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Superficialmente considerada, a diferença de sistemas que supostamente constitui o carácter não capitalista do socialismo real moribundo parece consistir em sua estrutura de comando estatista: as funções da produção de mercadorias são submetidas a decisões prévias políticas. Mas na alvorada da modernidade existiam também no Ocidente regimes transitórios estatistas, e isso, por ironia do destino, tanto na forma do absolutismo mercantilista como na do regime da Revolução Francesa, que derrubou o primeiro.
O Estado do absolutismo iluminado, o Comité de Salvação Pública de Robespierre e o regime bonapartista de um império sintético distinguem-se apenas gradualmente em sua função de modernização, própria do capitalismo primitivo. Esse fundamento, que todos os partidos e poderes e todas as ideias combatentes daquela época têm em comum, a saber, o papel especial e a importância social do estatismo a partir do século XVII até os inícios do século XIX, distingue-se claramente do papel do Estado regulador e social keynesiano e póskeynesiano do século XX, apesar de existirem pontos de contacto, interligações e semelhanças ideológicas.
Pois o actual Estado keynesiano social e de crescimento, com sua democracia de massas, fundamenta-se numa estrutura social capitalista já formada e profundamente escalonada. Para o estatismo mercantilista do capitalismo primitivo, ao contrário, este era um Estado futuro. Ele tinha que ocupar-se, em primeiro lugar, com os produtos estamentais da decomposição do feudalismo, isto é, com relações de produção em grande parte estruturadas agrariamente.
Devido ao arraigamento muito menor das estruturas sociais capitalistas, esse estatismo não podia interferir de forma tão eficaz na reprodução social quanto um Estado de massas do capitalismo tardio, profundamente organizado e dotado de instituições que penetram nos poros da sociedade. Mas precisamente por isso, tinha que enfrentar a sociedade que encontrara com militância maior, repressão mais violenta e pretensões ideológicas mais rígidas. Somente depois de impor-se a sociedade capitalista, actuando realmente apenas sobre os próprios fundamentos, aplica-se o que Marx constatou como peculiaridade dessa formação:
Continua o emprego de violência directa, extra-econômica, mas apenas excepcionalmente. No curso normal das coisas, o trabalhador pode ser abandonado às "leis naturais da produção", isto é, a sua dependência do capital que nasce das próprias relações de produção e que estas garantem e eternizam. [Marx, 1965 (1890), p. 765]
Como na violenta época primitiva do mercantilismo, a pretensão extrínseca do Estado, por incapacidade de socialização intrínseca, repete-se nas formações do socialismo real, que assim revela-se como regime modernizador protocapitalista de sociedades burguesas atrasadas. Isso manifesta-se em vários fenómenos descobertos pela glasnost, os quais, do ponto de vista ocidental, representam antes fraquezas antediluvianas na potência de intervenção social do Estado.(1)
Mas, enquanto o Estado regulador e social keynesiano, desde o princípio, e como atitude óbvia, deixa um ambiente próprio para a economia de mercado total, já existente e diferenciada, da qual ele mesmo é um produto, limitando expressamente suas intervenções, sua actividade reguladora e administrativa à capacidade de funcionamento desta, o estatismo mercantilista do capitalismo primitivo tinha que assumir o papel ilusório de sujeito absoluto da sociedade e de sua economia. Num nível elevado, isso repetiu-se nas pretensões do estatismo do socialismo real de nosso século quase findado.
O Estado absolutista dos primórdios da época moderna não inventou a política económica e nem a economia política da riqueza abstracta, "sem sentido", para manter em condições de funcionamento, dentro de suas próprias leis, um sistema produtor de mercadorias em estado embrionário. Ao contrário, queria subjugar a "economia" como suposta serviçal, e somente por esse esforço surgiu a economia política moderna. A manutenção da corte e do exército permanente do monarca absoluto, que por sua vez era produto do desenvolvimento anterior desde a Renascença, já não podia ser financiada na base dos domínios rurais dos reis e príncipes, que constituíam tradicionalmente sua fonte de renda principal.(2)
Para aumentar as receitas principescas, tinha que ser criado um sistema tributário geral. Essa medida não apenas fez nascer os traços fundamentais de uma economia financeira moderna, mas também exigia o fomento e o controle conscientes da produção de mercadorias, como fonte principal da tributabilidade monetária, a estimulação das exportações e a intensificação planejada do processo de produção de mercadorias, para além dos limites estamentais das forças produtivas. A manufactura, a divisão forçada do trabalho e o recrutamento coativo de mão-de-obra assalariada barata, entre os produtos da decomposição da sociedade feudal, conduziram a um novo modo de produção que logo rompeu os objectivos limitados do absolutismo.
Em seu famoso capítulo sobre "a chamada acumulação primitiva ", Marx descreveu os elementos que cega e instintivamente se juntam neste processo. Por um lado, trata-se do capital monetário, que se alimentava do sistema colonial e do crédito estatal absolutista:
Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia mercantil. No período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia mercantil que proporciona a supremacia industrial. Daí o papel predominante que desempenhava naquela época o sistema colonial. Foi o "deus alheio" que se instalou no altar, ao lado dos antigos ídolos da Europa, até derrubar, um belo dia, todos eles de uma vez. Proclamou o lucro o último e único objectivo da humanidade. O sistema do crédito público, isto é, das dívidas do Estado, cujas origens já descobrimos na Idade Média em Gênova e Veneza, passou a tomar posse, durante o período manufatureiro, de toda a Europa. O sistema colonial com seu comércio ultramarino serviu-lhe de estufa. [...] A dívida pública torna-se uma das alavancas mais enérgicas da acumulação primitiva. [Marx, l.c., p. 782]
A dívida do Estado e, com isso, o elemento estatista como componente da acumulação de capital, que no século XX reaparece em dimensões muito mais gigantescas, já existia, portanto, nos inícios da época moderna, isto é, na pré-história do processo de acumulação propriamente dito.
Por outro lado, também os elementos do moderno trabalho assalariado tinham que ser criados do nada mediante o emprego de violência directa por parte do Estado. A transformação, que ocorria desde o século XV, de escravos e servos em trabalhadores assalariados "livres" e a "libertação" social, mediante a expulsão brutal dos camponeses independentes e dos pequenos arrendatários de suas parcelas, transformadas em pastos pelos latifundiários, somente podiam ser realizadas por meio da administração de coacção do trabalho por parte do Estado, mediante militarização e terror do Estado:
Desta maneira, a população rural, violentamente desapropriada de suas terras, expulsa e transformada em vagabundos, foi chicoteada, marcada a ferro e torturada, por meio de leis grotescas e terroristas, até submeter-se à disciplina necessária para o sistema do trabalho assalariado. [Marx, l.c., p. 765]
De fato, os inícios daqueles "empregos" tão avidamente disputados pelos trabalhadores assalariados modernos eram literalmente a cadeia e a caserna de trabalho:
Na França, os trabalhadores, especialmente aqueles das manufacturas reais, moram frequentemente em internatos manufatureiros. "Os trabalhadores de muitas manufacturas reais vivem sempre na manufactura, como os soldados na caserna, deixando-a somente nos feriados." Outros falam do "rigor monacal" de sua vida. Regulamentados eram os horários do trabalho, das refeições, das orações, do sono. E mesmo assim, o rigor da disciplina de sua vida parece moderado em comparação à situação de muitos trabalhadores das manufacturas centrais na Alemanha, onde uma expressão corriqueira fala da casa de detenção e fiação. Isso significa que uma parte nada insignificante das manufacturas centrais era idêntica às penitenciárias. Tanto era assim a situação na Alemanha que não se empregavam os presos das penitenciárias como fiandeiros, mas sim, pelo contrário, construíam-se penitenciárias e prendiam-se pessoas para obter trabalhadores manufatureiros. [Kuczinski, 1967, pp. 18 ss.]
Faz parte da história da cegueira do movimento operário o fato de este não conseguir decifrar suas próprias intenções como elemento da modernização baseada em ideias de trabalho forçado na cadeia; isso manifesta-se de forma muito intensa no exemplo da União Soviética. Em todos os surtos de modernização do sistema produtor de mercadorias, o elemento do estatismo apareceu no primeiro plano, ainda que nas formas e disfarces mais diversos. O absolutismo foi apenas uma de suas formas de manifestação mais primitivas, mas o estatismo não desapareceu junto com ele.
Sem dúvida, os regimes revolucionários e o bonapartismo modificaram os fins sociais e as ideologias legitimadoras, mas isto apenas para fazer com que continuasse, sobre seus próprios fundamentos, a transformação, forçada pelo absolutismo, da produção de mercadorias num sistema de reprodução social. Na concepção dos protagonistas mudou apenas o sujeito estatista. Mas na verdade foi desencadeada a auto-reflexão cega do dinheiro, processo histórico que somente hoje começa a entrar em sua fase final.
Alexis de Tocqueville foi o primeiro a penetrar essa conexão de fatos, expondo-a de uma maneira que até hoje não está esgotada. Em sua obra O Antigo Regime e a revolução, ele prova que a ruptura com o Ancien Régime não foi, de modo algum, tão absoluta quanto parecia; a identidade intrínseca de absolutismo e Revolução Francesa, cujo contraste radical marca apenas um ponto de ruptura num processo básico homogéneo, constitui seu ponto de partida teórico para desfazer as ilusões ideológicas dos revolucionários:
Eu estava convencido de que, sem saber, eles teriam conservado em grande parte as convicções, os costumes e até as ideias do Estado antigo para realizar com sua ajuda a revolução que o aniquilaria, e que, sem querer, teriam se servido de seus destroços para erguer o edifício da sociedade nova. [Tocqueville, 1978 (1856), p. 9]
Esse ponto de partida já foi congenial ao de Marx. A crítica da ideologia faz Tocqueville reconhecer a continuidade despótica, que descreve assim:
[...] percebe-se então um enorme poder central que, como unidade, atraiu e devorou todos os componentes de autoridade e influência que antes se encontravam distribuídos entre uma multiplicidade de poderes subordinados, ordens religiosas, classes, profissões, famílias e indivíduos e, por assim dizer, dispersas em todo o corpo da sociedade. [...] Essa forma simples, regular e grandiosa já avistou Mirabeau através da poeira das antigas instituições semidestruidas. Apesar de seu tamanho, o objecto era naquela época invisível aos olhos das massas; aos poucos, porém, o tempo o revelou ao olhar de todos. Actualmente está fascinando sobretudo o olhar dos príncipes. Contemplam-no com admiração e inveja, e não apenas aqueles que devem sua posição à Revolução, como também aqueles que lhe são completamente estranhos e os seus inimigos decididos; todos empenham-se em aniquilar no seu território os direitos hereditários e em abolir os privilégios. Misturam os estamentos, nivelam as diferenças destes, colocam funcionários no lugar da aristocracia, a uniformidade das leis no lugar das liberdades locais e o governo homogéneo no lugar dos poderes diversos. [Tocqueville, l.c., pp. 25 ss.]
A "homogeneidade" e "uniformidade" do corpo social, instaladas tanto pelo absolutismo quanto pela Revolução, nada mais é que a preparação desse corpo para o sistema produtor de mercadorias que está por vir. O grandioso em Tocqueville é que já reconhece essa conexão de fatos, apesar de não deduzi-la (como analítico da "superestrutura política") nas categorias de uma crítica económica, tal como faz Marx, mas precisamente por isso ele pode ser lido como um Marx da crítica das instituições políticas das democracias modernas, na base da forma produtora de mercadorias. Tocqueville já reconhece como é precária, sem deixar-se enganar pelos disfarces ideológicos, a ilusão burguesa referente ao sujeito, ilusão que aparece tanto no absolutismo quanto na democracia, e a vontade do verdadeiro sujeito, constituído na forma-mercadoria, de assumir o comando sobre o complexo superpoderoso de formas que lhe correspondem e que não têm sujeito. Para ele, não se explica, pela consciência própria,
que todos os homens de nossos dias são levados por uma força desconhecida [!], que pode-se ter a esperança de regular e moderar, mas não de vencer, e que os impele, ora devagar, ora com ímpeto violento, a aniquilar a aristocracia [...]. Alguns acreditam que essa força desconhecida, que aparentemente de nada se alimenta, também por nada é enfraquecida, que ninguém pode refrear, que não pode refrear a si mesma [!], que essa força levará a sociedade humana à sua dissolução completa e definitiva. [Tocqueville, l.c., pp. 14 ss.]
Essa lógica da "dissolução" transcende muito a situação daquela época, em que a reacção aristocrática costumava citá-la como instrumento para apoiar seus fins transparentes, anti-revolucionários. Tocqueville, ao contrário, refere-se ao fim desse processo de dissolução em nosso tempo, em que a mônada do indivíduo abstracto constituiu-se como fantoche do processo de automovimento, sem sujeito, da forma-mercadoria:
Nesse estado, os homens já não estão unidos por castas, classes, corporações e linhagens, tendendo por isso fortemente a ocupar-se apenas de seus interesses particulares, a pensar somente em si mesmos e a retirar-se a um individualismo em que toda virtude pública acaba sendo sufocada. O despotismo, muito longe de combater essa tendência, ao contrário, toma-a irresistível, pois costuma privar os cidadãos de todo entusiasmo colectivo, de toda necessidade comunitária, de toda necessidade de se entenderem, de toda oportunidade de agir em comum, emparedando-os, por assim dizer, na vida particular [!]. Já estavam inclinados ao isolamento: ele os isola; já estavam esfriando suas relações mútuas: ele faz com que congelem definitivamente. Já que em tal sociedade nada é fixo, cada um sente-se permanentemente excitado, em parte pelo medo de fracassar, em parte pelo impulso de subir na vida; e como nesse estado o dinheiro, ao tornar-se ao mesmo tempo o critério principal que classifica os homens e condiciona sua categoria social, alcançou mobilidade extraordinária, passando sem cessar de uma mão para outra, mudando a situação dos indivíduos, elevando ou rebaixando as famí1ias, não há quase ninguém que não esteja obrigado a fazer esforços desesperados e contínuos de assegurar-se dele ou de adquiri-lo. [Tocqueville, l.c., p. 15]
Essa observação é ainda mais notável quando consideramos que Tocqueville não está falando como ideólogo conservador ou reaccionário da antiga aristocracia, mas sim, como crítico partidário da sociedade nova, cuja submissão ao "poder desconhecido" do trabalho abstracto e de seu movimento tautológico ele não está disposto a ignorar, apesar de tudo. E, precisamente por isso, suas observações aplicam-se não apenas à pré-história do sistema produtor de mercadorias, do século XVIII e dos inícios do século XIX, como também, com brutalidade surpreendente, a sua fase final, do fim do século XX.
O verdadeiro despotismo da modernidade é o absolutismo do dinheiro, sem sujeito, isto é, aquele do trabalho abstracto e de sua exploração em empreendimentos económicos. O despotismo histórico dos príncipes absolutos e da Revolução Francesa, muito longe de poder subsistir como vontade estatista auto-suficiente que se limita a estabelecer os próprios fins, nada mais era que a grosseira parteira desse fenómeno absolutamente fetichista. Tinha apenas a função de "emparedar" os homens ocupados em romper os ferros do feudalismo naquela privacidade abstracta em que hoje estão morando sem protesto, mas cujos muros já começaram a desmoronar perigosamente. Se os homens ocidentais assustaram-se e arrepiaram-se em face, por exemplo, das "formigas azuis" da China, dos "soldados do trabalho" sob comando despótico, nada mais viram, nesses momentos, que o passado de sua própria sociedade, filmado com acelerador: o proto-estado dos sujeitos que hoje são.
A ilusão da modernização burguesa referente ao sujeito, ilusão criada pelo absolutismo e mantida pela Revolução Francesa e pelo bonapartismo, que no Ocidente, ao menos ideologicamente, começou a desfazer-se desde os meados do século XIX,(3) encontrou herdeiros, no começo do século XX, na Revolução de Outubro russa e no socialismo real subsequente, cujo disfarce ideológico ocultou de forma pouco convincente a verdadeira constelação dos fatos. A teoria de Tocqueville da identidade de" Antigo Regime" e "Revolução" no processo da modernização burguesa aplica-se aqui em grau até elevado. Pois, nas condições de um nível de desenvolvimento já relativamente alto do sistema produtor de mercadorias no Ocidente e de uma luta de concorrência já muito avançada no mercado mundial, todo novo impulso de modernização nas regiões ainda pouco desenvolvidas tinha que assumir o carácter de um desenvolvimento recuperador, particularmente forçado, em que não apenas se repetia o estatismo dos inícios da época moderna, mas que também se apresentava numa forma muito mais pura, consequente e rigorosa que a dos originais ocidentais esquecidos há muito tempo.(4)
O Estado racional burguês de Fichte e seu reflexo no socialismo real
As ideias ideológicas em si são sempre mais consequentes e lógicas do que a realidade social que as reflecte em formas distorcidas e modificadas. Por isso, dentro da sequência histórica das formações sociais, somente podem aparecer realizadas ou pelo menos realizáveis - desde que esta constelação de factos seja reconhecida e decifrada - na realidade de uma fase posterior do desenvolvimento, da qual têm sido uma ficção prévia. A filosofia alemã clássica, por exemplo, oferece sob muitos aspectos e em várias formas, também na área da teoria do conhecimento, reflexões directas e indirectas da lógica moderna da mercadoria, uma antecipação ideal de todas as fases posteriores do desenvolvimento. Ocasionalmente esse assunto aparece até sem disfarce em obras teóricas, políticas e económicas.
Isso revela-se particularmente quando se compara a realidade estatista do socialismo real da primeira metade do século XX com as ideias mais progressistas da teoria social e as exigências programáticas da época mercantilista (tardia), representadas na Alemanha de forma insuperada pelo panfleto de Fichte sobre o "Estado mercantil fechado", escrito no outono de 1800, cujas teses centrais nos espantam. O "Estado racional" burguês de Fichte já pressupõe um sistema produtor de mercadorias, isto é, os "fabricos" são produzidos como "mercadorias" e mediados pela "troca", porém:
O governo tem que calcular esta troca que se realiza na nação [!], bem como o número de mãos que pretende ocupar, tanto em geral, quanto nos diversos ramos, se achar tal divisão necessária [...] Em um Estado organizado segundo os princípios estabelecidos, não se fornece a nenhuma casa comercial mercadorias de cuja venda esta não tenha absoluta certeza, uma vez que a produção e fabricação efectuada de acordo com as possíveis necessidades já está calculada no fundamento estabelecido pelo Estado. A casa comercial pode até forçar essa venda. Do mesmo modo que lhe foram prometidos determinados vendedores, também lhe foram prometidos determinados compradores. [...] Neste Estado, todos são servidores de um todo e recebem em compensação sua justa parte dos bens deste todo. Ninguém pode enriquecer muito, mas também ninguém pode empobrecer. [...] É certo que o governo possa contar com determinada quantidade de mercadorias comercializadas, para poder garantir permanentemente aos súditos a satisfação contínua das necessidades habituais [...] O governo deve fixar e garantir os preços das mercadorias [!]. [Fichte, 1977 (1800), pp. 81 ss.]
A tentativa de realizar esse "Estado racional" de Fichte, de uma produção planejada de mercadorias, seria empreendida apenas 120 anos mais tarde. Revela-se assim que o colapso atual. da economia soviética marca muito mais o fracasso posterior do idealismo burguês alemão do que a desactualização da crítica da economia política de Marx,(5) à qual o socialismo real sempre podia referir-se apenas de modo muito grosseiro e superficial. Essa conexão surpreendente afirma-se quando Fichte, além de estabelecer como característica de seu "Estado racional" a produção planejada de mercadorias, define a "propriedade" como direito ao trabalho, o qual faz do trabalhador um verdadeiro cidadão:
O que mais pode lhe dar o Estado? Evidentemente apenas a garantia de que ele sempre encontrará trabalho ou compradores para sua mercadoria, recebendo em compensação a participação correspondente nos bens do país. Somente por essa garantia ele fica vinculado ao Estado. Mas o Estado não pode dar essa garantia sem limitar o número daqueles que estão ocupados no mesmo ramo e sem cuidar da produção dos meios de subsistência necessários a todos. [...] A segurança, digo eu, deve ser dada pelo Estado, e também a garantia. Dizer que tudo isso dar-se-á por si mesmo, que cada um encontrará sempre seu trabalho e seu pão, e confiar somente na boa sorte, não corresponde a uma constituição realmente justa. [Fichte, l.c., p. 111 ]
Mercado planejado e direito ao trabalho (o que, por outro lado, também significa: dever de trabalhar sob direcção estatal), este núcleo do programa social-econômico do socialismo real é na verdade mercantilismo ideológico, já programaticamente concebido nos primórdios da modernidade. E Fichte denomina também a terceira característica decisiva da economia estatal:
Todas as relações com o exterior devem ser proibidas e impossibilitadas aos súditos. É desnecessário provar que no sistema mercantil aqui estabelecido não há lugar para relações entre súditos e estrangeiros. O governo [...] deve fixar e garantir os preços das mercadorias. Como pode fazê-lo contra a vontade dos estrangeiros, uma vez que não pode determinar os preços pelos quais estes estão vivendo em seu país e comprando as matérias-primas? [...] assim, o Estado racional é um Estado mercantil completamente fechado, do mesmo modo que é um reino fechado das leis e dos indivíduos. [...] Se o Estado precisa de um comércio de troca com o exterior, somente o governo deve efetuá-lo. [Fichte, l.c., pp. 88 ss.]
Também o monopólio estatal do comércio exterior do socialismo real já faz parte, portanto, do programa consequente do mercantilismo. Todas as características decisivas e formas básicas supostamente não capitalistas do socialismo estatal soviético (e de todos os regimes semelhantes), do século XX, já foram préformuladas pelo próprio capitalismo e por seus ideólogos progressistas à beira da industrialização; não são estranhas, em sua essência, ao capital ou ao sistema produtor de mercadorias, mas sim, características estruturais do nascimento histórico desses últimos. Por isso, têm que repetir-se ali onde esse nascimento se dá de novo. Mas para este nem foi necessária a crítica da economia política de Marx, uma vez que todo o essencial do "socialismo" já pode ser encontrado mais de uma geração antes, em Fichte.(6)
O capitalismo, isto é, a produção de mercadorias desencadeada até constituir um sistema de reprodução, na forma do automovimento do dinheiro, nunca pretendeu, desde o princípio, estabelecer a pura "liberdade do mercado", intenção que, repetidamente,imputam-lhe os ideólogos provenientes da direita e também da esquerda. Antes, poderíamos falar de um movimento ondulatório de elementos constituintes antagónicos na história da modernização burguesa, movimento em que constantemente se revezam e penetram elementos estatistas e elementos monetaristas.(7) As teorias de convergência correspondentes reflectem essa situação, mas apenas de forma atenuante: não como forma de movimento de um conflito básico irresolúvel da modernidade, que ameaça conduzir a uma crise, mas sim como conciliação ecléctica e sem fundamento conceptual dessa contradição central.
Estado e mercado condicionam-se mutuamente, não como complementação idealmente equilibrável de elementos sociais civilizatórios, mas sim como institucionalização de um antagonismo violento, hostil até o ponto de aniquilar o adversário e provocar catástrofes. Presos na cegueira da determinação da própria forma, os sujeitos trabalham em sua autodestruição.
O verdadeiro conflito básico da modernidade não é aquele entre "trabalho" e "não-trabalho", como sempre supôs o marxismo ingénuo do movimento operário e da luta de classes, mas sim aquele entre o conteúdo social e a forma não social, inconsciente, do próprio trabalho. A sujeição de todas as ideias qualitativas humanas sobre valores e finalidades, a de todas as necessidades concretas em geral, ao fim, sem qualidade alguma, do movimento do trabalho morto, de fazer de um marco dois marcos, essa exigência desmesurada do sistema produtor de mercadorias condiciona necessariamente como expressão externa de seu antagonismo interno, a contradição institucional permanente entre Estado e mercado. A divisão interna do sujeito burguês manifesta-se como existência dupla, dividida entre a acção referente ao dinheiro ou ao mercado e a do cidadão.
O Estado, o outro volante da máquina de alienação ao lado do dinheiro, recebe assim, por sua vez, uma natureza dupla. Do ponto de vista histórico ele assume, já em sua primitiva forma moderna, absolutista, burguês-revolucionária e ditatorial, por um lado, o papel de parteira do sistema produtor de mercadorias e, por outro, torna-se componente imanente deste último; do ponto de vista institucional ele serve, por um lado, para assegurar as condições que apoiam o capitalismo, e por outro lado é promovido a instância reguladora que interfere activamente no processo de reprodução do trabalho morto, tão logo os sectores "improdutivos" da infra-estrutura (ciências, tratamento dos detritos, assistência social e de saúde, educação, reparo dos processos de destruição social-ecológicos etc.) começam a sufocar a estrutura de automovimento do dinheiro; do ponto de vista ideológico, por fim o Estado apresenta-se, por um lado, como Moloch, "canibal" (Glucksman, 1978) e monstro leviatânico que constantemente ameaça agredir a "verdadeira" subjectividade burguesa, por outro lado, porém, como deus ex machina, como instância à qual se recorre sempre que há fricções e sofrimentos resultantes da socialização negativa.
Essa contradição de Estado e mercado, que como contradição interna do Estado reproduz-se a si mesma e em que se manifesta o antagonismo irreconciliável da modernidade, produz então aquele movimento histórico ondulatório em que domina ora o estatismo, ora o monetarismo, sem que jamais se alcance o equilíbrio de uma reprodução imperturbada : isso, desde o estatismo absolutista e revolucionário da modernidade primitiva até o liberalismo de Manchester e o "Estado dos guardas nocturnos" do capital industrial ascendente; mais tarde, desde o estatismo da economia de guerra da época imperialista até o Estado anticrise do keynesianismo e, por fim, a reacção monetarista e a "desregulação" global, que hoje já parece tornar-se obsoleta.(8) No fim de sua história, o sistema produtor de mercadorias tem fôlego cada vez mais curto. Estatismo e monetarismo revezam-se com frequência crescente, conforme ainda será mostrado.
O socialismo do movimento operário nem podia colocar em prática o programa da crítica da economia política de Marx, cujo tempo ainda não chegara (o próprio Marx iludia-se sistematicamente quanto a esse tempo). Em vez disso, o socialismo real repetiu e "realizou" as ideias mercantilistas tardias de Fichte. Fazendo isso, tinha necessariamente que concentrar sua atenção e seus interesses no Estado moderno, produto e máquina do sistema produtor de mercadorias, acreditando poder instrumentalizar essa última mediante uma simples inversão do sinal de "classe", para a "libertação da classe trabalhadora".(9)
Notas de rodapé:
(1) O fato de que, na República Popular da China, oficiais de impostos são espancados e trancados em chiqueiros pelos camponeses combina perfeitamente com o massacre estatal na Praça da Paz Celestial e com as pretensões de comando do regime frente à economia de mercado delegada a outras mãos. Tais contradições, em parte inacreditáveis, do processo de modernização capitalista podem também ser encontradas na história da constituição do capital na Europa ocidental, apenas faltando as lembranças concretas. Quem estranha os fenómenos na Rússia e na China, em vez de reconhecer neles o passado da sociedade de trabalho, da própria democracia e do Estado social, é muito ingénuo ou então é adepto da ideologia legitimadora do capitalismo tardio ocidental. (retornar ao texto)
(2) Essa conexão foi ressaltada com muita frequência: "Não há a menor dúvida que as guerras cada vez mais dispendiosas contribuíram para o desenvolvimento do mercantilismo. Com a ampliação da artilharia, dos arsenais, das marinhas de guerra, dos exércitos permanentes e das fortificações, as despesas dos Estados modernos dão um salto. Guerras pressupõem dinheiro e mais dinheiro, e assim a posse de dinheiro, a acumulação de metais nobres, torna-se uma mania e domina, como última conclusão de toda sabedoria, o pensamento e o juízo". (Braudel, 1986, p. 604) (retornar ao texto)
(3) Isso pode ser reconhecido nas fi1osofias de crise, cada vez mais intensas, referentes à subjectividade que se manifesta na forma-mercadoria do mundo burguês, pelo menos a partir de Kierkegaard e Nietzsche, que têm sua continuação na filosofia de vida e depois no existencialismo. Ao progresso dessas filosofias de crise corresponde a dessubjetivação do sistema social, que levou à atual desorientação pós-keynesiana. (retornar ao texto)
(4) Trotski, preso ele mesmo na ideia do estatismo modernizador, não sabe do que está falando ao chamar a burocracia stalinista de "bonapartismo", ainda que seja apenas com a intenção de denunciá-la ("revolução traída"), enquanto, na verdade, a analogia se refere ao carácter análogo da evolução histórica do sistema produtor de mercadorias (Trotski, 1979 [1936]). Temos um caso análogo no conceito de "bonapartismo" de August Thalheimer, aplicado ao fascismo alemão (Tha1heimer, 1967 [1930]), que não apenas revela (sem querer) uma afinidade estrutural do socialismo de caserna soviético e do fascista, como também, ao mesmo tempo, a deficiência conceitual desses marxistas do movimento operário na critica da economia política. (retornar ao texto)
(5) Isso pelo menos quando se entende e aplica ao pé da letra o texto de Fichte. Independentemente disso, a filosofia alemã clássica (e com isso também a de Fichte) compreende uma riqueza de ideias historicamente ainda inexplicadas que em alguns aspectos transcendem consideravelmente a aplicabilidade imediata no momento histórico concreto, ultrapassando até os limites do sistema produtor de mercadorias, do qual, naquela época, ainda não se podia formar conceitos abstractos. Compreendiam não apenas as origens da futura crítica da economia política de Marx, senão também ideias que até hoje ficaram sem aplicação. Isso distingue Fichte, sem dúvida alguma, da trivialidade tanto dos epígonos marxistas quanto dos economistas atuais que se tornaram "realistas" no sentido mais lamentável da palavra. (retornar ao texto)
(6) Já no fim do século passado, o social-democrata francês Jean Jaurès observa com toda naturalidade: "Fichte foi o primeiro que esboçou a teoria do valor, plenamente desenvolvida a seguir por Marx" (Jaurès, 1974 [1891], p. 69). Do mesmo modo que Marx aparece em Schumpeter como mero epígono de Ricardo, aparece ele em Jaurès como epígono de Fichte. A descoberta de que esses pensadores já tinham formulado uma teoria do valor do trabalho é ligada directamente à autoconsciência afirmativa do movimento operário. Suprime-se o fato de que no fundo a teoria de Marx compreende uma critica radical do fetichismo do valor. Assim, não é de admirar que Fichte é igualmente apreciado pelos nacional-socialistas e pelos ideólogos do movimento operário. (retornar ao texto)
(7) De forma totalmente tradicional e sem conceitos claros manifesta-se a esse respeito também Fernand Braudel: "Ficou sem resposta clara, entre outras coisas, a pergunta muitas vezes repetida se o Estado fomentou o capitalismo e acelerou o desenvolvimento deste. Apesar de todas as dúvidas que se possa ter quanto à maturidade do Estado moderno, deve-se atestar-lhe que, entre os séculos XV e XVIII, estendeu sua influência a tudo e a todos e que figura entre os novos poderes da Europa. Mas isso significa que ele explica tudo, que submete tudo à sua ordem? De modo algum! Sem dúvida, fomenta e apoia o capitalismo, mas, aplicando-se a ideia da reversibilidade das perspectivas, pode-se também afirmar o contrário, isto é, que o Estado trava a ascensão do capitalismo e eventualmente por sua vez é travado por este. Ambas as afirmações são correctas [...], já que a realidade abrange sempre complicações previsíveis e imprevisíveis" (Braudel, 1986, p. 613). O Estado aparece aqui como princípio abstracto, como ente autónomo que existe "frente ao capitalismo", em vez de ser compreendido, em sua forma moderna, como elemento constitutivo e ao mesmo tempo imanente do próprio capital. Aqui revela-se que os "novos historiadores" (e não apenas estes), sob o pretexto da diferenciação científica, pregam uma confusão conceitual que de tanto contar as árvores deixa de enxergar a floresta. Não é nenhuma relação contraditória externa entre Estado e capital aquela a que se refere Braudel, mas sim, uma contradição interna do próprio capital, do qual o Estado é apenas um elemento, e isso já nos inícios da modernidade, no processo de constituição dessa formação social. (retornar ao texto)
(8) É característica da consciência burguesa, e também da esquerda, a compreensão da época precedente através da óptica do lado a cada vez dominante da contradição, em vez de reconhecer que se trata de elementos complementares irreconciliáveis dentro do processo histórico global da modernidade. Nesse contexto será possível decifrar, no que segue, a ideologia do socialismo real. (retornar ao texto)
(9) O anarquismo e as tendências afins (sindicalismo etc.) oferecem uma alternativa apenas aparente ao mainstream do antigo movimento operário, porque fundamentam sua oposição ao Estado justamente em ideologias de uma produção de mercadorias "autodeterminada" e "justa" (Proudhon, por exemplo), deixando de reconhecer, portanto, tanto as leis do sistema produtor de mercadorias quanto a conexão interna entre a forma-mercadoria e o Estado moderno. Essa forma da imanência burguesa constitui, em relação ao marxismo estatal-socialista, apenas uma alternativa complementar e representa, por assim dizer, o ponto vista liberal ou monetarista da oposição burguesa no movimento operário, reproduzindo assim. por sua vez, num fundamento próprio, o antagonismo de Estado e mercado, estatismo e monetarismo, cidadão e sujeito de troca. (retornar ao texto)