determinados a cumprir.

Temos a certeza que com a concretização destas medidas minoraremos muito o campo de actuação das forças reaccionárias.


Abriu o arquivo 05/05/2014