Somos bons o bastante?

Piotr Kropotkin

21 de junho de 1888


Primeira Edição: Freedom 21, junho de 1888.

Fonte: OBSERVATÓRIO DO TRABALHO NA AMÉRICA LATINA - DCP/IFCS/UFRJ - https://otal.ifcs.ufrj.br/somos-bons-o-bastante-piotr-kropotkin/

Traduzido: a partir da versão disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/petr-kropotkin-are-we-good-enough

HTML: Fernando Araújo.

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Uma das objeções mais comuns ao comunismo é a de que os homens não são bons o suficiente para viverem de uma maneira comunista. Eles não se submeteriam a um comunismo obrigatório, mas eles ainda também não seriam maduros para um livre comunismo anárquico. Séculos de educação individualista os tornaram muito egoístas. Escravidão, submissão ao mais forte, e trabalhar sob o chicote da necessidade, os tornaram impróprios para uma sociedade onde todos seriam livres e não conheceriam nada compulsório, apenas o que resultasse de compromissos tomados livremente para com os outros, e sua desaprovação se ele não o fizesse cumprir tal compromisso. Portanto, somos avisados, algum estado de transição intermediário da sociedade é necessário como um passo para atingir o comunismo.(1)

Palavras velhas em uma nova forma; palavras ditas e repetidas desde a primeira tentativa de qualquer reforma, política ou social, em qualquer sociedade humana. Palavras que temos ouvido antes da abolição da escravatura; palavras ditas vinte e quarenta séculos atrás por aqueles que apreciam por demais seu próprio sossego para gostar de mudanças rápidas, a quem a ousadia de pensamento assusta, e que não sofreram o suficiente das iniquidades da presente sociedade para sentir a profunda necessidade de novas questões!

Os homens não são bons o suficiente para o comunismo, mas eles são bons o suficiente para o capitalismo? Se todos os homens fossem de bom coração, bons e justos, eles nunca explorariam uns aos outros, apesar de possuir os meios de fazê-lo. Com tais homens a propriedade privada do capital não ofereceria perigo. O capitalista se apressaria para compartilhar seus lucros com os trabalhadores, e os trabalhadores melhores remunerados com aqueles que sofrem de problemas ocasionais. Se os homens fossem parcimoniosos não produziriam veludo e artigos de luxo enquanto alimentos são necessitados no campo: eles não construiriam palácios enquanto existissem favelas.

Se os homens tivessem um sentimento profundamente desenvolvido de equidade eles não oprimiriam outros homens. Os políticos não trairiam seus eleitores; o Parlamento não seria uma caixa de tagarelar e de trapaças, e os policiais de Charles Warren(2) se recusariam a ameaçar os locutores e ouvintes da Trafalgar Square. E se os homens fossem galantes, se se respeitassem e fossem menos egoístas, mesmo um mau capitalista não seria um perigo; os trabalhadores teriam logo reduzido-o ao papel de um simples camarada-gerente. Mesmo um rei não seria perigoso, porque as pessoas simplesmente o considerariam como um companheiro incapaz de fazer um trabalho melhor e, portanto, encarregado de assinar alguns papéis estúpidos enviados para os outros caprichosos que se chamam a si mesmos de reis.

Mas os homens não são os companheiros livres de espírito, independentes, de previdência, amorosos e compassivos que gostaríamos de ver. E precisamente, portanto, não devem continuar a viver sob o atual sistema que lhes permite oprimir e explorar um ao outro. Tomemos, por exemplo, aqueles alfaiates atingidos pela miséria que protestaram no domingo passado nas ruas, e suponha que um deles herdou cem libras de um tio americano. Com estas cem libras ele certamente não vai começar uma associação produtiva para uma dúzia de alfaiates como ele atingidos pela miséria, e tentar melhorar a sua condição.

Ele vai se tornar um capitalista.(3) E, portanto, dizemos que, em uma sociedade onde os homens são tão ruins como este herdeiro americano, é muito ruim para ele ter alfaiates miseráveis ao seu redor. Assim que puder, os explorará;(4) Enquanto que, se esses mesmos alfaiates tivessem uma vida segura garantida pelas lojas comunistas,(5) nenhum deles suaria para enriquecer seu ex-camarada, e o jovem capitalista não se tornaria ele mesmo a besta muito ruim que certamente se tornará se continuar a ser um capitalista.

Dizem-nos que somos demasiado servis, demasiado esnobes, para sermos colocados sob instituições livres; Mas dizemos que, por sermos, de fato, tão propensos a servidão, não devemos permanecer qualquer tempo a mais sob as instituições atuais, que favorecem o desenvolvimento da escravidão. Vemos que os britânicos, franceses e americanos mostram a servidão mais repugnante para Gladstone, Boulanger ou Gould.(6) E concluímos que, numa humanidade já dotada de instintos tão servis, é muito ruim ter as massas privadas, à força, de uma educação de qualidade e compelidas a viver sob a atual desigualdade de riqueza, educação e conhecimento. Uma instrução mais elevada e a igualdade de condições seriam os únicos meios para destruir os instintos servis herdados, e não podemos entender como os instintos servis podem ser usados como argumentos para manter, mesmo por mais um dia, a desigualdade de condições, por recusar a igualdade de instrução a todos os membros da comunidade.

Nosso espaço é limitado, mas submeta à mesma análise os aspectos de nossa vida social, e verás que o sistema capitalista autoritário atual é absolutamente impróprio para uma sociedade de homens tão imprevidentes, tão rapaces, tão egoístas e tão servis como o são agora. Portanto, quando ouvimos homens dizendo que os anarquistas imaginam os homens muito melhor do que realmente são, apenas nos perguntamos como as pessoas inteligentes podem repetir esse absurdo. Não somos nós que dizemos continuamente que o único meio de tornar os homens menos rapaces e egoístas, menos ambiciosos e menos servis, ao mesmo tempo, é eliminar as condições que favorecem o crescimento do egoísmo e da rapacidade, da escravidão e da ambição? A única diferença entre nós e aqueles que fazem a objeção acima é esta: nós não exageramos, como eles, os instintos inferiores das massas, e não complacentemente fechamos os olhos para os mesmos maus instintos nas classes superiores. Nós sustentamos que tanto governantes como governados são estragados pela autoridade; Tanto os exploradores como os explorados são prejudicados pela exploração; Enquanto nossos oponentes parecem admitir que há uma espécie de sal da terra – os governantes, os empregadores, os líderes – que, felizmente, impedem que esses homens maus – governados, explorados, liderados – se tornem ainda piores do que eles são.

Aí está a diferença, e uma muito importante. Admitimos as imperfeições da natureza humana, mas não fazemos exceção para os governantes. Eles fazem isto, embora às vezes inconscientemente, e porque nós não fazemos tal exceção, eles dizem que nós somos sonhadores, ‘homens não práticos’. E a velha discussão, essa discussão entre os “homens práticos” e os “não práticos”, os chamados utópicos: uma discussão renovada em cada mudança proposta, e terminando sempre pela derrota total daqueles que se denominam “pessoas práticas”.

Muitos de nós devem se lembrar da briga quando ela alcançou níveis furiosos na América antes da abolição da escravidão. Quando se defendeu a plena emancipação dos negros, as “pessoas práticas” costumavam dizer que se os negros não estivessem mais obrigados a trabalhar pelos chicotes de seus donos, não trabalhariam em nada, e logo se tornariam uma fardo para a sociedade. Podiam ser proibidos os chicotes grossos, disseram eles, e a espessura dos chicotes poderia ser progressivamente reduzida pela lei a meia polegada primeiro, e então a uma mera bagatela de alguns décimos de uma polegada; Mas algum tipo de chicote deveria ser mantido. E quando os abolicionistas disseram – como dizemos agora – que o gozo do produto do trabalho seria um incentivo muito mais poderoso para o trabalho do que o chicote mais grosso: “Bobagem, meu amigo”, eles nos disseram – exatamente como nos dizem agora. – “Você não conhece a natureza humana! Anos de escravidão tornaram-nos imprevidentes, preguiçosos e servis, e a natureza humana não pode ser mudada em um dia. Você está imbuído, é claro, com as melhores intenções, mas você é bastante não prático”.

Bem, por algum tempo os homens práticos tiveram suas próprias maneiras de elaborar esquemas para a emancipação gradual dos negros. Mas, infelizmente!, os esquemas revelaram-se bastante impraticáveis, e a guerra civil – a mais sangrenta registrada – estourou. Mas a guerra resultou na abolição da escravidão, sem qualquer período de transição; – e veja, nenhuma das consequências terríveis previstas pelos ‘‘práticos’’ aconteceu. Os negros trabalham, são trabalhadores e laboriosos, são providentes – e até muito providentes, de fato – e o único arrependimento que pode ser expresso é que o esquema defendido pela ala esquerda do campo não-prático – plena igualdade e alocações de terra – não foi realizado: teria economizado muito dos problemas de agora.

Mais ou menos na mesma época uma briga parecida aconteceu na Rússia, e sua causa foi esta. Havia na Rússia 20 milhões de servos. Por gerações passadas eles haviam estado sob o mando, ou melhor, sob a vara de vidoeiro de seus donos. Foram flagelados por arar mal seu solo, açoitados pela falta de limpeza em suas casas, açoitados por tecer imperfeitamente seus tecidos, açoitados por não casar mais cedo seus meninos e meninas: chicoteados por tudo. Escravidão e imprevidência eram suas características de renome.

Agora nos aparecem os utópicos e não pedem nada mais nada menos que o seguinte: a libertação completa dos servos; abolição imediata de qualquer obrigação do servo em relação ao senhor. Mais do que isso: abolição imediata da jurisdição do senhor e seu abandono de todos os assuntos sobre os quais julgou anteriormente ao tribunal dos camponeses, selecionados pelos camponeses e julgados, não de acordo com a lei que não conhecem, mas com seus costumes não escritos. Tal era o esquema não-prático do campo não-prático. Isto foi tratado como uma mera loucura pelas pessoas práticas.

Mas, felizmente, naquela época na Rússia havia muita impraticabilidade no ar, mantida pela impraticabilidade dos camponeses, que se revoltaram com suas varas contra armas de fogo, e se recusaram a se submeter, apesar dos massacres, e assim forçaram o estado de espírito não prático a um grau tamanho que permitiu que o campo não-prático forçasse o Tzar a assinar seu esquema – ainda que não por completo até certo ponto. As pessoas mais práticas se apressaram a fugir da Rússia, para que não tivessem as gargantas cortadas alguns dias após a promulgação desse esquema não-prático.

Mas tudo correu bem, apesar de os muitos erros cometidos ainda por pessoas práticas. Esses escravos, que eram ditos imprevisíveis, brutos egoístas e assim por diante, exibiam tal bom senso, uma capacidade organizadora, que superava as expectativas dos mais irredutíveis utópicos; E em três anos após a Emancipação a fisionomia geral das aldeias tinha mudado completamente. Os escravos estavam se tornando Homens!

Os utópicos ganharam a batalha. Eles provaram que eram pessoas realmente práticas, e que, aqueles que fingiam ser práticos, eram imbecis. E o único pesar expresso agora por todos os que conhecem o campesinato russo é que muitas concessões foram feitas aos imbecis práticos e egoístas de mente estreita: que o conselho da ala esquerda do campo não prático não fora seguido na íntegra. Não podemos dar mais exemplos. Mas convidamos, sinceramente, aqueles que gostam de raciocinar por si próprios a estudar a história de qualquer uma das grandes mudanças sociais que ocorreram na humanidade desde a ascensão das Comunas à Reforma e aos nossos tempos modernos. Verão que a história não é mais do que uma luta entre os governantes e os governados, os opressores e os oprimidos, em que a luta do campo prático sempre está ao lado dos governantes e opressores, enquanto o campo não prático se alinha com os oprimidos; E verão que a luta termina sempre em uma derrota final do campo prático depois de muito derramamento de sangue e sofrimento, devido ao que eles chamam de seu “bom senso prático”.

Se, dizendo que somos não práticos, nossos oponentes querem dizer que prevemos a marcha dos acontecimentos melhor do que os covardes práticos de visão curta, então eles estão certos. Mas, se eles querem dizer que eles, os práticos, têm uma melhor visão dos acontecimentos, então os mandaremos para a história, e lhes pediremos que se ponham de acordo com seus ensinamentos antes de fazer essa asserção presunçosa.


Notas de rodapé:

(1) O conceito de Comunismo aparece em Kropotkin em alusão ao objetivo de organização da vida social, em todos os seus sentidos (econômico, político, cultural), de maneira a integrar toda a sociedade de maneira anarquista, sendo ausente um sistema de economia de mercado e de salários e preços para a distribuição da produção social. Kropotkin é “fundador” do anarco-comunismo. Os objetivos finais eram comuns aos comunistas, teoricamente. Os meios para alcançar, porém, o levaram ao anarquismo, pela rejeição da via autoritária do Estado a fim de efetivar uma verdadeira revolução. Melhores definições do anarquismo comunista de Kropotkin podem ser vistos em “A Conquista do Pão” e “Fields, Factories and Workshops”, assim como em “Anarchist Communism: Its Basis and Principles”. (retornar ao texto)

(2) O general Sir Charles Warren, GCMG, KCB, FRS (7 de fevereiro de 1840 – 21 de janeiro de 1927) foi um oficial no British Royal Engineers. Comissário da Polícia da Metrópole, o chefe da Polícia Metropolitana de Londres de 1886 a 1888, durante o período dos assassinatos do Jack o Estripador. (retornar ao texto)

(3) O termo usado no texto em inglês é sweater: um empregador que emprega trabalhadores de maneira dura, em condições precárias e por salários baixos. (retornar ao texto)

(4) “(…) he will sweat them” → os fará suar, no sentido de grande exploração. (retornar ao texto)

(5) Lojas comunistas, para Kropotkin, dizem respeito a sua concepção de produção social comum, onde toda produção seria escoada e posta a disposição das necessidades materiais de todos, livremente, não sendo mediada por salários. (retornar ao texto)

(6) William Ewart Gladstone, (1809 – 1898) foi um político liberal britânico. Em uma carreira de 60 anos, serviu como Primeiro-Ministro em quatro mandatos diferentes. Não foi encontrada nenhuma referência aos outros nomes nesta primeira versão da tradução. (retornar ao texto)

Inclusão: 29/11/2021