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Primeira Edição: Die Neue Zeit (Volume XXII, no. 4, 1903).
Fonte: https://www.marxists.org/archive/kautsky/1903/xx/int-work.htm
Tradução: Polo Comunista Luiz Carlos Prestes (PCLPC)
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Parte do próprio problema que mais uma vez inquieta agudamente nossa atenção é o antagonismo entre os intelectuais e o proletariado.
Meus colegas irão, em sua maioria, indignar-se que admito esse antagonismo. Porém ele existe realmente, e, como em outros casos, seria uma tática muito inadequada tentar lidar com esse fato ignorando-o.
Esse antagonismo é um antagonismo social, se relaciona a classes e não a indivíduo. Um intelectual individualmente, assim como um capitalista individualmente, pode se juntar ao proletariado em sua luta de classe. Quanto o faz, ele muda também o seu caráter. Não é deste tipo de intelectual, que ainda é uma exceção dentre seus iguais, de que iremos tratar nas linhas que seguem. A menos que indique de outro modo irei sempre usar a palavra intelectual para denominar o intelectual comum que toma o ponto de vista da sociedade burguesa e que é representante característico dos intelectuais como um todo, que se encontra em certo antagonismo com o proletariado.
Esse antagonismo difere, entretanto, do antagonismo entre trabalho e capital. Um intelectual não é um capitalista. Verdade, seu padrão de vida é burguês e deve mantê-lo assim se não quiser se tornar um indigente; mas, ao mesmo tempo, ele tem de vender o produto de seu trabalho, e frequentemente sua força de trabalho; e ele próprio com frequência se vê explorado e humilhado pelos capitalistas. Consequentemente o intelectual não se encontra em antagonismo econômico algum com o proletariado. Porém sua situação de vida e suas condições de trabalho não são proletárias, e isso dá origem a um certo antagonismo nos sentimentos e nas ideias.
Como indivíduo isolado o proletário é uma não-entidade. Sua força, seu progresso, suas esperanças e expectativas derivam inteiramente da organização, da ação sistemática em conjunto com seus camaradas. Ele se sente grande e forte quando é parte de um organismo grande e forte. O organismo é a principal coisa para ele; o indivíduo em comparação significa muito pouco. O proletário luta com a maior devoção como parte da massa anônima, sem esperar vantagem e glória pessoais, executando seu dever em qualquer posto designado a ele, com uma disciplina que permeia todos os seus sentimentos e pensamentos.
Um tanto diferente é o caso do intelectual. Ele não luta por meio da força, mas através de argumentos. Suas armas são seu conhecimento pessoal, sua habilidade pessoal e suas convicções pessoais. Logo, carta branca para estas parece ser para ele a condição do sucesso. É somente com dificuldade que ele se submete a servir como parte subordinada ao todo, e somente o faz por necessidade, não por inclinação. Ele reconhece a necessidade da disciplina somente para as massas, porém não para os poucos seletos. E, naturalmente, ele conta a si próprio dentre os últimos.
Além desse antagonismo em sentimento entre o intelectual e o proletário, há ainda outro antagonismo. O intelectual, armado com a educação geral de nosso tempo, concebe a si próprio como muito superior ao proletário. Até mesmo Engels escreve sobre a mistificação escolástica com a qual abordou os trabalhadores em sua juventude. Para o intelectual é muito fácil não reparar no proletário seu igual como um companheiro lutador, ao lado do qual tem de encontrar seu lugar no combate. Ao invés disso ele vê no proletário um baixo nível de desenvolvimento intelectual, o qual é tarefa do intelectual elevar. Ele vê no trabalhador não um camarada, mas um pupilo. O intelectual apega-se ao aforismo de Lassalle sobre a ligação entre a ciência e o proletariado, ligação que irá elevar a sociedade a um plano superior. Como defensores da ciência, os intelectuais vêm aos trabalhadores não para cooperar com eles como camaradas, mas como uma força externa especialmente amigável, oferecendo-os auxílio.
Para Lassalle, que cunhou o aforismo sobre a ciência e o proletariado, a ciência, como o Estado, encontra-se acima da luta de classes. Hoje sabemos isso como falso. Pois o Estado é o instrumento da classe dominante. E mais, a própria ciência se eleva acima da luta de classes somente na medida em que não trata das classes, isto é, somente na medida em que é uma ciência natural e não social. Um exame científico da sociedade produz uma conclusão inteiramente diferente quando a sociedade é observada do ponto de vista de uma classe, especialmente de um ponto de vista de uma classe que a antagonista àquela sociedade. Quando trazida ao proletariado pela classe capitalista, a ciência é invariavelmente adaptada para se adequar aos interesses capitalistas. O que o proletariado precisa é de um entendimento científico de sua própria posição na sociedade. Esse tipo de ciência um trabalhador não pode obter de modo oficial e socialmente aprovado. O proletário próprio deve desenvolver sua própria teoria. Por essa razão deve ele ser completamente autodidata, não importa se sua origem é acadêmica ou proletária. O objeto de estudo é a atividade do próprio proletariado, seu papel no processo de produção, seu papel na luta de classes. Somente desta atividade pode a teoria, a autoconsciência do proletariado, surgir.
A aliança da ciência com o trabalho e seu objetivo de salvar a humanidade, deve, portanto, ser entendido não no sentido no qual os acadêmicos transmitem ao povo o conhecimento que ganham na sala de aula burguesa, mas antes nesse sentido de que cada um de nossos co-lutadores, tanto acadêmicos como proletários, que são capazes de participar da atividade proletária, utilizem a luta comum, ou ao menos a investiguem, a fim de extrair conhecimento científico novo o qual por sua vez pode dar frutos para subsequente atividade proletária. Visto que a questão se coloca desse modo, é impossível conceber a ciência como sendo cedida ao proletariado ou uma aliança entre os dois como se fossem duas potências independentes. Essa ciência, a que pode contribuir para a emancipação do proletariado, pode ser desenvolvida somente pelo proletariado e através dele. O que os liberais trazem dos círculos científicos burgueses não pode servir para acelerar a luta por emancipação, mas frequentemente somente para retardá-la.
As observações que seguem são feitas a título de digressão de nosso tema principal. Porém, hoje, quando a questão dos intelectuais é de tal extrema importância, a digressão talvez seja de algum valor.
A filosofia de Nietzsche, com seu culto ao super homem, para o qual a satisfação de sua própria individualidade é tudo e a subordinação do indivíduo a uma grande meta social é tão vulgar quanto é desprezível, esta filosofia é a real filosofia do intelectual; e ela o torna totalmente inapto a participar na luta de classe do proletariado.
Depois de Nietzsche, o mais destacado porta-voz de uma filosofia baseada nos sentimentos do intelectual é Ibsen. O seu Doutor Stockmann (Um Inimigo do Povo) não é um socialista, como acreditam tantos, mas sim o tipo de intelectual que está fadado a entrar em conflito com o movimento proletário, e com qualquer movimento popular em geral, logo que tente trabalhar em seu interior. Pois a base do movimento proletário, como de todo movimento democrático, é o respeito para com a maioria dos camaradas. Um intelectual típico a la Stockmann considera uma “compacta maioria” como um monstro que deve ser derrubado.
Da diferença em sentimento entre o proletário e o intelectual, a qual notamos acima, um conflito pode facilmente surgir entre o intelectual e o partido quando o intelectual ingressa nele. Isso se aplica igualmente mesmo se ingressar no partido não faz surgir nenhuma dificuldade econômica para o intelectual, e mesmo sendo seu entendimento teórico do movimento adequado. Não somente os piores elementos, mas frequentemente homens de caráter esplêndido e devotados a suas convicções naufragaram, por esse motivo, no partido.
Por isso que todo intelectual deve examinar a si próprio conscienciosamente, antes de ingressar no partido. E é por isso que o partido deve examiná-lo para ver se ele pode se integrar à luta de classe do proletariado, se imergir nela como um simples soldado, sem se sentir coagido ou oprimido. Quem for capaz disso pode contribuir com valiosos serviços ao proletariado de acordo com seus talentos, e ganhar grande satisfação de sua atividade partidária. Quem for incapaz pode esperar grande fricção, decepção, conflitos, que não são vantajosos nem para ele nem para o partido.
Um exemplo ideal de um intelectual que rigorosamente assimilou os sentimentos do proletário, e que, embora um escritor brilhante, praticamente perdeu a maneira específica de um intelectual, que marchou alegremente nas fileiras, que trabalhou em qualquer posto designado a ele, que devotou-se sinceramente à nossa grande causa, e desprezou as lamúrias débeis sobre a supressão da individualidade da pessoa, como indivíduos treinados na filosofia de Nietzsche e Ibsen estão inclinados a fazer quando quer que aconteça de estarem em minoria — esse exemplo ideal de intelectual do qual o movimento necessita, foi Wilhelm Liebknecht. Podemos também mencionar Marx, que nuca se forçou a aparecer em primeiro plano, e cuja calorosa disciplina na Internacional, na qual ele frequentemente se achou em minoria, foi exemplar.
Colaboração |
Inclusão | 12/09/2018 |