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Entre nós, nas traduções deste termo econômico, já faz algum tempo se tem aceitado uma que é “стоимость”.(3) Com ela se espera uma rigorosa separação entre o sentido econômico-político do termo, diferenciando-o dos aspectos éticos-morais e etc., da palavra “ценность”(4).
Entretanto, é justamente essa circunstância que nos obriga a tirar a conclusão de que essa versão da tradução é muito, mas muito desvantajosa a partir do ponto de vista semântico.
Em nenhuma das línguas europeias em que pensou e escreveu Marx, existe semelhante divórcio entre “ценность” e “стоимость”, e por ele a tradução russa frequentemente rasga relações semânticas essenciais, que sem qualquer dúvida teria a sua disposição Marx.
Enquanto que a tradução de “Wert”(5) como “стоимость” aproxima precisamente este conceito ao conceito de “цены”(6) (preço) – ou seja, “Preis”(7), já que no léxico da língua russa diferente do alemão, inglês, italiano e outros, “стоимость” deriva diretamente de “стоить”(8) no sentido exclusivo de “цены” (preço), e é neste plano que se opõe claramente a “ценность” (valor), como uma categoria mais ampla, que pode ser expressada não somente no preço, isto é, no dinheiro. Ao mercado capitalista é característica a metamorfose dos “цены” (preços) – a forma monetária do valor – em norma universal e suprema de expressão e medida do valor em geral, e não somente do valor da mercadoria.
A metamorfose da mercadoria na forma universal dos objetos se expressa em que a palavra “стоить” obtém sentido universal, sentido de monopólio no modo de expressão de “ценность” (valor), é o particular feito universal.(9)
Porém, a tradução russa cria a ideia de que o “ценность” (valor em geral) é um, e o “стоимость” (custos) é outro, cada um com raízes distintas.
Está aqui a metamorfose de “стоимость” (custos) em expressão monopolista de “ценность” (valor) na verdade ocultada por semelhante tradução.
Pode ser que apenas herdou este matiz justamente da correlação inversa dos termos: “Wert” como “ценность” (valor), e “Preis” como “стоимость” (custos), como variante do mercado da medida de “ценность” (valor).
O preço ou a forma monetária das mercadorias – tanto em geral como em todas as formas valor – se distingue de suas formas reais, palpáveis e corpóreas, e é por isso uma forma exclusivamente ideal ou representada(10). O valor do ferro, linho, algodão e demais, existe (embora seja invisível) nestas coisas mesmas; este se faz presente por meio de sua igualdade com o outro, mediante sua relação com o outro, o qual, por assim dizer, é somente como um duende que caminhava em suas cabeças. O detentor da mercadoria por isso tem que emprestar sua própria língua, ou pendurar etiquetas de papel para informar ao mundo ao redor sobre seus preços. Embora a expressão dos valores das mercadorias em ouro é ideal, igualmente convém a esta operação unicamente o ouro ideal ou puramente representado. Cada detentor de mercadorias sabe quão longe está de ter banhado em ouro suas mercadorias, ao conferir seus a seus valores a forma de preço ou forma dourada representada (forma ouro) e a isso inclusive não é necessário nem uma pitada de ouro real, para avaliar em ouro milhões de valores mercantis. Em sua função de medir o valor, o ouro, portanto, cumpre somente como ouro representado ou ideal. Essa circunstância engendrou as teorias mais desatinadas sobre o dinheiro. E enquanto a função de medir o valor é levada à prática unicamente por ouro representado, o preço depende inteiramente do material monetário real. O preço, quer dizer, a quantidade de trabalho humano que está encarnado, por exemplo, em uma tonelada de ferro, se expressa em certa porção representada da mercadoria monetária, que encarna em si aquela mesma quantidade de trabalho. Assim, ao olhar aquele e justamente aquele material, ouro, prata ou cobre, que presta serviço como medida de valor, o valor da tonelada de ferro encontra uma expressão de preço totalmente distinta ou se representará em quantidades distintas de ouro, prata ou cobre.
Avaliadas as mercadorias... todas são expressas na forma: a de mercadoria A = x de mercadoria ouro; b de mercadoria B = y de mercadoria ouro, c de mercadoria C = z de mercadoria ouro, e etc., onde a, b, c representam determinadas quantidades de diversas mercadorias A, B, C; x, y, z determinadas quantidades de ouro(11).
Então que na tradução, em primeiro lugar, há uma contradição lógico-formal inadmissível. Em uma frase se sustenta que o valor se manifesta somente na “representação” (da pessoa). E na frase seguinte, que este existe “nas coisas mesmas”, “nas cabeças das próprias mercadorias”.
(“[...] existe nessas próprias coisas; ele é representado por sua igualdade com o ouro, numa relação que só assombra no interior de suas cabeças. Por isso, a fim de informar seus preços ao mundo exterior, o detentor das mercadorias tem ou de passar a língua em suas cabeças, ou nelas fixar etiquetas.”(12))
Porém, este ainda não é o mal maior. A desgraça é que a tradução reduziu Marx a um berkeleiniano puro(13) e justamente ali, onde se lidava com uma categoria tão fundamental como é o valor e a forma de sua manifestação.
De acordo com o Marx traduzido, o “стоимость” (valor) e as formas de sua manifestação existem exclusivamente na representação da pessoa, exclusivamente na cabeça da pessoa, como fenômeno de sua imaginação, de sua fantasia.
Surge a pergunta, pode idear alguma coisa mais alheia ao conceito marxiano de стоимости(14) (valor)?
Na verdade, Marx demonstra justamente que o valor é uma categoria econômica objetiva, e não o fenômeno dentro da psique humana. Porém, o tradutor o declara categoria psíquica, um estado da representação humana, da imaginação.
E só porque para o tradutor – Skvortzov-Stiepanov – o “ideal” era simplesmente um sinônimo supérfluo do “psíquico”, “imaginário”. Porém, a questão era que o mecanicista Stiepanov compreendia o “ideal” de modo totalmente diferente de como entendia o materialista-dialético Karl Marx.
No original alemão não existe semelhante disparate, não existe nem sombra do mesmo. No texto alemão de O Capital lemos: “Der Preis, oder die Geldform der Waren [...] also nur idälle oder vorgestellte Form”(15).
Na tradução ao pé da letra, e não mecanicista-stiepanovista, isso significa: "é uma forma apenas ideal ou representada"(16).
“Representado” não significa aqui imaginado, “mentalmente-representado” como o traduziu Stiepanov.
“Representado” tem aqui um sentido totalmente objetivo. O sentido de que o ouro na realidade das relações econômicas – e não na cabeça ou na imaginação da pessoa – age como o representante do ferro, do linho e outras coisas mais.
O seu corpo material em si representa o corpo material de outra mercadoria, e não o seu próprio. Neste sentido, o ouro é aqui “ferro” ideal, “linho ideal” e assim por diante. E o linho é ouro ideal.
Aqui tropeçamos com um fato bastante típico e bastante infeliz, quando o tradutor, para satisfazer sua própria concepção errada (mecanicista) do “ideal” tergiversou o texto original de um modo tal que colocou sorrateiramente Marx em uma posição diametralmente oposta àquela que escreveu em alemão.
Marx escreve, que “em sua função de medida de valor, o ouro serve, portanto, como dinheiro puramente representado ou ideal(17)”(18), e para taxar o preço de milhões de valores mercantis, não é necessário nem uma só grama de ouro real, é necessário somente o papel e a cifra como ministro plenipotenciário deste ouro.
Porém Stiepanov-Skvortzov traduz: “em sua função de medida do valor o ouro a realiza como dinheiro mentalmente representado(19)”, como “dinheiro imaginário”.
Ele a todo momento inclui “mentalmente representado”, enquanto que Marx não fala de dinheiro “mentalmente representado”, e sim de dinheiro real representado já não no ouro, e sim em papel e a cifra sobre o papel, e somente depois como cifra imaginária.
Em outras palavras, em Marx se observa escrupulosamente aquela dialética ao longo da qual uma coisa tal, como o símbolo, o signo, na qualidade de representante do ouro real, por sua vez, funciona como representante do ferro ou do linho.
Em outras palavras, o problema do Ideal é estudado por Marx nos fatos desse processo, em cujo movimento uma coisa material se metamorfoseia para a pessoa em representante de outra coisa. E esse processo, entendido em si mesmo, não transcorre, não somente e não tanto, na imaginação (na representação) da pessoa, quanto – e acima de tudo – na realidade das relações econômicas. Na própria base da sociedade mercantil-capitalista, não na superestrutura sobre esta, e muito menos, unicamente na psique das pessoas.
Marx demonstra, como na realidade das relações econômicas se assume, na verdade, a idealização bastante real das coisas, sua metamorfose em um não perfeito ideal ou em representação de outras coisas materiais. Marx demonstra, como neste processo se engendra o símbolo, e o signo e a outras coisas mais.
Na tradução de Stiepanov toda essa dialética está escamoteada. Em Marx se observa como o ouro se constitui em representante do ferro e do linho, e mais, como o papel vem a ser representante do ouro, e mediante o mesmo, em representante do linho ou do ferro.
Aqui tudo isso se escamoteia e desaparece, em geral, o processo de metamorfose de uma coisa em representante de outra coisa, e mediando esta, de uma terceira coisa. E no lugar disso, na tradução figura o ato da representação mental, isto é, o ato imaginário, o ato puramente psíquico.
À primeira vista, essas pesquisas podem parecer escolástica supérflua.
Sim. O momento escolástico-formal existe aqui. E não é um pecado ocupar-se do mesmo. Pelo menos, para compreender fielmente o pensamento original de Marx, e não meter sorrateiramente em suas fórmulas qualquer outro sentido, imprópria destas.
Isso ocorre, na verdade, não somente com o conceito do “ideal”. A mesmíssima confusão se deu com o conceito de “Abstrato”.
Frequentemente se escreve que, por assim dizer, “essência e fenômeno”, “necessidade e causalidade” são categorias da dialética objetiva, mas eis que “o Abstrato e o Concreto” expressam em si as “categorias específicas do pensamento” ou da “dialética subjetiva”.
Em Marx, uma vez mais, não existe nada disso, nada desse estilo. “Trabalho abstrato” para ele não significa “trabalho mentalmente representado”. O indivíduo abstrato para ele é aquele que é unilateralmente desenvolvido, que é particular e parcial, e não o indivíduo “imaginável”(20).
E isso se deve a que nos acostumamos a identificar o conceito “abstrato” com a palavra “imaginável”, coisa que dá lugar a numerosos equívocos. Há muito tempo em nossa literatura, em geral, se tem evitado escrever justamente que a “ascensão do abstrato ao concreto” é o único método correto e o único possível de desenvolvimento dos conceitos em ciência.
Imediatamente começou a anátema, e a tese da necessidade de ascender do abstrato ao concreto se considerou “idealismo” e “hegelianismo”.
Começou a repreensão: e o que dizer da fórmula sobre a ascensão “da contemplação viva ao pensamento abstrato”?(21) Por acaso não há aqui uma divergência entre Marx e Lenin? Com coisas assim tropecei não só uma, nem somente duas vezes.
Porém, é necessário compreender o ideal rigorosamente e precisamente.
E seria interessante verificar se a tradução de Stiepanov-Skvortzov não é culpável, em particular, de que nossos economistas tão frequentemente confundam as categorias econômicas com as jurídicas e personifiquem suas descrições das inter-relações jurídicas, estabelecidas pela lei, como descrições da estrutura econômica real de nossa produção. Por exemplo, a declaração fiscal. Em qualquer livro leremos que esta é uma categoria da economia política do socialismo, embora esta seja, obviamente, uma categoria jurídica, na qual se representa de modo ideal a relação real (quer dizer, econômica) entre os elos de nossa produção...
Lenin diferenciava entre as relações materiais, quer dizer, econômicas, e as relações ideológicas, quer dizer, jurídicas, políticas etc. O segundo é a expressão “ideal” do primeiro.
Porém, uma vez que as relações jurídicas e políticas entre pessoas não são, não só e não tanto, relações psíquicas, quanto relações reais entre pessoas reais, daqui surge a confusão.
As relações ideológicas começam a tomar forma direta como relações reais, baseando-se unicamente em que estas existem na verdade aqui, e não ali, não “dentro da cabeça”, e sim fora da cabeça, no espaço real das relações mútuas e conscientes entre pessoas.
Notas de rodapé:
(1) [No original russo: ценность (tzennosti), достоинство (dostoinstvo), стоимость (stoimosti), значение (znachenie) – V.A.] (retornar ao texto)
(2) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)
(3) [стоимость (stoimost’): custos, custo, valor, preço – V.A.] (retornar ao texto)
(4) [ценность (tzennosti): valor, valia, preço – V.A.] (retornar ao texto)
(5) [Valor – M.S.] (retornar ao texto)
(6) [цены (tzenii): de valor, de preço – V.A.] (retornar ao texto)
(7) [Preço – M.S.] (retornar ao texto)
(8) [стоить (stoiti): custar, valer – V.A.] (retornar ao texto)
(9) [“A universalidade da categoria de valor é desse modo uma característica não só e não tanto do conceito, da abstração mental, como, em primeiro de tudo, do papel objetivo desempenhado pela forma mercadoria no surgimento do capitalismo.” (E. V. Ilienkov. A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx, capítulo 1, item 6). – M.S.] (retornar ao texto)
(10) [Na tradução em espanhol optou-se pelo termo figurada, constante da tradução em espanhol de O Capital realizada por Pedro Scaron. A tradução de O Capital realizada pela Boitempo (2013) utiliza o termo representada. – M.S.] (retornar ao texto)
(11) [Em toda essa passagem Ilienkov realiza paráfrases de expressões de Marx, o filósofo soviético costumava recorrer com frequência a este recurso, e neste caso específico todo o raciocínio se baseia em uma seção de O Capital, por esta causa achou-se conveniente cotejar as expressões com o original (Karl Marx. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 170-174). – V.A.] (retornar ao texto)
(12) Karl Marx. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 170. (retornar ao texto)
(13) [“Berkeley parte do princípio de que o homem só percebe diretamente suas ‘ideias’ (sensações), e chega à conclusão de que a existência das coisas reside em sua perceptibilidade.” (M. M. Rosental e P. F. Yudin. Diccionario Filosófico. Bógota: Ediciones Nacionales, 1985, p. 44) – Edithor] (retornar ao texto)
(14) [стоимости (stoimosti): custos, custo, valor, preço – M.S.] (retornar ao texto)
(15) Karl Marx. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Buch I: Der Produktionsprozeß des Kapitals. In: Karl Marx e Friedrich Engels. Werke. Band 23. Berlin: Institut Für Marxismus-Leninismus Beim Zk Der Sed, 1962, p. 110. (retornar ao texto)
(16) [Karl Marx. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 170 – M.S.] (retornar ao texto)
(17) [Em russo: “как представленные или идеальные деньги” (kak predstavlennyye ili ideal'nyye den'gi) – V.A.] (retornar ao texto)
(18) [Karl Marx. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 171 – M.S.] (retornar ao texto)
(19) [Em russso: “как мысленно-представляемые деньги” (kak myslenno-predstavlyayemyye den'gi) – V.A.] (retornar ao texto)
(20) [“’O abstrato’ nesse tipo de contexto, muito frequente em Marx, assume o significado do ‘simples’, pouco desenvolvido, unilateral, fragmentado, ‘puro’ (isto é, sem a complicação de qualquer deficiência deformadora). Não é preciso dizer que ‘o abstrato’ neste sentido pode ser uma característica objetiva dos fenômenos reais, e não somente dos fenômenos da consciência.” (E. V. Ilienkov. A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx, capítulo 1, item 3). – M.S.] (retornar ao texto)
(21) [“A característica peculiar e específica da assimilação (sendo distinto da mera familiaridade empírica com fatos) teórica é que cada abstração separada é formada dentro de um movimento geral de pesquisa em direção a uma concepção mais compreensiva e completa, isto é, concreta, do objeto.” (E. V. Ilienkov. A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx, capítulo 3, item 1). – M.S.] (retornar ao texto)
Inclusão | 16/06/2014 |