Entrevista para Teoria e Debate

Leandro Konder

Abril de 1999


Fonte: Revista Teoria e Debate, Edição 209 - Junho/2021 - https://teoriaedebate.org.br/1999/05/01/leandro-konder/

HTML: Fernando Araújo.

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Leandro Konder é, desde os anos 60, um dos principais propagandistas do marxismo no Brasil. Filósofo, responsável pela introdução entre nós da obra de Lukács, autor de duas dezenas de livros, entre eles A derrota da dialética, Konder fala sobre sua obra e a situação do pensamento socialista hoje, nesta entrevista que contou com a participação e colaboração de Carlos Nelson Coutinho.

Como você vê hoje a situação do pensamento marxista como teoria revolucionária?

A primeira constatação, melancólica, é a de que qualquer idéia que tenha um conteúdo revolucionário enfrenta hoje uma resistência muito grande, uma oposição difusa na sociedade e na cultura, um ambiente de muito ceticismo e desânimo. Tenho conversado muito com jovens e é curioso e perturbador perceber o quanto eles são pouco receptivos aos valores ligados à tradição do pensamento revolucionário. Revolução não está com nada! Estamos vivendo uma época na qual a perspectiva da revolução se tornou tênue, mas tudo indica que futuramente a idéia de revolução voltará a contar com algum conteúdo suficientemente forte para mexer com a cabeça das pessoas. Não podemos nos basear nos critérios impostos pelas circunstâncias de momento, no Brasil e no mundo.É interessante que, de todos os autores representativos do pensamento revolucionário, é Marx quem demonstra a vitalidade mais constante, que atravessa épocas e continua mexendo com as pessoas. Outros autores perdem influência, mas Marx mantém a sua. Vejo nisso uma confirmação da idéia de que Marx é o interlocutor fundamental que encontramos em nosso caminho toda vez que retomamos a discussão sobre a transformação da sociedade na perspectiva da revolução.

Não creio que temos saída para essa situação no plano puramente teórico. O próprio Marx ensina que existem problemas que não têm solução nesse plano. Dependemos de um trabalho político, de arregimentação, mobilização e conscientização dos setores majoritários da sociedade. Na medida que esse trabalho produzir resultados, serão criadas condições mais favoráveis para superarmos também os impasses teóricos que não estamos conseguindo resolver.

Quais são esses impasses teóricos?

Tendemos a recorrer ao velho arsenal, que tem sua força, mas tem seus limites. E esses limites estão se mostrando maiores do que supúnhamos. Muita gente, diante dessa constatação, deserta, eu diria. Se queremos continuar, não podemos nos limitar a repropor os velhos conceitos. Temos, de alguma forma, que dialogar com as matrizes de novos conceitos que ainda não estão elaborados e participar desta elaboração. Há uma certa timidez teórica da nossa parte, que está ligada às angústias do impasse. Mas o impasse está na nossa incapacidade momentânea de superar os limites da nossa aparelhagem conceitual. Não digo que devamos abandonar essa aparelhagem, mas não podemos nos apoiar mais exclusivamente nela. E há uma dificuldade visível para irmos além dela sem trair seu espírito, que queremos manter vivo.

Há uma idéia, proposta pelo Carlos Nelson Coutinho há alguns anos, da democracia como valor universal, que teve um mérito histórico: ter colocado a necessidade de aprofundarmos a discussão do que para nós é a democracia. Acho que, por um lado, as pessoas fizeram uma leitura que comprometia o aprofundamento desta reflexão, com critérios herdados de uma tradição liberal. E, por outro, houve um recuo da nossa parte em relação ao aprofundamento da discussão em torno de determinados aspectos da questão democrática no mundo de hoje, como, por exemplo, os relativos à mídia e aos mecanismos formadores e deformadores da opinião pública, dificuldades ligadas às condições do funcionamento da indústria cultural. E nós, de certa forma, só podemos defender com maior credibilidade nossos valores na ação política se dominarmos muito melhor os problemas que surgem com essa mudança cultural característica do final do século XX. Tendemos a fazer análises que repetem formulações da primeira metade do século.

Sem excluir a hipótese de estarmos superestimando a cultura, acho que se impõe a nós o reconhecimento de que ela se tornou um elemento extremamente complicador da nossa análise política. A cultura se tornou um campo de batalha muito diversificado, que nos propõe problemas que não estamos conseguindo dominar suficientemente.

Essa insuficiência do nosso arsenal talvez seja um dos fatores que precisam ser levados em conta no certo êxito do pós-moderno. Ele ocupa um espaço que não conseguimos preencher. Talvez haja alguma razoabilidade, não nas propostas e na direção do pensamento dos representantes da perspectiva pós-moderna, mas na sensibilidade com que percebem determinadas questões, que eles muitas vezes resolvem mal, mas que ainda não chegamos a enfrentar de forma adequada.

Alguns desses problemas talvez sejam, em boa parte, pseudoproblemas ou problemas reais muito desfocados. Mas tenho a impressão de que algumas das inquietações pós-modernas são muito instigantes. E o pensamento marxista deveria ter mais audácia na discussão dessas questões. Um sinal disto está no sucesso da obra do Fredric Jameson, um marxista muito interessado e até bastante simpático ao pós-modernismo. Acho sua obra muito irregular mas, quando me defronto com alguns insights estimulantes deste autor, pergunto-me se não estamos atrasados em relação ao que ele está fazendo. Acho que o fenômeno Jameson é sintomático e precisa ser encarado mais seriamente.

No centro desse debate está o problema do universal e da alteridade. Em que medida o marxismo conseguiria hoje apresentar um projeto de transformação social e de construção de outra civilização de caráter universal, incorporando o conjunto das aspirações dos explorados e oprimidos? Os pós-modernos fazem disso o alvo fundamental do seu ataque...

Sem dúvida, e sabem onde batem. Eles nos agridem nos pontos em que somos mais sensíveis. É muito difícil pressupormos hoje uma competência intrínseca para o pensamento mais universal. Nosso desafio consiste justamente em demonstrar essa capacidade para os outros e para nós mesmos. O desafio da universalidade está colocado e tem que ser enfrentado em termos que nos permitam mostrar que podemos incorporar a enorme riqueza da diversidade. Trabalhar em condições realmente multiculturais. Na história política do marxismo ocorreu uma diversificação que só foi possível na medida que houve também uma certa abertura, teórica e política, para o multiculturalismo. O marxismo teve influência em contextos culturais muito diversos porque sabia assimilar alguma coisa desses contextos. Mas isso não foi trabalhado no plano teórico de maneira conseqüente. No plano mais ambicioso da teoria, o filosófico, ficou faltando uma complementação até eventualmente corretiva desse trabalho e desse pensamento políticos. Esse é, no plano filosófico, nosso principal desafio. Na medida que consigamos enfrentar o desafio de uma universalidade capaz de se abrir para o multiculturalismo, nos capacitaremos também para encaminhar soluções para os problemas que surgem no plano dos desdobramentos surpreendentes e perturbadores da indústria cultural e da criação de meios de manipulação da opinião pública por intermédio da mídia. Há uma ligação entre os dois desafios.

Mas temos, cada vez mais, que trabalhar sobre o terreno que a recomposição do capitalismo em bases neoliberais está criando e, portanto, em uma situação na qual a referência de universalidade posta é a mercantil. A colocação dessas referências positivas hoje em dia não pode ser apresentada como um desdobramento natural das contradições da sociedade capitalista.

Sim, mas ao mesmo tempo, toda vez que nos defrontamos com manifestações de insatisfação, resistência e oposição à dinâmica contaminada com a mercantilização generalizada, temos um combustível que reanima as nossas esperanças. Isso mostra que essa globalização, para usar a palavra da moda, que envolve com uma lógica mercantil toda a realidade social em quase todos os países do mundo, não elimina manifestações de uma oposição que brota das suas próprias contradições, mesmo que não as dominemos no plano teórico. Mesmo que não tenhamos um instrumental adequado para pensar essas contradições, elas existem e estão se manifestando.

Revoltas éticas são sempre sintomáticas. Elas estão sempre dentro dos limites do capitalismo e nem por isso deixam de aparecer e proliferar à nossa volta. Nesse sentido, nossa solidão, que é dolorosa, não é desesperadora. O que vemos em volta é uma vida que continua fermentando, são possibilidades novas, energias despontando que nos animam. Não vejo uma situação desanimadora.

Sua preocupação atual com os pensadores do socialismo utópico está relacionada com a busca de referências positivas para esses atores em revolta?

Essa revalorização da utopia pode dar a idéia de um caminho que conduz a procedimentos utópicos, do socialismo científico ao socialismo utópico. A tradução da utopia diretamente em programa político é sempre problemática. O que existe na utopia que precisa ser resgatado e que explica por que ela se expressa literariamente com tanto vigor em alguns momentos é uma certa radicalidade de insatisfação. Não estou satisfeito com o presente e sonho com uma realidade que poderia ser imaginada no futuro ou numa situação geograficamente distante ou em outro lugar pensável. Esse não-lugar funciona como uma imagem que estimula a abertura do meu pensamento para novas possibilidades. Amplio o espaço do possível, do pensável. O espírito da utopia tem, neste sentido, uma função importante, sobretudo em momentos como o atual, em que não temos condições para encaminhar grandes ações transformadoras. Precisamos recuperar o fermento de inquietação radical, para o qual a utopia traz a sua contribuição.

Em vez de esquecermos os utopistas como expressões de uma perspectiva superada, de fantasias ingênuas, dissipadas pela cientificidade e pelo rigor da perspectiva de Marx, acho que podemos revisitar essa gente. Suas fantasias traziam determinadas sugestões que foram abandonadas cedo demais. Quando, por exemplo, Fourier – que não é propriamente um modelo de equilíbrio psicológico ou de sensatez teórica – diz que a Revolução Francesa não teve coragem de mexer na legislação sobre a família e que sem modificá-la não conseguimos modificar a sociedade, ele faz uma sugestão que Marx foi levado a deixar de lado. Mas hoje somos chamados a retomá-la. A família mudou demais. E uma proposta política socialista autêntica, revolucionária, não pode deixar também de enfrentar o desafio de pensar qual será a função e que forma poderá assumir a família numa sociedade futura. A releitura de Fourier pode ser feita hoje com um espírito diferente daquele com que os contemporâneos de Marx a fizeram. Revisito Fourier com esse espírito. Como revisitei Flora Tristán com a idéia de que a situação da mulher no mundo mudou tanto que encontramos em sua obra alguns estímulos para pensar a incorporação na nossa proposta revolucionária de antigas preocupações das mulheres que aderiram ao primeiro socialismo.

Temos hoje movimentos sociais com expressão política que colocam questões como a relação com o meio ambiente, os problemas da sexualidade, a crítica ao eurocentrismo e ao etnocentrismo. O horizonte utópico está colocado como um elemento de instigação permanente. Cada época tem as suas utopias e hoje as aspirações utópicas presentes são mais ambiciosas do que foram em qualquer outro momento da história. Isso coloca o desafio de fazer com que essas aspirações possam enriquecer o projeto de sociedade que apresentamos?

Tenho uma dúvida com relação ao que você diz. A minha dúvida é se não devemos combinar isso com uma certa atenção para a historicidade da utopia. A utopia sendo uma tendência, uma expressão permanente, também é histórica. E também varia muito não só nas formas, mas na intensidade e na sua importância concreta.

Precisamos hoje de uma valorização mais enfática do espírito da utopia em função da gravidade da crise que nos foi imposta. Na medida que chegamos a essa situação e percebemos que estamos acuados, o espírito da utopia é um manancial no qual vamos beber. Mas, ao mesmo tempo, exatamente na hora em que a utopia tem maior receptividade no nosso meio, precisamos ter o cuidado para não traduzi-la diretamente num programa político.

Temos que encontrar na liberdade de fantasia, que caracteriza o espírito da utopia, elementos importantes para enfrentar esses desafios políticos que você mencionou, sem nos basearmos num programa utópico. Não podemos propor uma análise científica acabada dos problemas da sexualidade, da família, do multiculturalismo, da globalização. Na verdade, precisaríamos promover um avanço do conhecimento científico em todas essas áreas e aí tentar uma síntese. Mas isso está além das nossas forças reais no momento. Para poder chegar lá, temos que desenvolver um grande esforço, que pode se beneficiar do resgate da audácia imaginativa dos utopistas do passado.

Isso nos remete para a política no sentido clássico de construção de vontades coletivas, acumulação de forças, definição de estratégias. Sua obra tem enfatizado mais a dimensão cultural, mas você também tem incursões nesse terreno mais diretamente político. Por exemplo, um livro sobre o fascismo...

Uma vez uma pessoa que nos criticava – a mim e a Carlos Nelson – disse: "como eles acham que tudo está ligado a tudo, eles falam sobre tudo. Quando falam de crítica literária falam também de história, de filosofia". E nós, fazendo um balanço das nossas preocupações, concluímos que essa crítica era justa. Realmente achamos que tudo está ligado a tudo. As coisas estão, então, ligadas também à política. E a ida à política é uma espécie de conseqüência das próprias convicções filosóficas, dos princípios que levantamos.

Na época, estava na Alemanha, exilado, participando de um seminário sobre fascismo. Comecei a juntar material, conversei com Max da Costa Santos, que era editor, e ele propôs que eu fizesse um livrinho sobre fascismo, que era uma maneira de, indiretamente, discutir a situação criada no Brasil com a ditadura militar.

A crítica que classificava a ditadura como fascista não tinha fundamentação filosófica sólida, mas produzia um efeito político interessante, porque mobilizava amplos setores da sociedade contra a ditadura. Minha idéia era que o fascismo foi uma das expressões mais significativas, mas nunca a única, de uma radicalização da perspectiva da extrema-direita. O espírito do fascismo podia assumir formas completamente diferentes daquelas que o fascismo clássico apresentou com Hitler e Mussolini.

O fascismo era a realização de um programa de eliminação dos espaços de questionamento, da diversidade, das alternativas, das opções. O que eu não discuti – coisa que hoje seria necessária – foi o fenômeno do estreitamento das opções e das alternativas nos quadros de uma democracia liberal, que está acontecendo sem necessidade de que a direita recorra às formas clássicas do fascismo. O que temos hoje não é fascismo, mas é algo profundamente doente, menos drástico na sua aparência imediata, mas por isso mesmo talvez até mais sutil e perigoso. Porque começa a contar com um certo consenso passivo, uma certa aceitação, por parte de amplos setores, deste processo de liquidação ou sufoco das liberdades. Uma reação contra esse processo é mais difícil. Temos que mobilizar setores que se mostram surdos às nossas denúncias, porque são seduzidos e iludidos pela aparência imediata das instituições liberais.

Não é uma eliminação pura e simples, ostensiva, do espaço das alternativas. É um estreitamento muito sutil. No âmbito internacional dessa ação totalitária, por intermédio da globalização, temos um estrangulamento de determinadas realidades, que não deixam de existir e se expressam por contradições ambíguas. Não são necessariamente formas de oposição progressista ao processo de globalização. Muitas vezes são expressões impregnadas de conservadorismo, que têm a ver com o passado e não com o futuro. Expressões de um certo saudosismo, de uma sobrevivência nostálgica de velhos valores. Mas, de qualquer maneira, compõem um quadro muito tenso, que aparece, por exemplo, em conflitos religiosos e étnicos, nos quais o conteúdo político é submetido a formas mais ou menos arcaicas. É o que se vê, por exemplo, no crescimento do islamismo. Esses movimentos expressam a reação contra essa globalização conduzida por uma lógica totalitária. Embora não tenham conteúdo progressista, legitimam-se pela oposição a algo que é um progresso perverso, isto é, um pseudoprogresso.

Já que entramos no tema do progresso, é bom lembrar que você foi um dos introdutores no Brasil da obra de Walter Benjamin. Em que medida ela pode ser útil ao pensamento socialista de hoje?

Uma pessoa que me ajudou a compreender a riqueza da obra de Benjamin foi o Michael Löwy. Quando conversávamos sobre a extraordinária qualidade da obra crítica do Benjamin, ele disse: "Leandro, o revisionismo dele é fascinante". Hoje um revisionismo é, muitas vezes, a única maneira de resgatar o espírito revolucionário radical de Marx contra a dissolução da sua perspectiva num código reformista. Cheguei à conclusão de que Benjamin é um sujeito que vai buscar no terreno do inimigo elementos que podem interessar ao nosso campo. Evidentemente submetidos a um processo de readaptação para serem utilizados por uma perspectiva revolucionária. Estou convencido de que Benjamin possui uma paixão revolucionária. Ele pensa a história como redenção. Embora elaborados em níveis diferentes, os conceitos de redenção e de revolução se contaminam mutuamente. A redenção revitaliza e fortalece a idéia de revolução numa época em que o espírito revolucionário já estava sofrendo a ação emoliente de uma série de procedimentos reformistas. Benjamin é um sujeito que viveu angústias, em 1930, que antecipam as nossas angústias em 1990. Por isso escrevi um livro sobre ele, como uma maneira de divulgar melhor sua obra.

Eu me concebo muito como um divulgador, não pretendo ser candidato a grande pensador. Sou um trabalhador que, na esfera da cultura, tem compromisso com alguns valores filosóficos e políticos. Meu trabalho é interpretar idéias de pensadores que respeito e que acho que nos ajudam a travar a luta hoje necessária.

Benjamin foi seguramente um dos baluartes da luta contra uma leitura simplificadora, determinista, da concepção materialista da história, um revalorizador da iniciativa do sujeito revolucionário. Quando Benjamin diz que é preciso escovar a história a contrapelo, ele nos dá uma dica maravilhosa. Ele nos ajuda a pensar na grandeza e na importância do desafio de nos mobilizarmos, inteiros e apaixonados, na oposição a uma história que está sendo feita pelos outros. Vejo nisso um ponto de convergência entre espíritos tão diferentes como Gramsci e Benjamin.

Entre os autores aos quais você já dedicou sua atenção está justamente um contemporâneo de Benjamin: Brecht. O que chamou sua atenção para ele?

Poderíamos dizer, muito esquematicamente, que três grandes pensadores marxistas do século XX pensaram sobre a arte: Lukács, Adorno e Benjamin. Nas suas concepções sobre estética, eles sentiram necessidade de encontrar um autor que seria a expressão prática, criadora, nas artes, do que eles pensavam no plano da teoria estética. Lukács identifica em Thomas Mann a tradução mais bem-sucedida da linha que teoriza. Adorno se volta para a rebeldia radical de Beckett, como aquele que corporifica aquilo que ele teoriza. E Benjamin vê na obra de Brecht a ilustração daquilo que preconiza no plano teórico. Depois de ter lido Benjamin, voltei a Brecht e fiz uma descoberta que me emocionou muito: Brecht, que é um autor muito importante e valorizado como homem de teatro, é muito pouco explorado como poeta. Eu o tinha lido quando estive na Alemanha aprendendo alemão, e tinha ficado muito impressionado com a simplicidade da sua linguagem. Brecht é um poeta que usa palavras cotidianas. Sua linguagem é simples, porém sutil. Descobri que é muito difícil traduzi-lo. As traduções francesas são fiéis, razoáveis, mas não têm o charme do original. As traduções inglesas menos ainda. E as portuguesas me pareceram, salvo algumas poucas exceções, bastante problemáticas. Fiquei impressionado com isso. Não sou um tradutor suficientemente competente nem disposto a essa tarefa de gigante. Mas fiz um livrinho divulgando a poesia do Brecht, parte desse projeto de dizer: "gente, a cultura socialista tem expressões artísticas maravilhosas".

Parece ser uma marca de toda a sua trajetória o esforço no sentido de colaborar para a constituição de uma cultura socialista no Brasil. Isso foi uma preocupação consciente?

Esta é a linha de abordagem do meu trabalho pelo José Paulo Neto. Ele chamou a atenção e eu até me surpreendi porque não tinha pensado nisso. É verdade, isso conta muito para mim. Se posso fazer algo pela formação e pelo enriquecimento dessa cultura socialista brasileira, isso me motiva muito. Sinto-me espontaneamente envolvido, quero participar. Isto é existencialmente vital para mim.

Na sua tese de doutorado, A derrota da dialética, você fez um vasto levantamento do que era o marxismo acessível aos brasileiros até a década de 30 e constatou que ele era quase inexistente. É um livro importante sobre as primeiras raízes do marxismo no Brasil. O que o levou a escrevê-lo?

Eu praticamente nasci no meio de comunistas. Meu pai era comunista e minha casa vivia povoada de comunistas. De certa forma, a minha visão de criança e, sobretudo, de adolescente era a de um conjunto de pessoas que tinha uma inspiração generosa, mas que eu achava um pouco insensata. Em alguns casos eu diria mesmo bizarra. Eu queria entender melhor qual era a motivação daquelas pessoas, de onde vinham aquelas idéias. Eu vi meu pai ser preso muitas vezes, acho que ele foi preso umas vinte vezes. Eu ficava muito impressionado com aquilo tudo. Que gente era aquela? Tinha certeza de que não eram pessoas "do mal". Ao mesmo tempo, percebia que tinham uma estranha forma de religiosidade, que tinham uma abertura de cabeça insuficiente diante da vida. Comecei a me interessar muito por essa doutrina de que eles se alimentavam. E comecei a pesquisar.

Depois de 1964, com a derrota da esquerda e o golpe militar, consegui interlocução com um grupo de pessoas das quais a mais freqüente está presente aqui, o Carlos Nelson. Em função do diálogo com esses amigos, comecei a me preocupar em estudar de maneira mais sistemática a história do uso das idéias que vêm de Marx. Lendo Marx eu ficava fascinado pela idéia de que o que Marx escrevia era diferente daquilo que os marxistas aplicavam. Daí vem esse estudo do uso das idéias. Na Alemanha aprendi essa coisa da recepção, há vários estudos sobre como as idéias chegam. Queria estudar a recepção das idéias de Marx no Brasil até 1930, pois depois a coisa se complica muito. E aí fiz a tese de doutorado.

Minha conclusão, mais ou menos provisória e bastante limitada, era política. Minha idéia era que o balanço dessa experiência mostrava que o trabalho teórico tinha sido muito insuficiente. A idéia que tinha quando concluí o livro é que eu precisava de alguma forma me empenhar num trabalho teórico coletivo, mais ambicioso, que dependia de uma ampliação do número de pessoas interessadas em pensar a sociedade brasileira de um ponto de vista crítico, de esquerda e, em última análise, revolucionário. Marx tinha um arsenal maravilhoso que tinha sido subutilizado e precisava ser melhor aproveitado por intermédio de uma mobilização das pessoas, promovendo uma discussão teórica que também se desdobrasse numa divulgação de informações, de textos, de conhecimentos.

A derrota da dialética é um texto em que as conclusões são pessimistas. Ou seja, até aquele momento Marx no Brasil tinha sido apropriado de uma maneira pobre, esquemática, equivocada. A partir dos anos 30 você diria que a recepção do marxismo tornou-se mais sofisticada?

Há algumas razões animadoras, com a criação de possibilidades que não existiam, sem dúvida. O aproveitamento dessas possibilidades é que é discutível. Mas, o quadro das possibilidades, sem dúvida, melhorou. A conclusão pessimista, sugerida no título do livro, representou uma postura provocadora deliberada. E que teve conseqüências muito curiosas. Por exemplo, o falecido José Milton Tavares me procurou para conversar sobre o assunto e achou que o título era inconveniente, muito drástico. Aconteceu, então, uma coisa curiosa. Ele fez uma resenha muito simpática, muito elogiosa ao livro na Senhor, na qual falava o tempo todo do livro como A reforma da dialética. Na cabeça dele era "trabalho histórico da maior importância, a reforma da dialética". E tem o caso do Luiz Carlos Prestes, que deu uma entrevista ao jornal da PUC, em que fala da situação do marxismo no Brasil: "é uma situação muito ruim porque mesmo pessoas como o Leandro Konder, que estudou na Alemanha, adotam uma posição que não é materialista dialética e que resulta em análises deformadas, defeituosas, deficientes da realidade brasileira, como se nota no seu livro "A morte da dialética"! Quer dizer, na cabeça do Prestes a dialética não pode sofrer uma derrota; se sofrer ela morre!

Mas já nos anos 30 surgem as primeiras obras historiográficas do Caio Prado Jr., que são um avanço indiscutível em relação ao Octávio Brandão, por exemplo, também criticado por você em A derrota da dialética.

Sem dúvida. Mas se houve avanços consideráveis, tivemos ao mesmo tempo o reaparecimento de algumas tendências não-dialéticas muito presentes no pensamento marxista brasileiro. Nos anos 30 aparece Leôncio Basbaum, que ganhará destaque depois com um livro mais ambicioso, a História sincera da República. Basbaum é um historiador que tem seus méritos, mas não é dialético. A obra dele tem essa marca. De certa forma, ela é expressão do reaparecimento de um pensamento marxista não-dialético. Esse é um exemplo entre muitos. Caio Prado, filósofo, é um não-dialético convicto. Tem uma concepção de dialética não-dialética. Os exemplos podem se multiplicar com a maior facilidade.

Apesar da obra de alguns marxistas a partir dos anos 40, há uma defasagem grande do que era o pensamento marxista no Brasil em relação ao debate internacional de ponta, que só começa a ser superada nos anos 60. A sua intervenção e a do Carlos Nelson têm um papel importante para alterar este quadro, introduzindo figuras como Lukács e Gramsci, porque é impossível pensar o marxismo no século XX sem eles. O que o levou a difundir Lukács no Brasil?

Somos expressão de um movimento no qual uma opção comunista era feita em condições nas quais não dava mais para se contentar com as razões de um período anterior, dos anos 50. O XX Congresso revelou uma realidade já conhecida por marxistas marginalizados, como os trotskistas. Eu procurei trotskistas históricos para entrevistar na pesquisa sobre A derrota da dialética – Mário Pedrosa, Edmundo Muniz –, e inicialmente em alguns deles eu notava um certo retraimento. Eu era filho do Valério Konder, um bolchevique staliniano convicto! Mas descobri, por intermédio deles, todo um bolsão de resistência, embora com limitações teóricas muito grandes. Mas, ao mesmo tempo, com uma certa intuição de que a realidade da União Soviética era muito mais problemática do que o comunismo oficial reconhecia. Isso, de certa forma, se generalizou em algumas áreas do Partidão, sobretudo nos jovens aderentes, que diziam "eu não quero repetir as bobagens que meus pais ou meus avós disseram". Buscávamos, de alguma forma, novos caminhos. E aí aparece Lukács, um crítico literário, com vasta cultura, sólidos conhecimentos, respeitabilidade, interlocutor polêmico mas competente dos outros filósofos. Havia nele uma consistência teórica que nos impressionou muito. O Carlos Nelson, antes de mim, descobriu Gramsci e ficou muito entusiasmado com a aventura de ler e pensar os temas propostos por ele. Lukács e Gramsci tinham uma legitimidade derivada do fato de terem sido comunistas militantes. Não eram marxistas de gabinete, não eram professores. Eram revolucionários. E isso nos inspirava respeito. E, ao mesmo tempo, tinham um pensamento próprio e desenvolviam uma reflexão teórica diferente daquela que cabia nos manuais proveniente da matriz moscovita. Para nós isso era ótimo. Nós descobrimos o Partido Comunista Italiano e ele era a nossa reserva de munição. Nós aprendemos italiano para isso.

A partir daí vocês iniciam a divulgação da obra de Lukács e, depois, de Gramsci?

É. O Partido Comunista tinha uma revista teórica chamada Estudos Sociais, que tinha como diretor a veneranda figura do Astrojildo Pereira e um conselho de redação do qual participavam Armênio Guedes, Jacob Gorender e Mário Alves. Essa revista, já no primeiro número, definiu um programa curioso redigido pelo Armênio. Dizia que era uma revista de tendência marxista, mas que podia ser veículo de divulgação de alguns textos não muito ortodoxos. Essa revista publicou Lukács, a princípio fazendo um contraponto com um texto que o criticava. Depois, publicou outros dois textos do Lukács. O Carlos Nelson mandou também, da Bahia, um artigo muito interessante e simpático a Sartre. Saiu na revista, mas na seção "Problemas em debate". Foi um sinal de que era possível, dentro do espaço do partido, fazer o trabalho que queríamos fazer, de difusão de novas idéias.

Mas só no plano da política cultural...

É verdade. Conseguimos exercer uma influência no plano específico da política cultural. Na política geral do partido não exercemos influência nenhuma. Ficamos marginalizados, mas numa situação na qual tínhamos a ilusão de ter uma certa participação, porque influíamos na política cultural.

Esse processo permanece por todo o período da ditadura?

Permanece, mas já em outro contexto. Tínhamos, nesse período, uma organização do Partido chamada Comitê Cultural do Rio de Janeiro. Freqüentávamos suas reuniões e contávamos com a cumplicidade e a simpatia de várias pessoas. O Comitê desempenhava um certo papel no plano da política cultural, praticamente nenhum no plano da política geral. A direção se mantinha protegida contra influências provenientes da área dos produtores e divulgadores de cultura.

Até quando você permaneceu no Partido Comunista?

Até começo de 1982. Na verdade, até final de 1981, mas eu prolonguei a minha permanência em função de um episódio meio pitoresco: em 1982 estava programada uma comemoração dos 60 anos do partido. O Carlos Nelson já tinha se afastado e havia a idéia de alguém falar representando os intelectuais. O Zé Paulo pelos intelectuais de São Paulo e eu pelos intelectuais do Rio. E fiz uma fala que foi um pouco a minha despedida. Uma fala benjaminiana. Terminava com aquela frase do Benjamin: "diante da situação, diante dos obstáculos colocados no nosso caminho, temos que ser pessimistas. E temos que lembrar que a esperança só nos é dada em função da existência daqueles que sequer têm mais a possibilidade de ter esperança". Acabei de falar e criou-se um clima constrangedor. Um rapaz, o Guto, que estava presente e queria entrar para o partido, depois falou: "foi bom porque eu não entrei. Depois da sua fala, fui embora e falei ‘melhor buscar outro caminho’".

Em 1982 o PT já estava se estruturando em todo o país. Qual era a sua visão dele? Minha primeira leitura foi muito crítica, na qual eu via apenas o obreirismo. Dizia: "é uma ilusão, não tem teoria. É uma coisa meio sectária, simplista, corporativa, obreirista". Diga-se de passagem, o Carlos Nelson teve desde o início maior abertura. Eu resisti bastante. Achava que era uma iniciativa que repetia alguns dos erros da história do PC dos quais nós queríamos nos desembaraçar. Custei bastante a ver que havia um outro lado do PT, que era o novo, surgindo com características pós-leninistas. Porque nós fizemos uma releitura do acervo leniniano, que resgatava alguns elementos desse acervo numa nova proposta, que não seria pelo caminho do PT. E, na verdade, uma das vantagens do PT era ter nascido numa era pós-leniniana. Mas isso demorou um pouco a ser percebido por mim.

Li uma vez uma entrevista de George Dumezil, um estudioso que tinha uma cátedra de mitologias comparadas na França. Era uma figura muito curiosa, um erudito. Uma vez, no fim da vida, uma jornalista lhe perguntou o que tinha mudado na relação dele com os alunos, depois de mais de cem livros publicados. Ele disse: "antigamente, quando um aluno me procurava com idéias excêntricas, esdrúxulas, eu falava: ‘meu filho, amadurece seu pensamento, organiza melhor as suas idéias e depois volta a me procurar’. E agora, quando o aluno me procura com idéias excêntricas, esdrúxulas, eu digo: ‘vai fundo, vai fundo!’"

Porque as idéias nascem como os seres humanos, mirradinhas, e só depois se desenvolvem e aí a gente pode saber em que deu aquela criatura. Tem que esperar que elas amadureçam. De certa forma, o PT, ao nascer, me pareceu uma criaturinha bizarra, meia sem futuro, mas depois fui obrigado a reconhecer que aquela criatura cresceu, ganhou uma desenvoltura muito grande e começou a me ensinar algumas coisas que ajudavam a corrigir a minha ótica de velho militante do Partidão.

Você acha que o desenvolvimento do PT a partir dos anos 80 altera o panorama do pensamento socialista no Brasil?

Eu acho que sim. O PT criou uma situação nova que teve reflexo na discussão e na reflexão. Sua existência é já um fato extremamente enriquecedor para o pensamento da esquerda. Ele passou a ser uma referência que permite pensar certas coisas que não eram pensáveis antes. No sentido, por exemplo, da proposta do Carlos Nelson, da democracia como valor universal, pensar um processo de mobilização ampliada democratizadora dos diferentes setores da massa trabalhadora. De certa forma, nós nos libertamos de determinados esquemas tradicionais das análises, digamos, "sociológicas", da esquerda tradicional. Porque começamos a aceitar a idéia de uma heterogeneidade das camadas trabalhadoras que exige que aproveitemos formas de organização diferentes, que sejamos capazes de nos inserir na diversidade dessas formas de organização. Nós ainda estamos numa situação de déficit em relação ao esclarecimento do nosso acervo teórico, do nosso instrumental conceitual. Essa fundamentação precisa ser desenvolvida, fortalecida, inclusive com seus desdobramentos no plano da política cultural.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate


Inclusão: 22/11/2021