A careta de Gwynplaine

Antonio Gramsci

30 de agosto de 1921


Primeira Edição: L'Ordine Nuovo, 30 agosto 1921

Nota do tradutor: Gwynplaine é um personagem do romance de Victor Hugo ‘O homem que ri’ (L’homme que rit). Quando criança, o rosto de Gwynplaine foi mutilado e ficou parecendo a máscara de um palhaço para que ele pudesse de exibir em shows de horrores. Ele tinha a expressão de um sorriso grotesco e perpétuo.

Tradução: Elita de Medeiros - da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/gramsci/1921/08/gwynplaine.htm

HTML: Fernando Araújo.

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Cada vez que os políticos ordenam uma operação contra a classe trabalhadora, a primeira alegria (ou melhor, os primeiros a mostrar sinais externos de sua satisfação) não são os mandachuvas – não são os superintendentes da polícia ou os oficiais superiores da Guarda Real [Regia Guardia] e os Carabinieri – mas aqueles nos postos mais baixos dessas instituições.

Esses humildes agentes do Estado têm suas origens nas camadas mais atrasadas do proletariado. Eles são compelidos a se juntar à extrema pobreza, ou pela esperança de encontrar uma vida melhor depois de deixar para trás os campos ou as oficinas – movidos pela crença de que podem se tornar algo mais do que um pobre camponês banido para uma aldeia nos fundos do além, ou que um trabalhador exausto pela rotina diária da oficina.

Essas pessoas desprezam (depois de ter abandonado suas fileiras) a classe trabalhadora com uma fúria que supera toda a imaginação.

Durante uma pesquisa recente dos escritórios dA Nova Ordem (L'Ordine Nuovo), um deles (um detetive ou um Carabinieri à paisana, não tenho certeza) encontrou um revólver simples. “Aqui estão as armas!” ele gritou triunfalmente.

Ele ficou surpreso que, apesar de seus melhores esforços, não conseguiu encontrar nada mais comprometedor nos escritórios do nosso jornal.

Alguns minutos depois, outro policial, ouvindo uma troca de palavras entre o superintendente e um de nossos editores, exclamou: “Vamos acabar prendendo todo mundo! Vamos prender todos eles!” Com este pensamento, sua boca formou um sorriso tão perverso que surpreenderia qualquer pessoa que não estivesse acostumada com esse tipo de fraternidade humana.

Então entendi porque, nos quartéis e nas delegacias, os Carabinieri e os policiais se esforçam para superar uns aos outros nas surras de trabalhadores presos, e porque eles se alegram com a tortura.

É um ódio de longa data. Os agentes do estado atribuíram à manutenção da ordem pública ao seu redor, o desprezo que toda a classe trabalhadora tem por esses renegados – para aqueles que mudaram de lado, pelos mercenários que dedicam todas as suas energias para sufocar qualquer movimento do proletariado.

A esse desprezo ao proletariado soma-se o de grande parte da burguesia, que observam com olhos desconfiados esses miseráveis da polícia. Por quê? Porque esse é o destino de todos os mercenários: o desprezo e o ódio de seus inimigos são quase sempre acompanhados pelo desprezo e o ódio de seus mestres.

E isso é natural, é apenas humano que, na alma dessas pessoas mal pagas – que nem sempre conseguem o que precisam em uma vida cheia de dificuldades e privações, que se sentem cercados por uma parede que os separa de outros homens, que quase os expulsa da sociedade – o ódio germina e a crueldade cria raízes.

É um ódio contra aqueles que antes eram seus irmãos, seus colegas de trabalho – contra quem eles, agora, desprezam com mais intensidade por causa dessa experiência compartilhada. Eles encontram mil maneiras diferentes de fazer isso se manifestar com sua crueldade. Para essas pessoas, é uma alegria e um triunfo prender um trabalhador. Bater nesse trabalhador e maltratá-lo é divertido, e trancá-lo na prisão é um doce ato de vingança.

Apenas nos momentos em que eles têm um homem em suas garras – e sabem que podem escolher acabar com sua liberdade e bem-estar – eles se sentem possuidores de força e uma sensação de que são superiores a seus pares.

Esse prazer em apreender outro homem não se baseia na consciência de servir à lei, ou de defender a integridade do Estado. Ao invés disso, é uma satisfação pessoal, pequena e maldosa. É o prazer de poder dizer: “Eu sou mais forte que você!”.

Que outras alegrias eles podem experimentar? Quantos deles são capazes de constituir família sem que sua vida de dificuldades se torne uma vida de tribulações?

Não é verdade que, para muitos desses traidores que abandonaram o proletariado, a vida tem muito pouco a oferecer? No máximo, eles podem receber uma proposta humilde de um caminhante em busca de proteção.

Nós mesmos já os vimos há alguns dias, quando vieram à nossa redação. Muitos deles, julgando pelas suas roupas, poderiam facilmente ser confundidos com trabalhadores em extrema pobreza. Certamente eles eram humildes – mais que humildes – malvestidos. Não apenas para que eles pudessem se misturar com os trabalhadores a fim de espioná-los e bisbilhotar, mas também porque eles não podiam se vestir de outra forma.

Eles olham para os verdadeiros trabalhadores com ódio – aqueles que lutam contra a repressão e a fome, e que se esforçam ansiosamente por sua libertação. Mas eles também entendem e sentem que aqueles que lutam são sempre superiores àqueles que servem.

Quando esses agentes algemaram os jovens que defendiam o jornal do nosso partido – o papel da nossa classe, eles experimentaram uma vitória passageira e riram. Mas não foi uma risada espontânea e alegre. Foi a risada de quem se sente preso – pela raiva, pelo desprezo dos outros, por suas vidas e pelo destino de que eles são incapazes de escapar. Aquela risada foi a careta de Gwynplaine.


Inclusão: 30/11/2021