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O meu prezado José Lins, romancista José Lins do Rego, teve há dias, em artigo da imprensa vespertina, um grito de sinceridade, natural no homem que forjou o Ciclo da Cana-de-Açúcar e a figura inesquecível de Vitorino Papa-Rabo. Esse grito deve ter ecoado — longe — e é inútil mencionar tudo quanto encerra o artigo, certamente lido com amargura e raiva por muito político vaidoso.
É a confissão espontânea de que o Partido a que se filia o escritor ruiu fragorosamente por ser uma confusa mistura de paixões e interesses diversos. Andou às "tontas", “sem contato com as massas” e, “num pleito livre, admirável espetáculo de civismo", perdeu em vinte e quatro horas todos os sonhos acariciados em longos meses de cegueira voluntária, cegueira que o autor de “Banguê ", depois dessa louvável franqueza, tenta inexplicavelmente prolongar.
Aí José Lins se embaraça em contradições. Afirma que só os comunistas têm um
“plano estabelecido, com palavras de ordem, firmeza de ação para determinar fins". "Esses homens são um bloco e rolam como um bloco sobre os fatos”.
Que devemos concluir? José Lins diz quatro vezes que essas forças batidas representam a democracia — asserção duvidosa — e conclui:
"or tudo isso, cada vez mais se faz urgente a fundação de um partido democrático que una o Brasil, que seja o verdadeiro amigo do povo, um complexo de ideias generosas, de compromissos com a dignidade humana, sem sectarismo, a bem de nossa terra e de nossa gente".
Reproduzi o período inteiro, a fim de notarmos a incongruência do nosso querido romancista.
Quem vai estruturar esse partido? Naturalmente os mesmos homens que se revelam agora incapazes, com certeza pouco dispostos a visitar favelas, pichar muros, viajar centenas de léguas para dizer quatro palavras a algumas dúzias de operários. Assevera José Lins que apesar de terem os "melhores propósitos, a consciência limpa", não conseguiram chegar às massas.
Como poderiam chegar? Não nos interessam os bons propósitos e a consciência limpa de certos privilegiados que rodam nos automóveis, infinitamente longe de nós. Basta que um desses cavalheiros, em momento de enjoo, se refira à canalha dos morros, à malta dos desocupados para se desvanecerem todos os bons propósitos. Vivem na superfície, reciprocam amabilidades, incham em demasia — e supõem que atrás deles há multidões emboscadas esperando milagres impossíveis. Nesse período citado integralmente, José Lins, depois de ter sido tão honesto, cai na demagogia e nas promessas vagas. Um partido que seja o verdadeiro amigo do povo, um complexo de ideias generosas, de compromissos com a dignidade humana. Linguagem diferente da linguagem ordinária do criador de “Fogo Morto". Palavras, nada mais.
Isso que José Lins deseja fundar, sem indicar os meios, já existe, segundo ele próprio declara:
"Só o Partido Comunista foi um órgão inteiriço em todo o território nacional."
Diabo! Não é suficiente? Ou será que não somos amigos do povo, não possuímos ideias generosas nem dignidade humana? José Lins não admite semelhante coisa. Observador por índole e por ofício, sabe perfeitamente isto, o único amigo do povo é o povo organizado; temos ideias bem claras, e as ideias generosas dos amigos da onça nos deixam de orelha em pé; a nossa dignidade é pouco mais ou menos igual à dos outros bichos que a humanidade produz.
Sinto discordar do meu velho amigo José Lins, grande cabeça e enorme coração. Discordo. Penso como Vitorino Papa-Rabo, notável sujeito que deixou de ser personagem de romance e a esta hora deve fazer discursos numa pequena célula remota, no interior da Paraíba.
Leia a apresentação deste texto feita por Clóvis Moura
Inclusão | 23/02/2016 |