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Primeira Edição: Avanti!, a. XXII, 13 ago. 1917 (artigo completamente censurado); Il Grido del Popolo, a. XXII, n. 682, 18 ago. 1917.
Fonte: https://movimentorevista.com.br/2020/04/o-relojoeiro/
Tradução: Alvaro Bianchi e Daniela Mussi
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Se fala muito de um antes e de um depois. Se almeja uma data fixa. Nós não acreditamos que exista tal data, e apenas nós pensamos assim, pois nosso pensamento busca sempre na vida um modo de ser perenemente aderente às nossas ideias. Entre a mesmice da vida social cotidiana e a vida de exceção das revoluções não existe uma diferença qualitativa, mas sim uma diferença quantitativa. Algo a mais ou a menos de determinados fatores. As energias sociais ativas são a aparência sensível e humana de determinados programas, de certas ideias: em tempos normais existe um equilíbrio de forças cuja instabilidade não possui oscilações visíveis; quanto mais essas oscilações se mostram irregulares e caprichosas, contudo, mais se diz que os tempos estão calamitosos. Quando o equilíbrio tende irresistivelmente a mudar, por sua vez, se admite que um momento de vida nova se abriu. Mas a novidade é quantitativa, não qualitativa.
Ocorreu uma escavação profunda na matéria social. Ela adquire hoje feição inteiramente metálica, um metal novo que possui um timbre, o nosso timbre. Mas esse fenômeno sempre aconteceu, pois não somos diferentes do passado, pois continuamos nosso ontem. Encontramo-nos nesse fenômeno: o resto está assustado. Essa é a nossa realidade, a nossa concepção, é nossa obra-prima histórica, pois finalmente os dois termos, concepção e realidade, aderem um ao outro extensivamente e não de forma fragmentária. A vida do pensamento passa a substituir a inércia mental, a indiferença: é a primeira das substituições revolucionárias. Uma nova atitude se forma: aquela de não temer o fato novo, primeiro porque pior do que está não é possível ficar, depois porque existe a convicção de que se pode melhorar.
Quando começou o processo de idealização do regime, teve início sua declaração de falência: ele perdeu a confiança instintiva e de rebanho dos indiferentes, pois fechou porteiras demais. Deixou entreaberta, contudo, uma outra porteira: a da vida, da boca do forno, da porta do armazém de grãos. Poderá fechá-la inteiramente? A dúvida angustiante se propaga nas longas filas de mulheres às cinco da manhã diante das padarias(1). Atinge a todos, mesmo os grupos mais humildes da passividade social: bate e sacode os pilares da vida. E a matéria se metaliza: todos vivem, todos se alimentam; as fontes da vida se dissecam, e a passividade se organiza como pensamento para se defender.
Por três anos, gozaram da confiança de uma pequena parte ativa da sociedade e disciplinaram externamente a imensa passividade social, os indiferentes. A outra parte ativa, que não sofre dessa exterioridade, não concedeu sua confiança, sua colaboração. Hoje mesmo a imensa passividade se organiza como pensamento, se disciplina, não segundo esquemas exteriores, mas segundo a necessidade de sua própria vida, de seu pensamento nascente. Não é preciso compromisso algum ou harmonia pré-estabelecida. Se, como Leibniz, comparamos os números dessa humanidade crescente aos relógios de uma relojoaria, é possível observar a mesma coisa: a harmonia pré-estabelecida, todos marcam a mesma hora, pensam sempre à mesma hora, sempre assediados pela mesma preocupação, e isso não significa que compartilhem entre si quaisquer vontades(2). O estranhamento é o relojoeiro que aciona todas as molas juntas, que imprime um movimento sincronizado a todos os ponteiros. O estranhamento é o relojoeiro que criou uma unidade social nova, com estímulos novos, não exteriores, mas interiores. Uma unidade social mais extensa que aquela que ontem existia determinada pela mesma causa exterior. Ontem o estranhamento era a relação de insatisfação entre um determinado pensamento político e econômico, e uma determinada realidade política e econômica, entre uma necessidade e uma desilusão; hoje a relação permanece a mesma, percebida por uma multidão, uma quase totalidade. E é a continuação do nosso ontem, pois a vida é sempre uma revolução, uma substituição de valores, de pessoas, de categorias, de classes. Os homens dão o nome de revolução às grandes revoluções, das quais participam o máximo número de indivíduos, que desloca um número maior de relações, que destrói todo um equilíbrio para substituí-lo por outro inteiro, orgânico. Nós somos diferentes dos demais porque concebemos a vida sempre como revolucionária e, por isso, amanhã não vamos dizer que é definitivo um mundo por nós realizado, mas deixaremos sempre aberto o caminho para algo melhor, harmonias superiores. Não seremos conservadores, nem mesmo sob o socialismo, mas queremos que o relógio da revolução não seja um fato mecânico, um estranhamento, e sim a audácia do pensamento que cria mitos sociais sempre mais elevados e luminosos.
Notas de rodapé:
(1) Nas primeiras semanas de agosto de 1917 a escassez de alimentos provocada pela guerra e pela especulação chegou a seu ápice em Turim. Entre os dias 7 e 10 de agosto muitas padarias suspenderam a produção por falta de farinha e longas filas se formaram. Em 22 de agosto uma insurreição popular teve lugar na cidade e só foi controlada, com violenta repressão, no dia 26. (retornar ao texto)
(2) Guido de Ruggiero selecionou e traduziu para o italiano, em 1912, uma coletânea de textos do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). A metáfora do relógio está presente em vários momentos da obra de Leibniz, p. ex.: “Tudo o que acontece no corpo do homem e de todos os animais é mecânico, exatamente como acontece em um relógio. A única diferença é a que deve existir entre uma máquina da invenção divina e a produção de um criador limitado, que é o homem”, Gottfried Wilhelm Leibniz, Opere varie: scelte e tradotte da Guido De Ruggiero (Bari, Laterza, 1912), p. 325. (retornar ao texto)