O Socialismo Reviverá como Força de Massas Tanto no Leste como no Ocidente

Jacob Gorender

18 de Outubro de 1991


Fonte: Marxismo21. Entrevista à Brasil Revolucionário.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Aos 68 anos o baiano Jacob Gorender teve o "misterioso privilégio" de se encontrar em Moscou a 19 de Agosto de 1991, quando ocorreu a tentativa de golpe de Estado na URSS.

Destacado historiador e militante revolucionário, dedicou a sua vida à causa do socialismo, tendo sido membro do Comitê Central do PCB e fundador do PCBR.

Como escritor, é responsável por uma obra polêmica onde se destacam: O Escravismo Colonial (1978); A Burguesia Brasileira (1981); Combate nas Trevas (1987); A Escravidão Reabilitada (1990); Perestroika (Origens, Projetos, Impasses) (1991).

Hoje Gorender enfrenta com vigor e competência a onda anti-marxista que predomina na esquerda brasileira a partir da falência dos regimes de estatismo burocrático do Leste Europeu.

Integrante do Instituto Mário Alves de Estudos Políticos, do qual é fundador, retoma de uma viagem à URSS, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia e Cuba. Sua primeira entrevista após a viagem foi concedida a Valdizar Pinto do Carmo e Paulo Faria para a revista Brasil Revolucionário, a 18 de Outubro de 1991.

Brasil Revolucionário - Jacob, você estava em Moscou a 19 de agosto de 1991, quando ocorreu a tentativa de golpe de Estado. Fale sobre esse momento crucial da vida política soviética?

JACOB GORENDER - De fato, eu tive esse misterioso privilégio. Foi uma casualidade: exatamente quando eu visitava Moscou, com o empenho de recolher observações diretas da realidade soviética, ocorreu o putsch de 19 de agosto.

O putsch foi ainda mais surpreendente, porque a opinião geral nos chamados meios bem informados — acadêmicos, especialistas em ciências políticas e sociais, jornalistas — que eu entrevistei, era de que havia uma situação de calmaria. Gorbachov e Bush tinham se encontrado e assinado um acordo e ambos estavam em férias: não se podia esperar grandes novidades se os dois maiores estadistas do mundo se achavam licenciados de suas atividades. Por outro lado, também se considerava que, na União Soviética, o entendimento entre Gorbachov e Iéltsin tinha dado lugar a uma distensão política. Supostamente, verificava-se, então, uma situação de calmaria. Isso se mostrou enganoso quando, às 7 horas da manhã do dia 19, recebi a notícia de que Gorbachov tinha sido destituído e um autodenominado Comitê de Emergência assumira o poder.

Brasil Revolucionário - Você recebeu esta notícia do Brasil?

JACOB GORENDER - Sim. De São Paulo, do jornalista brasileiro Sérgio Leopoldo Rodrigues. A notícia circulou primeiro no exterior e depois na União Soviética. Seria estranho se os golpes fossem avisados. Mas podem ser previstos ou pressentidos. O golpe do dia 19, a meu ver, permitiu que se esclarecesse a verdadeira relação de forças dentro da União Soviética, relação ainda mascarada por certas instituições que, no passado, tinham sido dominantes, e que na verdade, naquele momento, não passavam de aparência, de uma força fictícia. O que constituiu um engano fatal para os chefes do putsch.

Todas as pessoas entrevistadas por mim antes do golpe acentuavam: “Quem manda aqui é o KGB". (Uso o gênero masculino porque KGB se traduz por Comitê de Segurança do Estado; não sei por que a imprensa brasileira adota o gênero feminino.) Todos ressaltavam isso: o KGB tinha mais força que o Partido Comunista, que o Exército. Controlava tudo: Exército, Partido, Ministério do Interior. O Partido funcionava como articulador entre estes centros do poder político efetivo. Era, mais ou menos esse, o esquema que todos me apresentavam e que ainda não teria sido mudado. Então, parecia evidente que um golpe, desencadeado pelo chefe do KGB, pelo ministro do Interior e pelo ministro da Defesa (e chamado Comitê de Emergência), seria um golpe invencível. A realidade, porém, mostrou que, em apenas três dias, o golpe estava praticamente desfeito, sem que se travasse um único combate pelas armas.

Bóris Iéltsin, presidente da Rússia, revelou qualidades políticas exigidas pelo momento: chamou o povo à defesa da Constituição e se entrincheirou na sede do Parlamento russo, a chamada Casa Branca. (Evidente imitação da Casa Branca de Washington. Aliás, há uma moda de Casas Brancas: na Polônia, a sede do governo é pintada de branco e também é conhecida como Casa Branca.) Em suma, Iéltsin, como se diz, “pagou para ver”, pois a Casa Branca poderia ser assaltada. As barricadas de vigas de aço e blocos de cimento, veículos e outros materiais, montadas ao redor do Parlamento, seriam facilmente rompidas por helicóptero, tropas treinadas e tanques, aos quais seria impraticável resistir. Mas o ataque não ocorreu. Para Iéltsin foi vantajoso, porque nada precisou pagar para alcançar enorme projeção e supremacia política.

A resistência permitiu exatamente mostrar que os golpistas não tinham poder efetivo e que o KGB e outras siglas já eram somente siglas, a força delas era realmente fictícia. Sete anos. aproximadamente, de Glásnost, de abertura, de debates, de denúncias, de revelações, de prática democrática, de criação de órgãos eleitos pela população, com discussões transmitidas pela televisão, geraram na União Soviética um novo clima espiritual, completamente diverso daquele anterior ao Gorbachov, muito diverso do que havia no tempo de Breznev, sem falar na época de Stálin e mesmo da de Kruschov. Pode-se dizer hoje que, por enquanto, a União Soviética é um dos países mais democráticos do mundo, onde tudo se discute. Ainda que nem todas as correntes tenham as mesmas disponibilidades dos meios de comunicação, quem quiser montar um jornal, se tiver condições materiais, poderá fazê-lo. A questão da democracia na URSS não está na sua prática pura e simples. Está nas idéias que prevalecem no meio da população. Por isso, não cabe apenas registrar que os golpistas foram derrotados e que setores favoráveis à democracia venceram. A favor da democracia pode-se dizer que estavam todas as forças politicamente ativas, com exceção daquelas ligadas ao velho aparelho do Estado e do Partido, ou seja, as forças de cunho stalinista. Embora tais forças não fossem constituídas pelos stalinistas mais ferrenhos, já isolados pela Glásnost, elas eram formadas por pessoas educadas pelo aparelho centralizador e comprometidas com ele. Tais forças remanescentes do stalinismo perdiam terreno rapidamente e iam desaparecer, porque, com a assinatura do Tratado da União, marcada para o dia 20, exatamente um dia após o golpe, o aparelho central perderia sua razão de ser: todas as decisões se dariam ao nível das repúblicas, e nas repúblicas o PC reduzia cada vez mais seu prestígio. Se ele não fosse dissolvido, seria, de qualquer maneira, uma corrente residual. Em conseqüência, o grande vitorioso foi Iéltsin, homem ligado às forças pró-capitalismo na União Soviética.

Contra o golpe e a favor da democracia, situavam-se as forças pró-capitalismo, os operários e os marxistas. Embora com perspectivas opostas, estas forças sociais não podiam colocar-se a favor de algo que pertence à sucata da história. Repetindo: sem compromisso formal, todas as forças politicamente ativas (com exceção daquelas que tinham interesse no velho aparelho central do Partido e do Estado) ficaram contra os golpistas.

Quero registrar outro fato ao qual a imprensa não deu destaque: a resistência ativa ao golpe partiu de uma minoria muito pequena. Só houve realmente resistência ativa em Moscou e Leningrado e em algumas outras regiões, como Vorcuta, na Sibéria, onde os mineiros entraram em greve e, nos portos soviéticos, onde alguns navios paralisaram suas atividades. A palavra de ordem de greve geral, lançada por Iéltsin, praticamente não foi seguida. Em Moscou, nenhuma empresa parou, todas as fábricas continuaram funcionando. Pode ter havido um grau maior de absenteísmo, mas nenhuma fábrica deixou de funcionar. A população prosseguiu na sua rotina normal, com exceção de locais da área central da cidade, cercada por tanques, e dos ativistas, que colavam manifestos nas estações e corredores do metrô e em outros lugares públicos. Havia também aqueles que imprimiam esses manifestos e os que se revezavam nas barricadas da Casa Branca, onde, aliás, os tanques do Exército não impediam entradas e saídas. Não era muita gente. A enorme massa da população de Moscou continuou na sua rotina normal e a vida da cidade não parou. Nem a fila diante do MacDonald’s (que fica no centro de Moscou) deixou de reunir milhares de apreciadores dos hamburguers, ininterruptamente, durante o dia inteiro.

Brasil Revolucionário - Como testemunha ocular, a que você atribui essa passividade, esse distanciamento da grande massa moscovita?

JACOB GORENDER - Eu atribuo isso ao cansaço de uma população afligida pelas necessidades cotidianas e a certo grau de descrença em relação a soluções políticas. Parte considerável da população soviética, como aliás de outros países do Leste Europeu, se acha sensibilizada por apelos demagógicos populistas, que podem resultar em alguma ditadura de direita. De fato, somente quando os golpistas foram derrotados e Iéltsin apareceu glorificado, houve um comício com cerca de duzentas e cinqüenta mil pessoas, diante da chamada Casa Branca, em dia de semana. Nos funerais dos três mortos por um tanque, mais de meio milhão de pessoas compareceram.

De maneira geral a população ficou do lado vitorioso. Esse sentimento era notório na agitação das ruas, mas só depois que o golpe tinha sido derrotado. Durante o golpe, o sentimento do povo em Moscou era de apreensão, mas não houve participação ativa da grande massa na resistência democrática.

Brasil Revolucionário - Outro dia, num debate no Sindicato dos Jornalistas, com uma jovem jornalista do Izvéstia, eu perguntei a ela como se situava hoje a questão do socialismo na Rússia e como ela se posicionava em relação a isso. A resposta dela foi taxativa: “Nós enterramos o socialismo como sistema e como ideologia. Ele nunca mais vai ressurgir”.

JACOB GORENDER - Este é o pensamento de uma fração intelectual numerosa, da “intelligentsia” soviética de novo tipo, particularmente a mais jovem, descrente, hostil e avessa ao socialismo e ao marxismo. Eu penso o seguinte: a crítica aos sistemas políticos e econômicos do Leste Europeu, inclusive da União Soviética, já era feita pela esquerda do Ocidente há muito tempo. Eu, particularmente, não me sentia ligado à sobrevivência desses regimes políticos, ao menos desde a época do informe de Kruschov. Setores da esquerda marxista — trotskista e não trotskista — há muito tempo criticavam esses regimes. O que temos a constatar (e nos constrange e entristece) é que, ao serem derrubados os regimes burocráticos e repressivos, instalando-se um regime democrático, com eleições, liberdade de imprensa e de manifestação, a tendência política predominante nesses países vem sendo no sentido da restauração do capitalismo. Tudo isso é muito contraditório, mas na realidade é o que predomina. Isto foi o que surpreendeu a esquerda do Ocidente e nós precisamos estudar e explicar, pelo menos tentar explicar. Eu penso que, com a Glásnost, foi possível vir à tona, nos países do Leste europeu, a verdadeira história dos regimes instalados neles — seja através de uma revolução (como na União Soviética), seja pela imposição das tropas soviéticas (como em muitos países do Leste). Uma história cheia de tragédias, cheia de repressões massivas e perversas, que martirizaram grandes setores da população. Não se pode desconhecer isso. Do ponto de vista econômico, os regimes do socialismo real, embora tenham tido êxito em muitas coisas hoje obscurecidas, mas incontestáveis, estavam estagnados ao chegar aos anos oitenta: não conseguiram assimilar a nova revolução científico-tecnológica, estavam regredindo, as dificuldades econômicas e sociais aumentavam e a distância entre eles e os países capitalistas desenvolvidos se alargava. Diante disso, a população desses países reagiu pela identificação dos regimes totalitários stalinistas com o socialismo. Não adianta dizer hoje a um soviético, um homem comum, um intelectual da nova geração ou mesmo da mais antiga, que o sistema lá implantado nada tem a ver com Marx. Um marxista inglês, por exemplo, pode aceitar tal afirmação, mas os soviéticos não pensam assim, porque o que eles conheceram sempre foi apresentado pela propaganda massiva como sendo o socialismo de Marx e de Lênin. Não adianta dizer que era outra coisa: foi o que vivenciaram e é o que prevalece no pensamento deles.

Quem garante que, se fosse outro que não Stálin, não seria a mesma coisa? Então, hoje a aversão a Stálin se transferiu para Lênin e para Marx, para o próprio marxismo. Mesmo a palavra socialismo, que seria mais amena que comunismo, também não é aceita. Nesse particular, a União Soviética vive hoje um momento em que a hostilidade ao marxismo é mais acentuada do que em qualquer outro país do Leste e, talvez, do mundo inteiro.

Brasil Revolucionário - Jacob, você entrou em contato com vários intelectuais, com grupos marxistas de todos esses países, na União Soviética, na Tchecoslováquia, na Hungria. Como é que você situa, dentro desse contexto, o sentimento anticomunista que você detectou?

JACOB GORENDER - Hoje os marxistas são pouco numerosos nesses países. Mas são pessoas que acham que os acontecimentos ocorridos na União Soviética não derivam da doutrina de Marx e pensam que o método de Marx continua válido, embora, é claro, deva ser enriquecido, procurando-se explicar os fatos novos com uma visão sem clichês. Essas pessoas constituem hoje, no Leste, pequenos grupos. Em nenhum desses países há uma corrente marxista forte.

Observei algo mais expressivo, nesse sentido, junto ao Partido Comunista Tcheco, que ainda se chama Partido Comunista. Os eslovacos deram outro nome ao seu partido marxista. O Partido Comunista Tcheco continua apoiado na ideologia de Marx, tem pontos de vista bastante criativos e dispõe de prestígio. O Partido Comunista Tcheco e o eslovaco tiveram 14% dos votos nas eleições ao parlamento federal. Eles têm tantos deputados quanto o partido do ministro das Finanças, Vaclav Klaus. Mas eles não estão no governo, porque o governo de Havel, na Tchecoslováquia, é apoiado por uma coalisão de partidos da direita burguesa. Os dirigentes dos partidos conservadores reacionários, de direita, que dão apoio ao governo de Havel e Klaus. reconhecem o prestígio e a disciplina dos comunistas tchecos. O mesmo não se vê na Hungria, na Polônia, nem na União Soviética.

Brasil Revolucionário - Quais as principais forças políticas organizadas e o que elas representam hoje na União Soviética?

JACOB GORENDER - Na União Soviética, dá-se o mesmo fenômeno que nos outros países do Leste. Como se trata de um país bem maior e que foi afetado pelos turbulentos acontecimentos recentes, isso é ainda mais agudo. Existe enorme fragmentação das forças políticas: quase incontáveis grupos, correntes e organizações que têm ou não o nome de partido. Na Polônia, informaram-me que há cento e cinco organizações políticas e nenhuma delas se chama partido. Partido, na Polônia, é uma palavra depreciada. Na União Soviética, há social-democratas dispersos em vários movimentos e há um partido social-democrata propriamente dito. Existe o Movimento pelas Reformas Democráticas, do ex-ministro Shevardnaze e de Alexander Yakovlev. Há um partido monarquista, um partido trotskista, o Clube Bukharinista, enfim, o número de correntes é muito grande. Entre as quais, algumas francamente fascistas e anti- semitas.

Mas seja como for, o que se pode notar é que hoje quem domina a opinião pública na União Soviética são os políticos influenciados pela ideologia capitalista liberal, que advogam a economia de mercado nos moldes da economia capitalista e querem a privatização literal e integral. São essas as forças que hoje têm a supremacia, que detém os principais meios de comunicação: são as lideranças de maior prestígio, as alavancas do poder. Não existe uma oposição democrática socialista organizada com a mesma estatura. O PC finalizou a sua história tristemente, dissolvido pelo próprio secretário geral!

Brasil Revolucionário - Como se explica que um partido com quinze milhões de membros, duzentos e cinqüenta mil funcionários, uma formidável infra- estrutura material, tenha se mostrado inerte e passivo diante desses acontecimentos? Para usar as palavras de Marx: “Uma coisa sólida que se desmancha no ar”.

JACOB GORENDER - Na verdade, grande parte dos quinze milhões de membros do PCUS era gente inativa, pessoas que estavam “em cima do muro”. Muitos deles, perplexos, porque o PCUS se encontrava em franco processo de decadência e desprestígio. O Pravda, que vendia quinze milhões de exemplares, baixara sua venda a dois ou três milhões. Em geral, os leitores de jornais, na União Soviética, são assinantes, o que se vende em banca é uma parte menor. O número de assinaturas do Pravda tinha caído drasticamente.

Gorbachov ainda tentava salvar o PCUS e, por isso, nomeou um pessoal conservador para os cargos-chaves do governo, dos ministérios e de outros postos.

Estes conservadores acabaram sendo os forjadores do golpe, que o depôs. Gorbachov ainda tentou lançar um projeto de programa de tipo moderninho, tendendo para a social-democracia, e convocou um congresso extraordinário para outubro. Nada disso adiantou. Ele próprio, quando voltou da Criméia, já libertado, se defrontou, nas primeiras aparições públicas, diante dos jornalistas e do Parlamento russo, com ataques violentos ao PCUS. Defendeu o Partido, defendeu o socialismo, embora como idéia e não como realidade. Também não se mostrou enérgico diante do ato de Iéltsin, que já tinha fechado a sede do Comitê Central do PCUS. Gorbachov apenas advertiu Iéltsin: “Você precisa ter calma”. Mas, diante dos ataques e do fato de que a direção do PCUS nada fez enquanto ele esteve preso, acabou cedendo. Não há provas, na minha opinião, de que o Comitê Central, enquanto entidade, tenha apoiado o golpe, mas muitos elementos do CC devem ter apoiado ou não tomaram nenhuma posição contra o golpe. Então, que partido é esse? Que vanguarda é essa? Todos os integrantes do Comitê de Emergência eram membros do PCUS, inclusive do Comitê Central. Isso gerou, de fato, uma hostilidade acentuada em relação ao PCUS. O que Iéltsin aproveitou para desferir um golpe mortal. O próprio Gorbachov chegou à conclusão, na sexta-feira (o golpe foi na madrugada de segunda), de que o seu partido não tinha mais salvação e ele próprio se declarou desobrigado das funções de Secretário-Geral e dissolveu o Comitê Central. Depois, como presidente da URSS, decretou a dissolução do PCUS e a transferência dos bens do Partido para o Estado. Assim, de maneira tão inglória, acabou o partido que tomou o poder em 1917, e que, em certo momento, foi a organização política mais poderosa do mundo.

No quadro das forças políticas, não se pode deixar de observar dois aspectos. Por um lado, não há hoje na URSS uma grande força que represente os interesses dos operários, dos trabalhadores em geral. Embora eu tenha ouvido na televisão soviética a notícia da criação do chamado Partido do Trabalho. A imprensa é completamente omissa com relação a esse partido e não se sabe qual é a sua verdadeira força. Seriam anarco-sindicalistas e sindicalistas os criadores do novo partido. De qualquer modo, entre os trabalhadores há ativistas que estão organizando sindicatos independentes, há anarco-sindicalistas, pois a ideologia anti-estatista é generalizada. Num país em que, durante setenta anos, o Estado fundido ao Partido foi absolutamente dominante, esmagando a sociedade civil, é natural esse anti-estatismo. Lamentável é que o estatismo seja confundido com o socialismo e ambos sejam combatidos pelos operários como sendo a mesma coisa.

Ente os operários, não há dúvida de que, quando o processo de privatização das empresas estatais deslanchar de verdade, passando as empresas às mãos de especuladores ou do capital estrangeiro, eu creio que isso vei gerar grandes contradições. Porque, entre os trabalhadores, há o sentimento de que aquelas empresas são fruto do trabalho deles e que eles não podem ficar alheios à sua propriedade. Estas empresas não podem, sem mais nem menos, ser entregues à propriedade privada, despojando os operários do fruto do seu trabalho. Esse sentimento está vivo em todos os países do Leste, mas me parece insuficiente para gerar uma oposição eficaz à onda pró-capitalismo.

Brasil Revolucionário - Jacob, nesse sentido, tem um pouco de ressonância até na imprensa brasileira a reação dos mineiros soviéticos, que possuem uma organização forte e me parece que foi a primeira categoria a criar um sindicato independente. É um pessoal que superou há muito tempo sua condição de miséria. É a categoria mais bem paga na União Soviética e um pessoal muito ativo, muitas greves foram vitoriosas. Em função de todas essas transformações, como é que eles se situam?

JACOB GORENDER - Os mineiros são bem pagos, mas não adianta ter dinheiro na União Soviética, porque, em geral, não se tem o que comprar com rublos. (Com dólares, compra-se de tudo nas lojas especiais.) Não é o problema de como se situam os mineiros, somente. Os mineiros são mais concentrados em locais de trabalho, são mais organizados. Há também os trabalhadores da indústria automobilística e de outros setores, dentre os quais surgiram correntes que lutam pela autogestão, pela transferência das empresas à gestão dos próprios operários. Quando a privatização deslanchar, pode acontecer o que já se deu na Polônia e na Hungria. Nestes países, começaram a privatizar de maneira muito safada. Muitos dos próprios diretores das empresas, membros do Partido Comunista, passaram a se apropriar delas por vias escusas ou as venderam a preços muito baixos, como aconteceu na Hungria, o que suscitou protestos. O governo se viu obrigado a parar o processo de privatização ou, pelo menos, colocá-lo em ordem e satisfazer a opinião dos operários. Em todos esses países, a questão da privatização não está resolvida e é extremamente difícil, porque são grandes empresas, muitas delas obsoletas ou mal geridas. É uma ilusão pensar que o capital transnacional, japonês, norte- americano ou europeu ocidental, compre todas elas. Só se interessam por algumas, como forma de reserva de mercado ou porque são mais evoluídas. Sem privatização geral, a economia não tem como se tomar economia de mercado, no sentido estrito. Hoje, o máximo de privatização fica entre 15 e 17% da economia. Quando ocorrer a privatização massiva aparecerão, sem dúvida, movimentos entre os operários exigindo que tenham parte na gestão das empresas e que muitas delas passem para suas mãos.

Por outro lado, como a crise econômica se agrava, particularmente na União Soviética e na Polônia, há campo para a demagogia populista de direita. O que não se pode desconhecer. Na União Soviética, há um demagogo chamado Jirinovsky, o qual, nas últimas eleições presidenciais da Rússia, teve inesperadamente sete milhões de votos. Ele continua na ativa. Iéltsin hoje é governo, já não é oposição. Se a economia despencar ainda mais, se a situação, que já era muito grave quando lá estive, se tomar ainda pior do ponto de vista do abastecimento, dos preços e de tudo mais, é evidente que o prestígio de Iéltsin também começará a cair, favorecendo soluções de tipo fasccistóide. Na Polônia, nós vimos que o aventureiro Timinsky, um polonês rico que vivia no exterior, chegou lá e derrotou o primeiro-ministro. Timinsky continua fazendo política na Polônia. Enquanto isto, é visível a queda do prestígio de Lech Walesa. É um quadro político muito rico de surpresas.

Brasil Revolucionário - Jacob mostrou a situação da Polônia. Vou colocar uma questão em relação a isso. Quando surgiu o movimento Solidariedade, amplos setores da esquerda, a nível internacional, até no Brasil, depositaram nele grandes esperanças. Os agrupamentos trotskistas, por exemplo, acreditavam que ele era um movimento igualitarista e que retomava o sentimento socialista da classe operária. O Solidariedade seria o germe de um novo partido revolucionário, que iria restaurar os princípios do verdadeiro socialismo. Como foi que você viu essa realidade da Polônia com relação ao Solidariedade? A que ele se restringe hoje e qual a esperança e a influência dele na massa como um todo?

JACOB GORENDER - Bem, o Solidariedade, fundado em 1980, quando ainda era vigente o antigo regime dirigido pelo Partido Operário Unificado Polonês — o partido comunista — constituía, na verdade, uma grande frente em que entravam desde elementos católicos conservadores de direita (como é o caso do Walesa) até elementos de posição não-marxista, mas ligados à causa da independência do movimento operário.

Na medida em que a situação avançou e se realizaram eleições, criaram-se partidos políticos (embora, como eu já disse, na Polônia não se usa o nome “partido”), e o Solidariedade começou a se fragmentar, porque cada um foi para seu lado. Não havia afinidade política entre todos. Walesa foi para a direita e se tornou presidente da República. Hoje, é apoiado pelas forças mais conservadoras, cujos representantes eu pude entrevistar e constatei que são pessoas pertencentes a forças anti-operárias e anti-camponesas. Por outro lado, o Solidariedade deu origem à União Democrática do ex-primeiro ministro Mazowiecki, a qual faz oposição moderada ao governo de Walesa. É uma social-democracia muito moderada. Fazem parte do atual Solidariedade Adam Mischnik e Iachek Kuron, que. na minha opinião, são liberais de esquerda. Eles não são direitistas como Walesa. São homens de esquerda, mas de modo nenhum marxistas, porque fizeram a sua trajetória política lutando contra o Partido, que se dizia marxista. Eles consideram o marxismo como totalitarismo. O Solidariedade hoje tem dois milhões de membros. Já teve dez milhões. Agora, na verdade, pretende ser apenas um sindicato. Quis voltar à sua condição anterior e original que era a de ser um sindicato. Mas, na realidade, faz política. O mais importante no Solidariedade é que expressa a tendência dos operários à auto-gestão. Ele levanta a bandeira de que as empresas do Estado devem ser entregues à gestão dos trabalhadores: argumentam que elas são fruto do trabalho dos operários. Elas não podem ser pura e simplesmente vendidas a qualquer pessoa, sem que os operários tenham algo a ver com essa história. Os operários não querem as empresas de graça, por ações doadas. Eles querem realmente arrendar ou comprar as empresas e geri-las de fato. O Solidariedade, com os intelectuais ligados ainda a ele, defende a auto-gestão da economia pelos próprios operários.

Brasil Revolucionário - Uma pergunta que implica certa avaliação externa: durante a década de 60 e mesmo avançando um pouco na de 70 — e inclusive você fala disso em seu novo livro "Perestróika” — discutiu-se muito sobre a natureza socialista da sociedade soviética e das chamadas democracias populares do Leste Europeu. Você mesmo se inseriu nesse tipo de discussão e participou dessa polêmica. Passado tanto tempo, você voltou a esses países. Como você vê essa questão em função de todos esses acontecimentos, de toda essa derrocada que ocorreu na União Soviética e no Leste Europeu? Era socialismo?

JACOB GORENDER - Eu praticamente coloquei esta questão a todas as pessoas de esquerda com quem falei. A definição do que havia lá é um dos grandes problemas teóricos que nós precisamos enfrentar. Há caracterizações das mais diversas: havia elementos de socialismo, aspirações, mas não ainda um socialismo definido. Era “capitalismo de Estado” (também outra definição), era “fascismo”. Os principais autores de um documento, o casal Raquitski(1) economistas soviéticos — afirmam que Stálin fez uma contra-revolução fascista e que agora ocorreria uma revolução democrático-burguesa. Eles acham que se houver capitalismo, não é mau; é melhor do que fascismo stalinista, contanto que o capitalismo seja democrático. Há também a definição de “socialismo totalitário”. As definições, como se vê, são muito variadas. Fala-se mesmo em aristocracia: havia uma aristocracia, que era a Nomenklatura, e os trabalhadores eram os servos. Isso tudo ainda precisa ser estudado. É um desafio ao pensamento marxista. De qualquer maneira, a minha opinião é de que houve uma fratura no sistema capitalista mundial com a Revolução de 1917, até chegar ao ápice, na minha opinião, com a vitória dos comunistas no Vietnã. Isso não foi capitalista, era anticapitalista, embora um anticapitalismo que não chegou ao florescimento socialista e, por isso mesmo, entrou em colapso, exigindo novo as- censo no futuro. A questão constitui um desafio ao pensamento marxista, é o que eu posso dizer.

Brasil Revolucionário - Qual a sua avaliação sobre a situação política e econômica de Cuba frente aos acontecimentos do Leste Europeu depois de sua recente viagem à Ilha?

JACOB GORENDER - Quando eu estive em Cuba em julho, antes de viajar ao Leste Europeu, pude constatar que a situação do país era extremamente difícil. Agora, parece que está se tornando pior ainda. Cuba tinha uma economia vinculada aos países do Leste Europeu. Com o desmoronamento dos regimes burocráticos, esses países se tornaram hostis a Cuba. Tornou-se aguda a escassez de petróleo, de equipamentos, de matérias-primas e peças de reposição, de vários tipos de alimentos.

A economia- cubana atravessa uma situação crítica, o que se reflete nas dificuldades pelas quais a população passa. A questão central é encontrar uma solução para os gravíssimos problemas econômicos. O socialismo propiciou ao povo cubano uma série de conquistas sociais e tem sólidas raízes na consciência popular. Mas essas vantagens podem desaparecer numa situação de desagregação da economia, em que muitas empresas deixam de funcionar e as pessoas passam a se alimentar mal, com a falta de gêneros essenciais. Nestas circunstâncias, toma-se impossível manter os serviços de saúde e de educação no nível elevado que tinham antes. São as grandes conquistas da Revolução Cubana que correm o risco de se deteriorar.

Mas, há mais de trinta anos, Cuba sofre implacável bloqueio econômico por parte dos Estados Unidos. Podemos considerar que o regime político não é adequado ao socialismo em Cuba, mas o fundamental, neste momento, é nossa solidariedade à Revolução Cubana e nosso protesto contra o bloqueio imperialista.

Brasil Revolucionário - Pelas próprias características da sociedade soviética, a Perestróica e a Glásnost, apesar das transformações que provocaram, ficaram restritas ao que se chamou de “revolução por cima”, comandada pelo setor moderno da burocracia. Nesse sentido, como é que você vê as novas contradições da sociedade soviética e as características da luta de classes na União Soviética?

JACOB GORENDER - Eu faria uma restrição quanto à palavra revolução. Ainda não estamos com suficiente conhecimento de toda essa realidade...

Brasil Revolucionário - Só complementando, já que esta será a última pergunta. A falta de liberdade e de organização política e sindical, durante longos anos, despolitizou a classe operária e os trabalhadores em geral. Isso dificultou uma compreensão mais profunda da tendência a restauração do capitalismo e de suas implicações negativas para a esmagadora maioria da população. Apesar disso, as conquistas e o nível de progresso alcançados não funcionarão como impulsionadores de uma resistência a essa tendência? Não poderão ajudar a criar condições para uma reorganização mais rápida de um projeto político socialista alternativo?

JACOB GORENDER - Isso é difícil prognosticar. Em todos esses países, é evidente que a ideologia igualitária do socialismo tem raízes na consciência dos operários. Não desapareceram de todo, ao menos na memória, certas vantagens que os operários conquistaram no regime socialista, do ponto de vista de previdência social, educação realmente difundida, assistência médica, pleno emprego. Embora boa parte disso fosse ilusório, tais vantagens se tomaram patrimônio dos trabalhadores.

Sobretudo com a aceleração da privatização das empresas, eu acredito que particularmente a tendência dos operários a considerar as empresas como fruto do seu próprio trabalho e a aspiração deles à autogestão das empresas vão gerar uma grande contradição. Será este o eixo da luta de classes nesses países. Se isso vai levar ao socialismo, eu não posso prognosticar, porque, por enquanto, os operários também não gostam da palavra socialismo, não têm uma concepção socialista e não existem grandes partidos que a defendam. Na Tchecoslováquia há, nesse sentido, um partido expressivo, mas não é grande. Em tais circunstâncias, não podemos pensar em socialismo como realidade, agora e no futuro próximo.

Não se trata de uma batalha perdida, nem no Leste, nem no Ocidente. O socialismo, ao contrário do que dizem, tem raízes muito vivas e o próprio capitalismo se encarregará de regar essas raízes com a água das contradições de classe e da luta de classes. Sem querer fazer profecias. afirmo que o socialismo reviverá como força de massas, tanto no Leste como no Ocidente.

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Notas de rodapé:

(1) Sobre autogestão operária na URSS, traduzido por Valdizar Pinto do Carmo e Paulo Bezerra, a ser publicado pela CUT. (retornar ao texto)

Fonte
Inclusão 26/02/2015