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Primeira Edição: Folha de São Paulo, 6/04/2013
Fonte: Fundação Dinarco Reis - https://fdinarcoreis.org.br/fdr/2013/04/08/marta-harnecker-fala-sobre-chavez/
Transcrição HTML: Fernando Araújo.
Folha – Qual é o legado de Chávez?
Marta Harnecker – O legado de Chávez tem uma dimensão mundial. Quando ele trinfou nas eleições presidenciais de 1998, o modelo capitalismo neoliberal estava fazendo água. Nesse momento, ele se viu perante o dilema de refundar o modelo capitalista neoliberal –certamente com mudanças, entre elas uma maior preocupação pelo social, mas movido pela mesma lógica de busca do lucro, ou avançar na construção de outro modelo.
Considero que seu principal legado é ter optado por esta segunda alternativa: construir uma sociedade não capitalista, mas fazer isso com as pessoas. Apesar da carga negativa que tinha a palavra socialismo, ele decidiu recuperá-la para designar a nova sociedade que queria construir. Mas esclarecendo de imediato que não se tratava de socialismo soviético, mas de um socialismo diferente. Por isso empregou o termo socialismo do século 21, para diferenciá-lo do socialismo do século 20. Advertiu especificamente que não se devia “cair nos erros do passado”, no “desvio stalinista”, que burocratizou o partido e terminou por eliminar o protagonismo popular. Rechaçou também o capitalismo de Estado, que acentuou a propriedade estatal e não a participação dos trabalhadores na gestão das empresas.
Folha – Como é esse socialismo?
Chávez concebeu o socialismo como uma nova existência coletiva, onde reina a igualdade, a liberdade, uma democracia verdadeira e profunda, onde o povo tenha um papel protagonista, um sistema econômico centrado no ser humano e não na ganância, uma cultura pluralista e anticonsumista, em que o ser tenha primazia sobre o ter.
O presidente venezuelano pensava, como [José Carlos] Mariátegui (1894-1930), que o socialismo do século 21 não poderia ser cópia em carbono, mas uma criação heroica. Por isso falava de um socialismo bolivariano, cristão, robinsoniano, indo-americano.
Folha – Em que ele se diferenciava?
A necessidade do protagonismo popular era um tema recorrente em seus discursos, algo que o distanciava de outras propostas de socialismo democrático. Estava convencido de que a participação, o protagonismo em todos os espaços é o que permite ao homem crescer, ganhar autoconfiança, ou seja, desenvolver-se humanamente.
Isso poderia ter ficado apenas como palavras se Chávez não tivesse promovido a criação de espaços adequados para que os processos participativos pudessem ocorrer plenamente. Por isso é tão importante a sua iniciativa de criar os conselhos comunais (espaços comunitários autogestionados), os conselhos de trabalhadores, estudantes, camponeses, fazendo uma verdadeira construção coletiva que deve plasmar-se numa nova forma de Estado descentralizado, cujas células fundamentais deveriam ser as comunas.
Construir com o povo significava para ele conquistar corações e mentes para o novo projeto de sociedade. E isso não se consegue através de pregações, senão com a prática: criando oportunidades para que o povo vá entendendo o projeto na medida em que vai sendo o seu construtor. Por isso, advertiu no seu primeiro “Aló” teórico sobre as comunas: “cuidado com o sectarismo, se existem pessoas que não participam da política, que não pertencem a nenhum partido, bem, não importa, sejam bem vindos. Digo mais: se vive por aí alguém da oposição, chamem essa pessoa. Que venha trabalhar e ser útil. A pátria é de todos. É preciso abrir espaços para eles e vocês verão que com a prática muita gente vai se transformando…”.
Folha – É muito utópico?
Chávez não era um sonhador como alguns poderiam pensar. Soube que as forças que se opõem à materialização desse projeto são enormemente poderosas. Recordemos que começou o seu mandato em meio ao mais absoluto isolamento internacional. Naquela época o neoliberalismo se impunha como o único modelo. A retaguarda socialista com que haviam contado tentativas revolucionárias anteriores havia desaparecido. Seu principal adversário, os EUA, haviam se transformado na primeira potência militar mundial sem nenhum contrapeso. Mas ser realista não significava cair na visão conservadora da política concebida como a arte do possível, senão trabalhar para fazer possível no futuro o que hoje parece impossível. E isso significava trabalhar para construir uma correlação de forças favorável às mudanças que se pretendia estabelecer. Em todos os anos de seu governo, ele trabalhou de forma magistral para atingir esse objetivo, entendendo que para construir força política não bastam acordos de cúpula, pois o principal é construir força social.
Consciente de que não poderia levar adiante uma revolução social de forma isolada na correlação de forças que existia quando assumiu o governo, dedicou parte importante de seus esforços para criar uma força internacional de apoio ao processo bolivariano que permitisse recuperar a soberania plena da Venezuela, escapando da dependência unilateral dos Estados Unidos. Nesse sentido, impulsionou processos de integração sul-americanos e caribenhos (rechaço da Alca, criação da Alba, Mercosul, Unasul, Banco do Sul, Telesur, cúpula dos povos etc). Ao mesmo tempo, impulsionou o fortalecimento da Opep e se aproximou de outros polos de poder mundial, como Índia, Rússia e China. Estreitou, ao mesmo tempo, os vínculos com os foros de nações emergentes, como o Grupo dos 15 de cooperação Sul-Sul e o Grupo dos 77, que reúne mais de 120 nações em desenvolvimento.
Folha – Apesar dos avanços sociais, por que Chávez não conseguiu liberar o país da dependência do petróleo?
De fato, Chávez não conseguiu liberar o país totalmente da dependência do petróleo e poderíamos concordar com a afirmação de que, com uma política econômica mais adequada, tivesse sido possível avançar mais nesse processo. Chávez tinha clara a necessidade de fazer isso e, em uma de suas últimas intervenções antes de morrer, insistiu na necessidade de alcançar esse objetivo. Mas é lógico que a tarefa prioritária no início de seu governo foi a resolução do problema da pobreza, para saldar a grande dívida social herdada.
Folha – Como a sra. avalia a gestão de Chávez?
Creio que sua gestão permitiu avançar no cumprimento dessa tarefa prioritária, algo que todos reconhecem. E o mais interessante é como o fez. Foi capaz de buscar caminhos inéditos. Para poder atender aos setores mais desamparados de uma forma rápida e eficiente, teve que criar instituições que lhe permitissem por em marcha os programas sociais. Teve que contornar o aparato burocrático estatal herdado e criar instituições fora desse aparato. Esse é o sentido das diferentes missões sociais que já são conhecidas.
Folha – Por exemplo?
O aparato de saúde herdado era incapaz de atender aos setores sociais mais desvalidos por duas razões: em primeiro lugar, porque a maioria dos médicos e enfermeiras não tinham disposição para ir a lugares longínquos, de difícil acesso. Preferiam trabalhar em seus confortáveis consultórios do centro da cidade. Em segundo lugar, não estavam preparados para dar atenção profissional necessária: não eram médicos integrais, mas apenas especialistas em alguma matéria. Constatando essa realidade, surgiu a ideia de criar a missão Bairro Adentro, que consistia em instalar consultórios nos morros, nos bairros populares e nos vilarejos rurais mais afastados. Enquanto se preparavam as futuras gerações de médicos venezuelanos para assumir essa tarefa, se solicitou a colaboração de médicos cubanos.
Chávez teve o grande mérito de recuperar o controle do petróleo para a Venezuela, eliminando a gerencia golpista e antinacional, o que lhe permitiu poder dispor de uma parte importante dos excedentes ali gerados para destiná-los às missões sociais, conseguindo diminuir drasticamente os níveis de pobreza.
Além disso, creio que conseguiu avançar brilhantemente no tema da soberania nacional e da integração continental, impulsionando a criação de uma série de iniciativas institucionais que chegaram para ficar.
Outro aspecto importante de sua gestão foi haver impulsionado a criação de toda uma estrutura legal para poder transitar pela via institucional até a construção de uma nova sociedade (constituição bolivariana e diferentes leis, entre elas muitas buscando consolidar legalmente a participação popular).
Folha – Quais foram as falhas?
Poderíamos falar de muitos outros êxitos de sua gestão, mas evidentemente houve também falhas. A principal delas, no meu entender, é o que foi reconhecido pelo próprio presidente em sua análise autocrítica após as eleições de outubro passado. Existiam as grandes linhas do plano de governo, mas faltou aprofundar nos detalhes. [Simón] Bolívar dizia que as batalhas se ganham ou se perdem pelos detalhes. Chávez repetiu muitas vezes essas palavras, mas não as pôs em prática. Além disso, faltou monitoramento e controle. E, apesar da legislação acerca do exercício da controladoria social, não foram criados os mecanismos adequados para que o povo organizado fosse o grande controlador da gestão do governo.
Outra falha de sua gestão foi o hipercentralismo. Quando ele encontrava algum problema em alguma localidade, sua tendência era sempre pensar que esse poderia se resolver em nível de governo central. Eu nunca estive de acordo com essa visão e me deu muita alegria ver que, em suas últimas intervenções, ele estava falando da importância da descentralização.
Mas, com todas as suas limitações, há um abismo entre a sua gestão e a dos governos que lhe precederam. A oposição insiste em enfatizar o que não foi feito e os chavistas respondem mostrando o que foi feito. Quem ganha com essa confrontação? Creio que a reação da população perante a morte de Chávez que todos puderam constatar através das imagens transmitidas mundialmente pela TV dá a uma resposta contundente a essa pergunta.
Folha – Como deve ser a Venezuela sem Chávez?
Penso que é necessário seguir materializando passo a passo as suas ideias. Mas agora fazendo sem a impaciência que o caráter do presidente impunha muitas vezes. Sem que fosse sua intenção, e perante a necessidade de ver resultados imediatos, Chávez não permitia que os processos iniciados tivessem tempo de maturação. Estou convencida que os processos democráticos de participação popular requerem tempo: tempo para discutir coletivamente, tempo para retificar os erros que necessariamente são cometidos. Mas, sobretudo, tempo para que as pessoas se desenvolvam e amadureçam.
Chávez deixou para o seu povo um enorme legado de ideias, de sinais concretos de como fazer as coisas, e, algo muito importante, suas autocríticas _que têm que ser tomadas em conta para corrigir os erros que ele detectou com grande honestidade durante a sua gestão.
Folha – É forte o enraizamento do chavismo?
É preciso distinguir claramente entre o enraizamento de Chávez na população e o do PSUV (o partido criado por Chávez para levar adiante a revolução). É indiscutível que Chávez conseguiu um enorme enraizamento. Mas outra coisa é o partido. Este tem um enraizamento muito menor. Em muitos de seus quadros de direção permanecem traços e estilos de trabalho do passado que precisam ser superados. É uma boa máquina eleitoral, mas está muito distante de ser o partido que Chávez anunciou quando tomou a iniciativa de criá-lo. E muito distante do partido que a revolução bolivariana precisa. Em vez de acumular funções e decisões, seus dirigentes deveriam ser os grandes promotores da participação popular. Recordemos que Chávez alertava que não deveriam cair no desvio que havia ocorrido na União Soviética, onde o partido anulava a criatividade popular.
Folha – Mas as organizações de massa são fortes e enraizadas?
Posso dizer que durante esses 14 anos de governo Chávez cresceu enormemente a organização popular houve amadurecimento. Mas também é preciso reconhecer que, até agora, muitas dessas organizações têm dependido demasiado do apoio do Estado. Falta maior autonomia. Mas, ultimamente, tenho visto com muito otimismo como isso está sendo obtido em muitas organizações, especialmente na construção de comunas e nos setores do movimento camponês.
Folha – Maduro seguirá os passos de Chávez?
Creio que Nicolás Maduro ou qualquer dirigente do PSUV que assuma o governo vai ter que seguir as linhas traçadas por Chávez. Porque só assim poderá contar com o apoio popular necessário para realizar um governo estável. Creio que ninguém vai se arriscar a perder seu apoio. Estou convencida de que o grande vigilante desse processo no futuro será o povo organizado.
Uma das coisas que o futuro substituto de Chávez não poderá fazer será governar de forma personalista. Creio que a necessidade de uma direção coletiva é evidente e tenho a impressão de que isso foi assimilado por grande parte dos dirigentes. Já estão atuando dessa maneira nesses últimos meses da enfermidade de Chávez.
Penso que nesse terreno a contribuição de Fidel deve ter sido muito importante. Ele entendeu muito bem que a chave do êxito de uma revolução nas portas do maior império do mundo era a unidade dos revolucionários e a unidade de todo o povo. Gosto de recordar que quando Fidel triunfou e o movimento que ele dirigia contava com o apoio imensamente majoritário da população, decidiu fazer um gesto extraordinário em prol da unidade: abandonar a bandeira do Movimento 26 de Julho e adotar a bandeira da revolução. E durante toda a sua vida Fidel tem sido um zeloso guardião dessa unidade.
Penso que as grandes linhas estão traçadas por Chávez e que o grande desafio da nova direção do processo será por em prática a um ritmo adequado, o que dependerá de muitos fatores, é claro. Nesse sentido, essa direção terá de ser capaz de explicar ao povo que não se pode esperar uma solução imediata de todos os problemas. Deverá realizar o que chamo de uma pedagogia dos limites, ou seja, deverá ser capaz de explicar os obstáculos que precisam ser derrubados para prosseguir aplicando essas linhas.
Folha – As estatizações devem ser aprofundadas?
Mais do que estatizar ou não estatizar –ação que dependerá de muitas circunstâncias–, um dos grandes desafios do futuro governo será tornar eficientes as empresas que hoje estão nas mãos do Estado. E entender que isso não se resolve apenas com conhecimento técnico, mas com participação real dos trabalhadores na gestão das empresas. Uma das ações do novo governo seria facilitar a preparação dos trabalhadores para que possam assumir responsavelmente essa tarefa.
Folha – A sra. considera possível a hipótese de conspiração na morte de Chávez, como insinuou o governo?
Não descartaria essa hipótese. A máquina infernal do país mais livre e democrático –entre aspas– do mundo se mantém intacta. Se não tiveram nenhuma restrição moral para matar ou deformar com napalm milhões de vietnamitas na sua guerra de libertação nacional, se bombardearam inumeráveis vezes cidades tão importantes para a vida da população civil, se jogaram pragas em Cuba sem se importar como elas afetariam as novas gerações, se sabemos que existem laboratórios onde se investiga como produzir substâncias químicas que causem efeitos mortíferos para a população, por que não pensar que algo pode estar sendo feito também para eliminar ou tratar de eliminar as novas lideranças emergentes no mundo?
Folha – Quais são suas impressões pessoais sobre Chávez?
Veja o que escrevi na apresentação de meu livro entrevista “Hugo Chávez Frías, um Homem, um Povo”, onde exponho as minhas primeiras impressões:
“Estava cheia de apreensões na minha primeira entrevista. Seria capaz de estar a altura dessa tarefa? Meu entrevistado compreenderia a crueza de algumas perguntas? Funcionaria bem o gravador? Bastou conhecê-lo e conversar por alguns minutos para que minhas preocupações se esvanecessem. Encontrei um homem sensível, simpático, autocrítico, reflexivo, com uma grande capacidade para escutar com atenção os comentários feitos. Apaixonado, com uma grande força interior. Me chamou especialmente atenção sua grande sensibilidade humana e sua genuína vocação popular. Adora suas filhas e filhos e é muito terno com eles. Não pode viver sem ter um contato direto e frequente com os setores populares mais humildes, onde sabe que reside sua maior força. Se sabe adorado pelo seu povo, mas quer reverter esse amor em organização e desenvolvimento autônomo. É um dirigente extraordinariamente humano. Todas essas virtudes não negam suas falhas. Ele mesmo reconhece que tem grandes dificuldades para trabalhar em equipe, perde facilmente a paciência, fere seus colaboradores, confia excessivamente em pessoas que não devia confiar, é incapaz de organizar sua agenda de forma racional, fala mais do que devia falar: diz toda a quando só poderia dizer uma parte”.