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Se consideramos o sistema de mercado ocidental, baseado na economia de concorrência, não um modelo (bem-sucedido), mas sim um elemento do mesmo processo histórico da modernidade que gerou também a sociedade do trabalho, supostamente antípoda, do "mercado planejado", o colapso desta última está muito longe de sinalizar uma nova era de prosperidade capitalista. O Oeste, que já entrou em seu estado de crise, e o Leste, que em seu colapso converteu-se num adepto da lógica capitalista da concorrência, estão mentindo um para o outro. Enquanto o Leste espera a salvação de sua situação sem saída cravando os olhos no passado irrecuperável do boom ocidental da época pós-guerra, o Oeste, ao contrário, espera do colapso oriental, sem compreender que ameaça este constitui para o sistema de mercado global, uma saída da própria acumulação de capital estagnante, por meio de "mercados novos" que somente existem na imaginação. E isso apesar de poder estudar os processos reais que se dão em sociedades de colapso num exemplo vivo, a saber, no exemplo daquele Terceiro Mundo cujo destino o Leste está prestes a sofrer também.
Pois em face do entusiasmo com que se fala das "necessidades recuperadoras" do Leste e dos "mercados novos" com "centenas de milhares de pessoas" na África, América Latina e Ásia, exceção dos poucos países asiáticos ascendentes, ainda não fizeram surgir tais mercados novos, apesar de parecerem ser muito maiores suas necessidades recuperadoras. Mas as necessidades sensíveis e os desejos humanos não fazem surgir nenhum mercado ou, em outras palavras, nenhuma capacidade aquisitiva produtiva. Esta pode apenas nascer da exploração em empresas de força de trabalho humana, realizada no nível mundial da produtividade. Mas essas condições prévias do próprio sistema são sistematicamente ignoradas nos condescendentes sermões dominicais dos especialistas e ideólogos ocidentais.
A mesma ignorância pode ser encontrada em grandes setores da esquerda, apenas com sinal invertido. As idéias de uma "colonização" capitalista do Leste estão claramente orientadas no antigo paradigma esquerdista da "exploração neocolonialista" do Sul; em ambos os casos conjura-se como motivo fundamental a absorção de "mão-de-obra barata" pelo "vampiro" capital. Mas essas idéias tinham seu fundamento real na história de imposição pré-fordista do capital, há muito tempo passada. Mão-de-obra barata como meio principal da acumulação, trabalho forçado e de escravos em produções pouco dispendiosas, na exploração de matérias-primas (mineração, plantações) ou em gigantescos projetos, faziam parte (particularmente na União Soviética) das forças impulsoras históricas do capital, isto é, de sua "acumulação primitiva". Quem refere essas forças e esses motivos sem cerimônias ao atual sistema global está vivendo ideologicamente do passado e deixa de ver os potenciais entrementes nascidos da penetração das ciências e o nível daí resultante da produtividade.
A história real do Terceiro Mundo nos anos 70 e 80 desmente essas ideologias do mesmo modo que o palavrório dos especialistas ocidentais sobre os maravilhosos mercados novos. Pois o Terceiro Mundo já passou pela parte essencial de seu colapso, ainda que a vida, depois de terminar a "normalidade", continue de alguma maneira, em um nível cada vez mais miserável. Depois de realizar-se a catástrofe primitiva da reprodução social, trata-se, por assim dizer, de "sociedades pós-catastróficas"(1), que somente estão ligadas à circulação sangüínea global do dinheiro por algumas poucas veias muito finas. Uma porção gigantesca, e ainda crescente a cada ano, da população mundial afunda-se assim em desespero, vegetando naquelas condições barbarizadas que ainda estão por vir no Leste.
A idéia, atualmente criada e alimentada, por exemplo, por autônomos e feministas (compare Werlhof et alii, 1986), de um processo de "acumulação primitiva" que continua acontecendo no Terceiro Mundo e se manifesta como exploração capitalista de mão-de-obra barata permanece, em geral, tão cega à realidade quanto o correspondente teorema acadêmico da "nova divisão internacional do trabalho" (Froebel, Kreye et alii, 1977, 1986). Todas essas teses não se fundamentam numa análise do processo geral da produção global de mercadorias, mas sim na generalização dos exames de alguns casos e áreas particulares. O padrão básico comum dessas argumentações consiste em deduzir daquela exploração "barata" de força de trabalho humana no Terceiro Mundo cada transferência de crescimento capitalista bem-sucedida ou prestes a ter sucesso, isto é, na aplicação das antigas categorias da "exploração". Em parte defende-se dessa maneira a idéia de que o desemprego em massa no mundo ocidental não se deve às conseqüências da penetração das ciências e da intensificação da produtividade imanentes, para muito além da capacidade de absorção do sistema produtor de mercadorias, mas sim ao simples deslocamento do trabalho industrial para o Terceiro Mundo "mais barato"; em parte acredita-se até que uma transferências mistificada de valores, procedentes da produção folclórica de tapetes, cestos etc. possa esporear o crescimento do capital mundial: uma lenda que obviamente nenhum economista pode levar a sério.
De fato, os fenômenos empíricos nos quais se apoiava a tese da nova divisão internacional do trabalho estão em retirada, além de não terem tido jamais o significado que lhes foi atribuído. Em todos os lugares do Terceiro Mundo onde se desenvolveram os inícios de uma industrialização própria ou instalada por capital estrangeiro vale hoje a divisa: "Da economia de trabalho intensivo para a economia orientada na tecnologia". (Handelsblatt, 6.4.1987). Já no começo dos anos 80, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Genebra reclamou: "A tecnologia empobrece o Terceiro Mundo", ilustrando com isto inconscientemente os paradoxos do moderno sistema produtor de mercadorias. Essa constelação de fatos aplica-se também àquela agricultura do Terceiro Mundo que (crescente e forçosamente) se orienta no mercado mundial:
Pela primeira vez, a OIT [...] teria pesquisado as questões da pobreza e dos sem-terra nas regiões rurais da Ásia. Essa pesquisa teria mostrado que na Índia, na Indonésia, em Bangladesh, em Sri Lanka e na Malásia, onde moram 70% da população rural dos países não-socialistas do Terceiro Mundo, a pobreza estaria aumentando, apesar de um crescimento econômico nunca visto que aconteceu nos últimos 25 anos. Assim, nas mais ricas áreas de cultivo do Pendjab, na Índia, a nova técnica da "revolução verde" teria certamente conduzido a um aumento de 26% da renda real per capita, mas ao mesmo tempo teria se elevado de 18 a 23% a parte da população rural que estaria vivendo abaixo do nível de pobreza. O mesmo rumo tomaria o desenvolvimento nas plantações de caucho da Malásia [...]. A resposta à pergunta por que a pobreza teria aumentado estaria mais ligada à estrutura econômica do que à taxa de crescimento. Em face do fato de que as melhorias técnicas, na maioria dos casos, economizariam empregos em vez de criá-los, investimentos úteis de capital não teriam o efeito desejado de ocupação. Assim, no Paquistão, tratores teriam causado a perda de 200 mil empregos. Na Indonésia, novos moinhos de arroz poderiam conduzir à ocupação de apenas 330 mil pessoas, em vez das atuais 400 mil. [Sueddeutsche Zeitung, 17.5.1980]
Naturalmente, esse desenvolvimento continuou durante os anos 80, e isso em processo acelerado. Todo passo de crescimento agrário orientado no mercado mundial tinha que ser necessariamente um passo em direção à agroindústria intensiva de capital, cuja produtividade, bem como aquela nos próprios centros do mercado mundial, está roendo o crescimento global do capital mundial em vez de fomentá-lo. Assim estão se agravando também no setor agrário a concorrência e a concentração de capital, em nível nacional e internacional.
Isso se aplica muito mais à indústria e aos investimentos industriais diretos no Terceiro Mundo. Os investimentos baseados no deslocamento de partes da produção para o norte da África, o sudeste da Ásia e a América Latina não apenas ficaram muito atrás dos investimentos em países ocidentais capitalistas, como também diminuíram consideravelmente durante os anos 80: "Investidores alemães evitam os países em desenvolvimento" (Sueddeutsche Zeitung, 9.4.1987). Enquanto até 1983 o volume dos investimentos diretos da RFA no Terceiro Mundo era ainda de 2,3 bilhões de marcos por ano, em 1986 tinha caído a 0,7 bilhão de marcos, com tendência decrescente. O mesmo aplica-se ao comportamento de investimento dos demais países capitalistas. Os motivos não são, absolutamente, de natureza política em primeiro lugar, mas sim, bem como no setor agrário, encontram-se na intensidade elevada do capital:
Em face das novas tecnologias, os produtos no sudeste da Ásia precisam das mesmas máquinas que os produtores em outra parte. Por isso, a parte dos salários já não teria a mesma importância de antes, comenta Wolfrang Kummer, presidente administrativo da Linotype S. A. Eschborn. Sua empresa teria 80% de custo de material, 12% de custo geral e apenas 8 a 10% de despesas salariais diretas. No sudeste da Ásia não se poderia produzir mais barato do que aqui. Por isso, a empresa passou a concentrar, há pouco mais de um ano, a parte do leão da produção na República Federal. [Sueddeutsche Zeitung, 10.8.1988].
Naturalmente, essa lógica não se manifesta apenas em ramos industriais menores, como impressão, têxteis e vestuário, mas também e muito mais acentuadamente nas indústrias-chave, a eletrônica e a automobilística. Daniel Goeudevert, ex-presidente administrativo das fábricas Ford em Colônia, não deixa nenhuma dúvida quanto a isso: "O deslocamento da produção para os lugares com mão-de-obra mais barata teria perdido [...] sua importância. Em face da compulsão à rentabilidade, as empresas estariam tendendo à redução do custo e, com isso, à liberação de mão-de-obra". (Handesblatt, 15.6.1989).
A tendência deste século ao aumento da intensidade do capital (expressão fetichista para o desdobramento da "força produtiva ciência") desvalorizou há muito tempo a oferta de mão-de-obra "barata" do Terceiro Mundo, fechando com isso, porém, para o próprio Ocidente, uma saída exteriorizante de sua crise por meio da exploração daqueles ominosos mercados novos. Quanto menos o Terceiro Mundo conseguia acompanhar a corrida da produtividade, tanto menos pôde sua economia levantar pelo menos os investimentos indispensáveis para o próprio desenvolvimento e os mercados internos, e tanto menos interessante tornou-se ele para investimentos estrangeiros diretos, por parte do capital ocidental. Passou a depender de créditos do sistema bancário ocidental e das instituições internacionais (FMI, Banco Mundial).
Enquanto nos anos 70 ainda estava vinculada a esses créditos a ilusão de se poder alcançar por esse caminho o desenvolvimento interno, a industrialização e a capacidade de participar no mercado mundial, essa bolha de sabão estourou o mais tardar em 1982, quando a insolvência do México marcou o início da famosa crise de dívidas do Terceiro Mundo, que até hoje não se aproximou nenhum milímetro de sua superação. Uma parte dos créditos perdeu-se nas burocracias estatais do Terceiro Mundo e nas classes altas, entrou de forma improdutiva no consumo, em projetos inúteis de prestígio e armamento, ou voltou a ser transferida ao sistema bancário ocidental, como capital improdutivo que trouxe juros. Mas isso não é nem metade da verdade. Pois existem razões muito mais objetivas e decisivas do que a simples mania de enriquecimento das tradicionais classes altas do Terceiro Mundo que faziam com que fracassasse necessariamente o projeto de industrialização e desenvolvimento.
Em última instância, o problema é que a lógica abstrata da rentabilidade, tal como é inerente à mercadoria moderna e ao mercado mundial por esta constituído, não conhece e nem pode admitir algo como uma estratégia politicamente induzida, isto é, puramente baseada em decisões conscientes. Mais cedo ou mais tarde tem que impor-se inexoravelmente a lei da rentabilidade, que diz que somente é válida e capaz de participar no mercado aquela produção que corresponda ao nível mundial de produtividade. Já que se trata aqui da atuação objetiva dessa lei dentro da lógica das mercadorias, não se pode enfrenta-la com argumentos de fair-play e referências ao problema do desenvolvimento recuperador; de modo geral, é inútil e absurdo querer discutir e argumentar com as leis estruturais da produção de mercadorias, como se se trata-se de um sujeito consciente(2). O fato de que, para a satisfação das necessidades sensíveis, seria "sensato" proceder de outra forma, não produzindo sob o aspecto abstrato da rentabilidade e instalando, em interesse do próprio desenvolvimento e da manutenção e ampliação das próprias necessidades, inicialmente também setores de produção abaixo do padrão mundial, não interessa nem um pouco à lógica da forma-dinheiro, que por isso tem que ignorar todos os desejos piedosos com aquela inexorabilidade que é característica da "atuação de leis"(3).
Na prática, o dilema dessa lógica manifesta-se na distância cada vez maior entre a intensificação da produtividade, forçada pela economia de concorrência, nos países capitalistas desenvolvidos, e a produtividade possível nas regiões atrasadas do mercado mundial. A base do gigantesco estoque de capital do Ocidente, a partir do qual se realizam os aumentos seguintes, não poderá jamais ser alcançada, dentro da lógica das mercadorias, pelas outras partes do mundo em conjunto. Cada passo de desenvolvimento e aumento da produtividade nos países atrasados é negativamente compensado, em escala crescente, por dois, três ou mais passos nas regiões mais avançadas. É a corrida entre a lebre e a tartaruga, que somente pode terminar com a morte da lebre.
Quanto mais alto o nível mundial da produtividade, tanto mais intensidade de capital exige a produção e tanto mais alto e impagável para a maioria dos países pobres é o custo dos investimentos, que muitas vezes já se desvalorizam no momento em que deveriam induzir produções capazes de aparecer no mercado. E quanto mais se estica o metro para medir a penetração das ciências, da técnica e da automação, tanto mais cresce também, para além da própria produção, a necessidade de investimentos gigantescos no sistema da logística e infra-estrutura social global, nas ciências e na educação, na administração e nos serviços, necessidade à qual os países atrasados não podem atender nem de longe.
O recurso de tomar empréstimos nos mercados financeiros internacionais era, portanto, antes um passo desesperado do que um caminho bem refletido de desenvolvimento. Já que os juros e o custo administrativo dos créditos, na maioria dos países atingidos, expandiam-se necessariamente com rapidez muito maior do que qualquer desenvolvimento imaginável nos mercados internos e externos, a "industrialização endividada" tinha que fracassar por motivos objetivos, seja na forma da "substituição das importações", seja naquelas da "industrialização para a exportação":
Em regra, a tentativa de substituir pela produção própria a importância de bens de consumo acarretava amplas importações de bens de investimento que superavam o efeito da substituição das importações; de cada fase da substituição das importações, mediante a qual se trazia ao país a produção de mercadorias tecnologicamente cada vez mais sofisticadas, resultava a necessidade de importar bens de investimento tecnologicamente cada vez mais complexos. Em vez de economizar divisas e de descarregar a balança de pagamentos, criavam-se novos déficits que tinham que ser financiados com recursos internos da agricultura para a indústria, fazia com que estagnasse ou até diminuísse a produção de alimentos. Em alguns casos, as importações de alimentos necessárias pesavam consideravelmente na balança de pagamentos [...]. Por isso, após a fase da substituição das importações, alguns países passaram à industrialização para a exportação, para fazer parar, mediante a exportação de produtos industriais acabados, a espiral de dívidas e garantir o atendimento às obrigações. O exemplo do Brasil, no entanto, que a todo custo tenta exportar seus produtos industriais e até armas para resolver o problema da dívida externa, mostra claramente que nem assim se escapa à armadilha das dívidas – muito menos quando uma crise econômica mundial e o protecionismo dos países industrializados restringem fortemente as possibilidades de venda. [Koerner, Maass, Siebold, Tetzlaff, 1984, pp. 50ss.]
De fato, abstraindo-se algumas exceções, a suposta "industrialização para a exportação", em vez de tornar-se uma possível alternativa, somente contribuiu para agravar a crise de dívidas. Apenas algumas poucas mercadorias de países do Terceiro Mundo podiam resistir à concorrência do mercado mundial; assim, por exemplo, nos setores da indústria de mineração e metalurgia (entre outras coisas, aço barato de baixa qualidade), da construção naval, da indústria de armamentos (sobretudo brasileira), da indústria têxtil e naturalmente da agricultura e da indústria, em sua totalidade, pode gerar cada vez menos capacidade aquisitiva produtiva, em virtude do nível de produtividade "demasiadamente alto" que corresponde à sua própria lógica, uma vez que o movimento de expansão, como tal, se transformou há muito tempo substancialmente em estagnação e se intensificou a concorrência nos mercados agora mais "apertados", até os poucos moderados sucessos do Terceiro Mundo na área da exportação tinham que prejudicar os setores correspondentes nos próprios países ocidentais, provocando ali medidas defensivas na forma de subvenções e protecionismo(4).
Ao mesmo tempo continua pesando o montante crescente de juros e amortizações dos créditos dissipados há muito tempo, de modo que as exportações industriais e agrárias têm que ser malbaratadas até chegarem a condições cada vez mais absurdas: assim, os países do Sul realmente definham, com novos surtos de depauperação que resultam na desindustrialização daqueles países em que as estruturas industriais paparicadas a muito custo, mas construídas sobre areia, estão decaindo sob a pressão crescente da concorrência, conforme já mostrou muito cedo o exemplo negativo da Argentina:
A Argentina tornou-se o caso exemplar de uma estratégia impiedosamente praticada de desindustrialização. Entre 1975 e 1982, a produção industrial caiu em 20%, e a ocupação na indústria, em 40%. Crise e desemprego em massa fizeram com que a participação dos salários na renda nacional diminuísse de 49% para 32, 5%. Da baixa econômica resultou uma estrutura industrial desesperadamente arruinada, cujo atraso tecnológico frente à concorrência internacional tinha aumentado mais ainda. [Simon, 1987, p. 158]
Seguindo o exemplo da Argentina, a maioria dos países do Terceiro Mundo que conseguiram instalar rudimentos de uma estrutura industrial tomou esse caminho da "desindustrialização endividada"(5). Com isso está programada para a grande maioria dessas regiões a queda no status de um "caso social mundial", com todas as conseqüências da desestabilização interna.
As poucas exceções, sobretudo os países ascendentes asiáticos na região do Oceano Pacífico, cuja "industrialização para a exportação", observada superficialmente, parece ser bem-sucedida (principalmente os quatro "tigres pequenos": Coréia do Sul, Hong Kong, Taiwan e Cingapura), na verdade não escaparam absolutamente à armadilha das dívidas, permanecendo numa dependência precária dos países ocidentais e não tendo conseguido, até agora, uma modernização e estruturação internas correspondentes ao avanço nos mercados de exportação (isso ainda se aplica, em certo grau, até ao Japão). Uma vez que o fator da mão-de-obra barata está perdendo sua importância e continuará perdendo-a, os bons resultados da exportação somente podem ser mantidos enquanto acompanham o nível mundial da tecnologia e produtividade, com altos investimentos de capital; mas isso significa que essas produções destinadas ao mercado mundial permanecerão ilhas na sociedade e não poderão dar ocupação àquela massa de mão-de-obra que seria necessária para um desenvolvimento interno.
Essa situação pode ser suportável para os estados pequenos ou Estados-cidade como Hong Kong ou Cingapura, mas já para a Coréia do Sul resultará dela, a longo prazo, uma prova de resistência insuportável. A estrutura industrial insular que é capaz de concorrer no mercado mundial está unilateralmente orientada para a exportação, e o mercado interno não pode ser desenvolvido suficientemente porque a industrialização para a exportação, aparentemente bem-sucedida, não pode gerar, em virtude de sua alta intensidade de capital, o volume suficiente de capacidade aquisitiva interna; o fator decisivo nesse processo não é o salário baixo, mas sim a incapacidade destas produções altamente automatizadas de absorver massas suficientes de mão-de-obra.
Por outro lado, os fluxos de exportação, com sua unilateralidade quase já mercantilista, provocam o protecionismo dos países importadores, reação que o Japão experimenta há muito tempo e tenta contornar há anos com os mais diversos truques. A Coréia do Sul já sofreu graves derrocadas de suas exportações por restrições de importação por parte da Comunidade Européia e dos Estados Unidos, enquanto aumentam no interior as tensões e os conflitos sociais, descarregando-se em atos violentos. A dependência total dos mercados estrangeiros ultramarinos e de bens de investimento ocidentais e japoneses (chips, máquinas de ferramentas, técnica de automatização), acompanhada de um desendividamento de modo algum terminado (que a cada momento pode desembocar em novos processos de endividamento), torna esses países hipersensíveis à oscilações da conjuntura mundial: um moderado resfriado recessivo dos estados Unidos já poderia significar sua morte.
Revela-se assim que o Terceiro Mundo ou já fracassou em suas tentativas de modernização – e isto aplica-se à maioria desses países, que desde o fim da descolonização partiram com tanta esperança – ou, no melhor caso, encontrou um status precário, no papel de países ascendentes, que permanece exposto à espada de Dâmocles do mercado mundial e, mesmo assim, já não permite um desenvolvimento interno da sociedade inteira. Esse sacrifício do Terceiro Mundo constitui na verdade uma advertência fatídica para os paises do ex-socialismo real, que ainda não compreenderam sua verdadeira situação porque estão olhando fixamente para o lado errado: para o Ocidente, e dentro deste, por sua vez, exclusivamente para a atual vencedora no mercado mundial, a RFA, em vez de olhar para o Sul, onde se encontra seu futuro verdadeiro dentro da sociedade mundial do mercado e do dinheiro.
Mas enquanto as massas e os estrategistas econômicos do Leste mantêm seus olhares esperançosos dirigidos para o Oeste, imaginando que o "choque da adaptação" e a marcha através do vale de lágrimas tenham que conduzir logo à prosperidade da economia de mercado, a crise da reforma nada mais indica do que o fato de eles já estarem, na realidade, a caminho do Sul. Simplesmente ignoram o fato de que o Terceiro Mundo já percorreu a maior parte do processo de colapso, representando assim o verdadeiro modelo da modernização recuperadora para o resto deste século e o começo do próximo.
De fato, as estruturas internas da modernização no Terceiro Mundo e no socialismo real revelam a posteriori uma afinidade surpreendente quando nos abstraímos do revestimento ideológico e político. E após depositar-se a poeira ideológica, por ter parado o movimento histórico que a levantou, sobressai claramente a problemática básica idêntica dessa modernização recuperadora. Também nas sociedades em desenvolvimento da época pós-colonial do Terceiro Mundo, o elemento estatista da modernidade tinha que impor-se frente ao monetarista com maior ímpeto do que no Oeste, para possibilitar processos de industrialização. Os regimes da modernização no Hemisfério Sul, seja sob a estrela do marxismo e na forma de "movimentos nacionais libertadores" (Cuba, Vietnã, Angola) ou seja na forma de ditaduras militares pró-ocidentais e regimes de "revolução branca" (Brasil, Irã), geraram, do mesmo modo que o Leste, estruturas estatistas do sistema produtor de mercadorias e, com estas, planos qüinqüenais e burocracias de planejamento estatais.
A despeito de suas ideologias extremamente opostas e mortalmente inimigas, todos esses sistemas enfrentavam o mesmo problema: toda modernização recuperadora do século XX, não apenas aquela do Leste, estava obrigada a repetir, de uma maneira ou outra, as estruturas mercantilistas dos séculos XVII e XVIII, porém num nível de desenvolvimento muito mais elevado. Em todos os países do Terceiro Mundo, o Estado transformou-se numa gigantesca máquina burocrática, para muito além da base produtiva. Pequenos grupos parasitários ocupavam as alturas do comando, enquanto o aparato em geral alimentava uma boa parte da classe média, criando capacidade aquisitiva improdutiva em grande escala.
O Estado ou desempenhava, como no socialismo real, o papel de proprietário e explorador das indústrias-chave ou pelo menos as subvencionava numa extensão muito maior do que o faria o sistema da economia de concorrência do Oeste. Dessa maneira surgiu uma classe de trabalhadores industriais estatizada ou alimentada intravenosamente pelo Estado, classe que na maioria dos países do Terceiro Mundo se integrou à classe média, enquanto a grande massa da população ficava fora do aparato estatal e da produção industrial insular para o mercado mundial, acabando na miséria.
E do mesmo modo como aconteceu mais tarde no socialismo real, essa estrutura de reprodução da modernização recuperadora já fora atacada por dois lados dez anos antes. Por um lado, a tendência inflacionária desse sistema abriu com toda força o caminho à superfície do mercado. A subvenção permanente das indústrias e do aparato estatal abalofado (bem como a subvenção dos alimentos básicos, com a qual se pretendia manter quietas as camadas leprosas da modernização), tornou-se insustentável. Passou a ser apenas aparentemente financiada mediante a impressão de notas de banco. As conseqüências foram hiperinflações que até hoje sacodem essas sociedades com novos surtos. Por outro lado, porém, a maioria das indústrias subvencionadas já não conseguiu acompanhar o mercado mundial, em virtude do crescimento da produtividade e intensidade de capital, dando origem a todas as conseqüências já expostas, desde a dívida externa até a desindustrialização.
A semelhança com o processo de colapso do socialismo real é evidente demais para se passar por cima dela. Nisso repararam posteriormente também as instituições de crédito internacionais, orientadas pela economia de mercado no sentido ocidental, como o Banco mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional), que se tornaram grandes credores das economias em colapso. De repente descobrem precisamente nos regimes pró-ocidentais, antigamente mimados, os supostos pecados contra a economia de mercado e comparam as estruturas de países como o Brasil, sem consideração do verniz ideológico que já se gastou tanto aqui quanto ali, àquelas da RDA, da União Soviética, da Polônia ou da Romênia.
No entanto, confunde-se também nesse caso a causa com o efeito, do mesmo modo que nas novas reformas orientais no sentido da economia de mercado. Pois também aqui, os pecados estatistas não eram nenhum "erro", mas sim uma necessidade involuntariamente aceite, para poder sobreviver ao menos durante algum tempo no invólucro do sistema mundial produtor de mercadorias. Caso se desmontem essas estruturas, podem apenas seguir novos e piores processos de colapso, por mais demorados e dolorosos que sejam. Mas precisamente isso exige o FMI, seguindo a lógica cega do dinheiro. No entanto, cada passo de desmontagem da burocracia estatal e das subvenções apenas pode servir para acelerar os processos da desindustrialização, do endividamento externo e da depauperação.
O FMI, o Banco Mundial e os demais grandes credores ocidentais já levaram há muito tempo o Terceiro Mundo à desestabilização interna política e social. Já não se trata ali de uma estratégia alternativa e concorrente ("socialista") de desenvolvimento, modernização e industrialização, mas apenas de processos de decadência de sociedades pós-catastróficas. O lugar do modelo oposto está vazio, porque dentro das formas do sistema produtor de mercadorias não pode haver nenhuma alternativa. Do mesmo modo que as sociedades em desenvolvimento pró-ocidentais, as pró-soviéticas estão decaindo sobre o mesmo fundamento do trabalho abstrato. Os "movimentos libertadores", que somente podiam atuar dentro desse sistema de referências, estão perdendo seus objetivos e sua credibilidade; em parte depuseram as armas, em parte degeneraram a armadas clientelas de interesses particulares nas lutas barbarizadas pela distribuição – na América Latina parecem confundir-se com a máfia de drogas.
Mas as coisas não podem ficar como estão. Reações violentas, mesmo que sejam apenas eruptivas e sem rumo fixo, são inevitáveis e cada vez mais freqüentes. Isto mostram não apenas os tumultos devidos à falta de pão que se dirigem com violência crescente contra a supressão da subvenção dos alimentos, forçada pelo FMI. Também as camadas que até agora constituíam a classe média no Terceiro Mundo estão sendo atropeladas pela lógica impiedosa do dinheiro. E tanto mais desesperada será a revolta, quanto maior o esforço com que está à procura de alguma legitimação intelectual.
Em algumas partes da Ásia, na Arábia e no norte da África, a re-islamização transformou-se numa militante ideologia substitutiva dirigida contra o Oeste, o qual está criando ali, atrás de suas costas, uma nova espécie de coveiros que, apesar de não possuírem nenhum objetivo transcendente, não recuam diante de absolutamente nada. No entanto, o fundamentalismo islâmico não tem quase nada em comum com a antiga cultura islâmica da pré-modernidade, além do próprio nome. Pois essa cultura não pode ser separada daquelas estruturas de reprodução tradicionais, pré-capitalistas e fundamentadas numa sociedade agrária que desaparecera, no mundo inteiro há muito tempo.
Assim, o Islã constitui no fundo apenas um invólucro ideológico para tendências de desenvolvimento da barbárie secundária, nas quais as massas desarraigadas e depauperadas estão lutando cegamente e sem perspectiva alguma contra a lógica do mercado mundial, tentando escapar a esta. Mas esse fundamentalismo torna-se tanto mais perigoso e pseudo-religioso quanto mais vai além das massas encortiçadas das revoltas de fome e toma conta daquelas camadas da classe média que pelas leis do dinheiro e por seus executores do FMI são expulsas de sua vida anterior e lançadas na miséria. Isto já nos mostrou o desenvolvimento no Irã, que dificilmente deve ter sido a última palavra da islamização antiocidental.
Mas mesmo que o fundamentalismo tenha traços bárbaros, estes não são mais bárbaros do que tudo aquilo que os senhores "civilizados" das instituições financeiras internacionais exigem da humanidade. Para a massa crescente daqueles que "caíram fora", a barbárie do dinheiro "oficial" deve ser subjetivamente ainda mais terrível do que o domínio patente da máfia(6), a qual, como forma clandestina e ilegal da lógica do dinheiro, pelo menos ocasionalmente deixa transparecer a caricatura de traços humanos perceptíveis.
A ideologia secundária islâmica, apesar de ser apenas uma formação regressiva e reativa, incapaz de legitimar alguma socialização alternativa no nível do desenvolvimento moderno das forças produtivas, pelo menos serve para expressar de alguma forma o sofrimento das massas desorientadas na modernização em colapso. É bem possível que do fundamentalismo possam nascer empreendimentos agressivos de comando e kamikases ou até maiores golpes militares desesperados contra os centros do mercado mundial. O fundamentalismo já tomou conta de todo o litoral mediterrâneo norte-africano, e as repúblicas muçulmanas da União Soviética começam a tomar o mesmo rumo. Pode ser que em um futuro não muito distante, quando a agressividade muito mais inescrupulosa do fundamentalismo islâmico chegar a ameaçar toda a região, os países mediterrâneos europeus lambam os beiços à procura de um político tão moderado como Kadhafi (que agora tem que servir de bicho-papão).(7)
Mas também as sociedades em outras regiões do desastre da modernização estão cada vez menos dispostas a confiar nas promessas vazias de um próspero futuro na base da economia de mercado. Pois em oposição ao socialismo real, que só agora está vivendo seu colapso, grandes partes do Terceiro Mundo já passaram a esse respeito por experiências demais, de modo que nem sequer seus representantes e publicistas moderados e tendencialmente pró-ocidentais podem juntar suas vozes à ingênua euforia dos reformadores orientais com a economia de mercado:
Enquanto o ex-bloco oriental tem fortes tendências de adotar a economia de mercado e o capitalismo provado, muitos pequenos países do Terceiro Mundo distanciam-se dessas formas. A nova "cortina de ferro" ideológica está se deslocando em direção ao Equador. Para o primeiro-secretário da missão polonesa permanente na ONU em Genebra, Maciej Lebkowski, "a dominante doutrina de crescimento e desenvolvimento dos anos 90 fundamentar-se-á no princípio da economia de mercado. Atribuirá ao setor não estatal a função de motor do crescimento". Na opinião do brasileiro Marcos Arruda, "o mundo deveria abandonar as leis econômicas de mercado [!], bem como a lógica do capital [!], como mecanismo diretor principal da atividade econômica, da distribuição do poder e do saber, pois a estação final lógica destas será a desumanização e a morte". [Handelsblatt, 5.10.1989]
Nada poderia caracterizar a situação de forma mais adequada do que essa controvérsia estranha por ocasião do 25º aniversário da Conferência de Comércio e desenvolvimento da ONU (UNCTAD), em outubro de 1989. Enquanto pelo menos uma parte dos ideólogos e da classe política do Terceiro Mundo, em virtude de suas experiências amargas, já começa a abandonar as ilusões de uma nova economia de mercado, as sociedades do ex-socialismo real evidentemente têm que se arruinar pela segunda vez antes de perceberem que a inversão da polaridade ideológica na prática não os levará nenhum passo à frente.
De fato, quase todos os Estados do ex-bloco oriental, independentemente da situação de suas reformas no sentido da economia de mercado, entraram no final dos anos 80, do mesmo modo que o Terceiro Mundo, na fase do endividamento galopante. Os primeiros a se meterem no redemoinho da "industrialização endividada", paralelamente aos países do Terceiro Mundo, foram sobretudo a Polônia e a Romênia; bem como no Terceiro Mundo, os respectivos governos, numa combinação de substituição das importações e industrialização para a exportação, tinham financiado, com créditos procedentes dos mercados financeiros internacionais, ambiciosos megaprojetos industriais (que em conjunto nunca alcançaram a capacidade de concorrer no mercado mundial), caindo na mesma armadilha de dívidas que o Brasil e a maioria dos outros Estados do Terceiro Mundo.
Desde o princípio foi um grandioso mal-entendido quando o movimento operário e oposicionista polonês, como precursor das chamadas revoluções no Leste, tentou enfrentar um suposto desgoverno socialista (idéia que mais tarde se consolidou na ilusão do "modelo errado"), quando atrás da máscara ideológica do regime se ocultava na verdade o mesmo problema fundamental da modernização ao qual sucumbiam também os Estados pró-ocidentais do Terceiro Mundo. E com as mesmas conseqüências que no Terceiro Mundo, responsabilizou-se pelo colapso das estratégias de modernização as massas, sujeitando-as às mais graves restrições. E isso com brutalidade especial na ditadura da Romênia, que até a queda do Conducator Ceausescu tinha que passar por vários invernos de forme.(8)
Transparece assim a ironia sarcástica da história de que, nas duas décadas passadas, tentaram enfrentar a mesma lógica da modernização recuperadora, condenada ao fracasso, a maioria dos povos do Leste, em nome dos "ideais" ocidentais da economia de mercado, e muitos povos do Sul, em nome dos "ideais" orientais socialistas. Somente agora, no colapso comum, revela-se a identidade secreta das ideologias concorrentes dentro dessa constelação histórica.
Enquanto inicialmente parecia que casos problemáticos como a Polônia e a Romênia, países já relativamente industrializados em comparação ao Terceiro Mundo, deviam-se a meros erros estratégicos da administração, essa avaliação provou ser errada o mais tardar no início dos anos 90. Hoje não escapa nenhum pais do ex-socialismo real à armadilha das dívidas, nem sequer a antiga potência mundial no sotavento, a União Soviética.
Muito longe de constituírem "novos mercados gigantescos", os países do Leste "terão também no futuro cada vez menos importância como parceiros comerciais", conforme constata num estudo o Instituto para Comparações Econômicas Internacionais em Viena, e não só este (Handelsblatt, 7.6.1988). No mesmo grau em que "triunfa" o Oeste e as produções do Leste estão perdendo a capacidade de concorrer no mercado mundial, ficando paralisadas, perde-se também a capacidade de pagar as importações de bens de investimento e de consumo. E aquilo que foi a causa "externa" do colapso das estruturas do socialismo real tampouco pode ser melhorado ou até superado mediante créditos procedentes dos mercados financeiros e das instituições de crédito internacionais. Isso já provou na prática a experiência do Terceiro Mundo.
Quando o mercado mundial já pronunciou, em princípio, a sentença de morte e não se consegue mais levantar por força própria os investimentos para a conservação ou até a ampliação dos mercados de exportação, os capitais monetários necessários não podem mesmo ser obtidos mediante créditos estrangeiros. Pois estes precisam ser amortizados – precisa-se pagar juros por eles -, conduzindo esse caminho diretamente à armadilha das dívidas, que se fecha tão logo o custo dos créditos comece a superar o rendimento dos investimentos financiados a crédito.
Por isso, são completamente inúteis as goodwill tours de um Lech Walesa, que à procura de créditos percorre todas as partes do mundo, mesmo que temporariamente afluam novos créditos. Pois a Polônia hoje já é um caso problemático do FMI. Dificilmente poderá continuar por muito tempo tirando proveito de sua virada ideológica, e isso muito menos porque, com o colapso da União Soviética, também o motivo da concorrência de sistemas deixou de ser atraente para os credores ocidentais. Em princípio, trata-se da mesma atitude desesperada com que já fracassou o Terceiro Mundo. Só que o desastre ainda se acelerou, tornando-se insolvente, no Leste europeu, um país após o outro.
No final de março, os bancos credores ocidentais da Bulgária receberam do Banco do Comércio Exterior em Sófia, por telex, uma notícia funesta: por causa da situação cada vez pior da economia e das divisas, a Bulgária não poderia amortizar por enquanto as dívidas. Far-se-ia, porém, um esforço para pagar os juros vencidos sobre as dívidas com os bancos internacionais. No fundo, os banqueiros ocidentais deveriam estar agradecidos por este grito de socorro vindo de Sófia. Pois a insolvência agora oficialmente declarada dos búlgaros pode servir como sinal de aviso de uma solvência claramente decrescente da maioria dos países do Leste europeu que estão dispostos a reformas. Os búlgaros podem muito bem ser os precursores de notícias funestas semelhantes vindas da Hungria, que está gemendo sob sua carga relativamente maior de dívidas comerciais com os bancos ocidentais (Handelsblatt, 9.4.1990).
A própria União Soviética, considerada ainda nos anos 80 por muito tempo um devedor exemplar, tornou-se, tanto por seus surtos violentos de colapso quanto por seus primeiros passos de reformas, um país de crise de dívidas, pois os empréstimos tomados pelas empresas no exterior ocidental já não estão garantidos de um modo geral pelo Estado.
Notícias sobre dificuldades de pagamentos por parte das empresas soviéticas fizeram com que os bancos alemães ficassem em alerta. Ainda são sobretudo exportadores da RFA que estão à espera de seu dinheiro. Mas os bancos já passaram a rever suas atividades na URSS. Está se desfazendo claramente a reputação da URSS de bom devedor. A causa são os efeitos negativos da liberalização da economia soviética, que encontrou tanta simpatia no Oeste. Ela trouxe para as empresas da URSS uma restrição da soberania do comércio exterior. [...] A conseqüência é que os combinats estão progressivamente atrasando seus pagamentos. [...] Surge a suspeita de que a União Soviética tenha agudos problemas de divisas. [...] A nova situação já se reflete claramente na reputação da União Soviética como devedor. Alguns anos atrás, quando se tratava de conceder créditos à URSS, os bancos praticamente brigavam para participar no negócio. A União Soviética era considerada um ótimo endereço, concedendo-se os créditos sem maiores garantias. Entrementes, as coisas mudaram completamente. Os créditos ficam mais caros. [Handelsblatt, 11.5.1990].
Revela-se assim uma conexão realmente precária entre problemas de divisas e liberalização: pois, na verdade, obrigou também a esta última a insolvência do Estado. Quando pára a entrada de divisas porque a exportação está em colapso, o Estado já não pode garantir de modo global a dívida externa. Transfere o problema para as empresas individuais, abandonando-as a sua própria sorte no atendimento aos créditos estrangeiros. Dificuldades de pagamento bem semelhantes são relatadas a respeito da China, onde a "auto-responsabilidade" das empresas, que nascem das reformas não terminadas de Deng, prejudicou imediatamente sua reputação internacional como devedor.
Mas ali onde subsiste a antiga estrutura estatal e centralizada do comércio exterior, o Estado simplesmente tem que suspender o atendimento aos créditos estrangeiros. Isto mostra-se de forma exemplar no grande devedor "socialista" da Ásia, a Coréia do Norte, que caiu para último lugar na lista internacional dos devedores confiáveis, ultrapassando até Bangladesh e ficando assim quase excluída do comércio internacional. As conseqüências não podem deixar de aparecer. Provavelmente, também o regime de Kim-Il-Sung terá um fim terrível.
A crise da reforma interna, como reação ao colapso da economia de comando estatista, supostamente apenas um choque de adaptação temporário, desemboca diretamente na segunda crise de dívidas, que é ainda mais um beco sem saída e que não ficará atrás nem um pouco daquela do Terceiro Mundo. A estimulação das exportações a todo custo, para a armadilha das dívidas não se fechar definitivamente, conduz com velocidade ainda maior ao mesmo processo de dessangramento que se dá na África e na América latina e tem que acabar na mesma "desindustrialização endividada". Já estão acontecendo as primeiras conversões de dívidas, que apenas fazem com que se acumule mias dívidas ainda.
Pode até ser que as sociedades industrializadas do Leste, há pouco tão orgulhosas, alcancem com maior rapidez do que poderiam imaginar os pessimistas mais ousados o status de casos sociais mundiais, tal como já o possuem Bangladesh, Etiópia ou Tchad. Impõe-se essa suspeita quando tanto as divisas obtidas da economia quanto os créditos estrangeiros cada vez menos podem ser empregados no atendimento às dívidas ou até em investimentos, mas sim têm que ser dissipados no consumo indispensável das massas (sob pena de revolta aberta ou de guerra civil).
Já que as formas do sistema produtor de mercadorias subsistem incólumes, perdendo porém de mês para mês uma parte de sua substância "produtiva" em comparação ao nível mundial, desenvolve-se uma fome insaciável pela entrada de capital monetário, que já não pode ser satisfeita mediante a substancia de valor existente. Os bancos comerciais retiram-se, bem como fazem frente aos grandes devedores do Terceiro Mundo, do papel de credores, tentando recuperar o que podem em negociações cansativas e insistentes sobre a amortização. Cada vez mais países, primeiro do Sul e agora também do Leste, estão falindo. Quando se tornam casos sociais mundiais, o problema passa a atingir a política mundial.
Os créditos comerciais cada vez mais escassos têm que ser substituídos em extensão crescente pela entrada de capital monetário procedente das grandes instituições internacionais (FMI, Banco Mundial, ONU), que dessa maneira se transformam em "governos paralelos" e minam a soberania dos Estados devedores. Mas uma vez que elas estão sujeitas à mesma lei do dinheiro, tendo que insistir no pagamento de juros, na amortização, apertam também inexoravelmente os torniquetes e insistem em suas famosas condições (diminuição de regulamentação, privatização, redução das subvenções), e isto com o maior sangue-frio, uma vez que deixam com os chefes dos governos locais, cuja função se aproxima dessa maneira cada vez mais do comando sobre um suicídio coletivo.(9)
Alcança-se a fase final quando um caso social mundial acaba completamente separado da circulação global do dinheiro, ficando seus próprios recursos paralisados por causa da rentabilidade insuficiente e podendo-se manter viva a maioria da população apenas mediante doações caritativas de organizações assistenciais internacionais. É alarmante que essa situação se apresente hoje até em conexão com a própria União Soviética, já no começo de sua carreira de colosso com "desindustrialização endividada". Parece sarcasmo que o jornal Bild e outros órgãos e instituições da antiga guerra fria passem a organizar remessas caritativas para a população faminta de Moscou e Leningrado ("Meu coração bate pela Rússia"). Isto mostra com que dinâmica e aceleração, sob a pressão dupla do colapso do sistema e da crise da reforma, se desenvolvem as carreiras orientais de sociedades pós-catastróficas.
Considerando-se numa retrospectiva histórica tanto o terceiro Mundo quanto o socialismo real do tipo soviético, pode-se de fato falar de sociedades de acumulação primitiva, sendo esta última de natureza recuperadora. Sem dúvida, esses tipos de sociedades distinguem-se entre si tanto em seu curso histórico quanto em sua acentuação sócio-econômica, mas distinguem-se ainda mais dos antigos processos de acumulação primitiva na Europa, desde o século XVII.
Os três tipos de acumulação primitiva somente têm uma coisa em comum: a expulsão violenta, realizada em formas bárbaras, dos tradicionais "produtores diretos", na maioria de proveniência camponesa, de seus meios de produção e as "torturas" por eles sofridas ao serem forçados ao status moderno de trabalhadores assalariados, o qual exige o sistema da mercadoria moderna como status de grandes massas. Produtores de subsistência, no sentido mais amplo, transformam-se em trabalhadores assalariados efetivos ou potenciais e, com isso, em modernos sujeitos-mercadoria-dinheiro, ainda que inicialmente de forma muito grosseira, acompanhados de restos e escórias das tradicionais estruturas estamentais pré-capitalistas. O que Marx descreveu para a Inglaterra dos séculos XVI e XVII poderia ser descrito analogamente para a Rússia do início do século XX e para o Brasil ou a Índia do fim deste século. A esse respeito, o que distingue as diferentes regiões do mundo é apenas a diferença temporal no processo histórico da modernidade.
Mas esse processo gerou em escala crescente cada vez mais forças produtivas científicas, até alcançar, em nossos dias, a beira da supressão, por parte do próprio capital, da substância de "trabalho" produtivo do capital. E precisamente nesse desenvolvimento e aumento da produtividade, que faz colocar em alturas incríveis a régua de mediação da rentabilidade, podem ser observadas as diferenças essenciais na tipologia da acumulação primitiva.
Na Europa, o estatismo criador de "casas de detenção e trabalho" limitou-se à primeira fase do mercantilismo porque a enorme massa inerte da economia de subsistência, por falta de pressão externa, não podia ser transformada em pouco tempo. E isso nem era necessário. O sistema produtor de mercadorias, ou seja, o capital, dispunha de um período de mais de três séculos para absorver as massas desvinculadas com violência maior ou menos das produções agrárias e artesanais. E conseguiu isto em fases de desenvolvimento que se seguiam uma à outra com velocidade cada vez maior, interrompidas apenas por breves "crises de imposição".
O nível de desenvolvimento da força produtiva daquela época, em que a penetração das ciências ainda estava nos inícios, até reproduzia por parte do capital, nas palavras de Marx, uma "fome canina" de força de trabalho viva. Foi muito demorado o processo em que a produção da "mais-valia absoluta" (prolongamento da jornada de trabalho até a exaustão, trabalho infantil, etc.) foi substituída pela "mais-valia relativa" (redução do custo de reprodução do trabalhador mediante produtividade elevada, aumentando assim a participação relativa da mais-valia na produção global do valor). O problema não era a falta de trabalho dentro do capital, mas sim a natureza grosseira desse próprio trabalho.
Devido à ação conjunta de reformas sociais estatistas (por exemplo, a legislação social de Bismarck) e da luta do movimento operário, as massas podiam desenvolver-se em sujeitos-dinheiro "civilizados" e socialmente pacificados em alto grau e em sujeitos-cidadãos democráticos. Nas chacinas gigantescas das guerras mundiais evaporavam mais uma vez escórias estamentais e resíduos pré-capitalistas. Mas a violência dessa época já não se limitava a esse fim, em oposição às revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX. O enorme tributo de sangue das guerras mundiais já se devia, no mesmo grau, mais ás contradições internas da modernização que à imposição desta contra resíduos pré-modernos. Pois as economias de guerra da época das guerras mundiais já encontraram formados os traços fundamentais da subjetividade de massa ocidental modernizada, podendo operar com esta. Por isso, no fim da Primeira Guerra Mundial, bastaram algumas intervenções sociais não muito profundas (por exemplo, a abolição da monarquia e do sufrágio prussiano, com três categorias de eleitores) para escalar o próximo degrau da modernização.
Por causa dessa vantagem histórica,a parte ocidental do sistema mundial produtor de mercadorias podia conservar, apesar da grave derrocada da crise econômica mundial, de 1929 a 1933, seu status global e, com o boom fordista da época pós-guerra, até melhorá-lo. Esse boom, que sujeitou ao capitalismo os últimos poros da reprodução social e engoliu os setores tradicionais até então também existentes nos países ocidentais (compare Lutz, 1984) e que ao mesmo tempo estabeleceu o mercado mundial total como ponto de referência obrigatório para todos os países unidos sob o teto da Pax Americana, parecia poder absorver outra vez a força de trabalho abstrata do mundo inteiro. Mas com a decadência do boom fordista e o desenvolvimento das forças produtivas completamente novas, da racionalização e automação, foram também estabelecidas novas condições irreversíveis da rentabilidade, nas quais começou a manifestar-se, pela primeira vez, o limite lógico inerente ao movimento de exploração abstrata da força de trabalho.
O desemprego em massa, que primeiro apareceu temporariamente durante a crise econômica mundial, tornou-se um problema permanente da sociedade mundial. Os países ocidentais, graças a sua vantagem histórica e sua produtividade cada vez mais avançada, podiam "exportar", pelo menos em parte, esse problema; mas a situação global do sistema mundial produtor de mercadorias tornou-se precária. Essa produtividade sempre crescente, que excede a capacidade de absorção da produção de mercadorias, não podia ficar sem repercussão catastrófica nos processos recuperadores da acumulação primitiva.
Já o tipo soviético dessa acumulação primitiva, no início do século XX, não estava mais em condições de adotar o passo relativamente lento com que se desenvolvera o sistema produtor de mercadorias na Europa ocidental. A União Soviética tinha que exagerar o elemento estatista, isto é, transformar toda a sociedade numa máquina de trabalho abstrato comandada de forma quase militar, para impor a lógica do capital. Essa experiência apresentava-se ao Ocidente, já mais desenvolvido sobre a mesma base, como pólo oposto e inimigo ou até como "reino do demônio". Mas com isso levava a sério a ideologia soviética, em interesse de sua própria legitimação. Também as massas ocidentais sentiam repugnância e aversão frente à imagem nada irreal das "formigas azuis", dos soldados de trabalho com sua vida cotidiana de caserna terrivelmente monótona, parecendo a liberdade ocidental áurea em comparação com ela.
Mas, na verdade, as "formigas azuis" nada mais eram, do ponto de vista histórico, que uma forma disfarçada do mesmo sujeito-dinheiro abstrato que no ocidente surgira há muito tempo e fora liberado para fazer parte da história como mônada "livre" do mercado total. Considerando dessa maneira, o conflito acabado entre o Leste e o Oeste pode ser compreendido, pelo menos quanto ao aspecto ideológico, como uma espécie de mal-entendido, como controvérsia entre duas fases históricas não sincrônicas do mesmo sistema produtor de mercadoria. O núcleo real dessa controvérsia nada mais era que a concorrência entre economias nacionais atrasadas e outras mais adiantadas.
Mas nesse caso, a dissolução dessa constelação conflituosa está sujeita a uma interpretação equívoca, tal como aparece na ilusão dos "modelos". O capitalismo ocidental não venceu o "socialismo", mas sim fracassou a modernização recuperadora do tipo soviético. Ainda assim, esse segundo tipo de acumulação primitiva chegou a realizar historicamente, mesmo que tenha sido em reclusão, uma industrialização que cobria grandes áreas e uma estruturação profunda da sociedade. Mas hoje, sob a pressão do mercado mundial, já não consegue manter esse nível.
Sem dúvida, as massas do Leste estão pensando e agindo de forma conseqüente ao aspirarem romper finalmente seu próprio casulo em que vivem como "formigas azuis", como soldados de trabalho de uma economia de comando produtora de mercadorias, e a entrar na vida de "liberdade e aventura", tal como a sugere a propaganda de Marlboro, como sujeitos-dinhero, sujeitos-opinião e sujeitos-votação "livres" e abstratos, segundo o modelo ocidental. Mas essa aventura está programada há muito tempo para ser uma segunda catástrofe social. Pois não compreendem que na verdade a economia de comando, com todos os seus fenômenos concomitantes corrosivos, foi o preço histórico pela oportunidade de existir por algum tempo nas estruturas de uma moderna sociedade industrial e dentro do horizonte das necessidades desta última. Mas agora está sendo arrasada, junto com as estruturas da economia de comando, também sua substância de sociedade industrial. As "formigas azuis" foram liberadas de seu casulo e transformadas em sujeitos-dinheiro abstratos e livres – e estão sem dinheiro. Não sabem o que está acontecendo com elas enquanto percorrem a estrada de sua segunda depauperação, no fim da qual nada mais encontrarão do que a barbárie secundária.
O Terceiro Mundo, como tipo historicamente mais tardio da modernização, já percorreu esse caminho. Aqui realizou-se a maior parte da acumulação primitiva somente após a Segunda Guerra Mundial, isto é, num nível muito mais elevado do desenvolvimento do mercado mundial e da produtividade que no tipo soviético. Por isso, já não foi possível, desde o princípio, uma reclusão frente à lógica de produtividade e rentabilidade do mercado mundial, demasiadamente poderosa. Nas sociedades do Terceiro Mundo, o desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias tinha que dividir-se, portanto, em duas tendências completamente distintas.
O processo de acumulação primitiva atingiu a sociedade inteira apenas em um aspecto: a economia de subsistência tradicional, que em grande parte sobreviveu à época colonial, foi destruída em poucas décadas com a mesma brutalidade que se empregava na União Soviética e numa época ainda mais remota na Europa ocidental, em parte pelos mesmos métodos de faroeste que já usavam os latifundiários da Inglaterra,(10) em parte pela pressão indireta do mercado mundial e pela destruição de sistemas ecológicos fechados. Mas já que a abertura forçada ao mercado mundial e a exigência de uma produtividade elevada impediam uma industrialização recuperadora completa e extensa, a acumulação primitiva não chegou a terminar sua obra. Ficou parada na metade do caminho, isto é, depois de desarraigar as massas, deixou de integrá-las na moderna máquina de exploração em empresa.
Desde o princípio, a industrialização foi apenas seletiva, limitando-se a algumas fábricas isoladas que produzem para o mercado mundial. O setor moderno, com a infra-estrutura correspondente, sempre existiu apenas como corpo estranho num a sociedade que já não pôde penetrar inteiramente. A maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo, isto é, foram destruídas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse seu lugar. E desde os anos 70 intensificou-se extraordinariamente esse desenvolvimento, ao qual o terceiro Mundo pós-colonial estava predestinado desde o princípio.
O que hoje faz sofrer as massas do Terceiro mundo não é a provada exploração capitalista de seu trabalho produtivo, conforme continua acreditando, de acordo com a tradição, a esquerda, mas sim, ao contrário, a ausência dessa exploração. Por isso, também não pode haver nesses países uma reforma social-democrata burguesa. Ninguém "precisa" da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando esta parte uma vida miserável e improdutiva fora de qualquer estrutura de reprodução coerente. Até a ascendente Coréia do Sul, com sua prosperidade temporária e seu sucesso nos mercados de exportação, mandou demolir com tratores favelas inteiras de sua capital Seul e expulsar os moradores, por ocasião das Olimpíadas de 1988, para não ter que revelar ao mundo a face leprosa de seu rosto.
A maioria da população mundial já consiste hoje, portanto, em sujeitos-dinheiro sem dinheiro, em pessoas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social, nem na pré-capitalista nem na capitalista, e muito menos na pós-capitalista, sendo forçadas a viver num leprosário social que já compreende a maior parte do planeta. Não fala a favor da compreensibilidade do mundo que ele fique observando esse espetáculo há mais de duas décadas e continue praticando impassivelmente e sem crítica precisamente aqueles negócios cujo andamento apenas acelera cada vez mais o desastre, que por fim não poupará ninguém.
No atual momento, em que as massas do Leste passam a fazer companhia aos sujeitos-dinheiro sem dinheiro e começam a desmoronar-se outras partes gigantescas do sistema produtor de mercadorias, poder-se-ia pensar que atingimos o limite do suportável. Mas enquanto ainda existe algum vencedor no mercado mundial, subsiste evidentemente a ilusão de que a humanidade possa continuar reproduzindo-se nesse sistema e alcançar novos continentes. As elites e camadas superiores do Terceiro Mundo, que já cercaram suas residências de arame farpado, deixaram de pôr o pé em vastas regiões de seu próprio país e somente ousam sair na rua armadas, obviamente já não consideram seres humanos a maioria de seus chamados concidadãos.
São essas minorias que se aferram às estratégias de privatização e abertura do FMI, sustentando as miragens a que figuras como Collor de Mello no Brasil, Carlos Menem na Argentina ou Alberto Fujimori no Peru e semelhantes atores da cena política na África e na Ásia devem sua ascensão.(11)
As mesmas ilusões proliferam no Leste europeu, mas não se limitam a uma minoria. As massas simplesmente não podem imaginar que possam ser lançadas para fora da estrutura de necessidades própria de países plenamente industrializados e condenadas a viver na miséria.
Os perdedores do Sul e do Leste não querem compreender que a situação do passado recente, que caiu na crise e contra a qual lutaram, já foi a modernização, a única historicamente possível para eles dentro do contexto do sistema mundial produtor de mercadorias. Não seguirá a esta nenhuma "metamodernização", mas apenas horror infinito das sociedades pós-catastróficas. O programa de ação da ONU de 1981 fracassou completamente, conforme teve que admitir, no outono de 1990, a Conferência de Paris sobre problemas de estados menos desenvolvidos (também chamados, com ironia maliciosa, de "clube dos mais pobres"):
Nove anos depois da anunciação orgulhosa do programa mundial de desenvolvimento para os estados mais pobres do globo, a ONU tem que limitar-se, na conferência ontem iniciada em Paris, a constatar o seguinte: os anos 80 foram uma "década perdida" para os mais pobres. Até trouxeram um agravo considerável da miséria. [Nuernberger Nachrichten, 4.9.1990]
Essa constatação foi também uma declaração de capitulação, pois nem foi possível votar um novo programa cosmético. A Conferência de Paris foi um fracasso. As frentes entre os países ocidentais e as casas de misericórdia do Terceiro Mundo estavam traçadas desde o princípio. Assim, o único resultado foi de natureza triste:
Já se tem certeza de que a Libéria será aceita pelo plenário da ONU no "clube" dos estados mais miseráveis, depois de sua indústria de mineração ter sido completamente destruída pela guerra civil. Desde 1970, esse "clube" vai crescendo a cada ano em mais de um país. Mas nenhum Estado conseguiu desde então sair do círculo dos miseráveis. [Nuernberger Nachrichten, 15.9.1990]
Quanto mais países compartilham desse destino, quanto mais se afasta para massas humanas cada vez maiores a Fada Morgana do desenvolvimento e da prosperidade baseada na economia de mercado, tanto mais clara e inevitável apresenta-se essa perspectiva negativa: o sistema da mercadoria moderna chegou ao fim, e junto com ele a subjetividade burguesa do dinheiro, porque esse sistema, na área da produtividade, passou de seus próprios limites e já não consegue integrar em sua lógica a maioria da população mundial. Mas para que a crise da forma-mercadoria possa entrar na consciência da sociedade, fazendo com que se desvaneçam as últimas ilusões, é mister haver outro perdedor, o último, e este somente pode ser o ocidente, o criador do capitalismo, que morrerá asfixiado por seus próprios triunfos.
Notas de rodapé:
(1) Essa expressão foi criada por Vladimir Kostiushev, autor soviético da perestroika, que atribui a ela, no entanto, um significado completamente diferente (e ilusório). Pois para ele a catástrofe era o stalinismo, o qual hoje já não pode ser compreendido, na União Soviética, como forma recuperadora da acumulação primitiva, mas sim apresenta-se como crime puramente subjetivo, de modo que o termo "sociedade pós-catastrófica", deste ponto de vista, se refere à superação incompleta do stalinismo na época pós-guerra, até Brejnev. Nunca ocorreu aos neodemocratas soviéticos que precisamente a própria perestroika possa ser a expressão da catástrofe do mercado mundial que atinge o socialismo real e que a crise da reforma possa determinar o curso posterior, pós-catastrófico, das coisas (compare Kostiuschev, 1990, pp. 143 ss.). Deveriam, porém, compreender como advertência fatídica o que cabe dizer hoje em relação à África: "A catástrofe vai continuar durante décadas". (Sueddeutsche Zeitung, 12.1.1991). (retornar ao texto)
(2) O fato de esse modo de pensar estar amplamente divulgado precisamente na esquerda deve-se à projeção iluminista do sujeito, isto é, à circunstância de esta apenas ser capaz de criticar como sujeitos os "capitalistas" (e suas supostas intrigas, decisões, etc.), mas não o capital, aquele "sujeito automático" que ainda foi criticado por Marx na Crítica da economia política (idéia esquecida há muito tempo). Nesse caso, apesar de todos os engenhosos rodeios teóricos, parece que até na base do sistema produtor de mercadorias se possa chegar, mediante boa vontade e intervenções políticas, a decisões bem diferentes e muito mais filantrópicas do que são aquelas supostamente "erradas", tomadas pelos "sujeitos errados". Esse modo de pensar corresponde ao marxismo reduzido, "sociologista", da Revolução de Outubro e do Terceiro Mundo, sendo um elemento da modernização burguesa cuja atualidade já passou completa e irrevogavelmente. (retornar ao texto)
(3) Uma vez que não se trata de leis naturais, a atuação dessas leis do sistema produtor de mercadorias pode ser suprimida em princípio, somente junto com os fundamentos da forma-mercadoria da própria reprodução social. Enquanto não se reconhece isso, a lógica do dinheiro tem que impor-se cegamente, com conseqüências cada vez mais devastadoras, contra a pose de autonomia do sujeito burguês. (retornar ao texto)
(4) A esse respeito, o caso mais extremo, que contradiz diretamente o reconhecimento ideológico da liberdade de mercado e da concorrência, constitui o sistema gigantesco e monstruoso das subvenções agrárias da Comunidade Européia: este sistema protecionista encontra-se em apertos crescentes em virtude das discussões cada vez mais violentas em conexão com o Acordo Internacional de Alfândega e Comércio (GATT). Uma atitude transigente teria por conseqüência a aniquilação quase total da agricultura européia, com imensos atritos sociais e políticos; uma atitude intransigente, ao contrário, conduziria à guerra comercial aberta, a qual está se preparando há anos. Esta significaria também a sentença de morte definitiva para muitas sociedades padecentes do Terceiro Mundo que jamais sobreviveriam a uma guerra desse tipo. (retornar ao texto)
(5) Os países mais pobres da África, mas também da Ásia e da América latina, já não tiveram chance alguma de iniciar uma industrialização própria e o desenvolvimento social. A piora contínua dos terms of trade para seus produtos agrícolas e metárias-primas já os transformou em "casos socais mundiais" sem esperança, que nem conseguem alimentar-se por força própria. As lutas internas pela distribuição conduziram ali a chacinas, guerras civis e de tribos, catástrofes de fome e epidemias. (retornar ao texto)
(6) Por exemplo no Líbano, depois do colapso do poder estatal, assumiram de fato as milícias dos clãs certas funções de manter a ordem e os restos de uma situação normal; nas favelas da América latina são muitas vezes os barões das drogas a única força que garante certas condições civilizatórias e financia água potável, escolas e moradias em extensão maior do que o faz o Estado do mercado mundial, sob o domínio do FMI, para serem festejados por isso como uma espécie de Robin Hood. Já podem ser observadas tendências semelhantes em alguns países do ex-bloco oriental. Não o FMI e as belas palavras do Ocidente sobre a democracia, mas sim a máfia é para muitas pessoas o último sinal da civilização. (retornar ao texto)
(7) A forma desnorteada e a aparente casualidade com que a administração dos Estados Unidos e os meios de comunicação ocidentais trocam seus "malfeitores" e se metem no Terceiro Mundo em colisões a cada vez mais renovadas e menos sustentáveis, não apenas revela a desorientação geral após a queda da antiga imagem do inimigo, mas também a simples incapacidade de compreender aquela lógica do mercado mundial por cuja protagonista se quer passar, sem poder predizer absolutamente seus efeitos, para não falar de interpretá-los. (retornar ao texto)
(8) O fim terrível do ditador, que junto com sua esposa foi fuzilado como um cão, foi esmiuçado com prazer pela imprensa ocidental como exemplo assustador do que daria "o comunismo"; na verdade, é um aviso para todos os chefes de governo dos paises na armadilha de dívidas. Isto aplica-se especialmente aos regimes pró-ocidentais que se dizem democráticos e estão cumprindo condescendetemente as exigências do FMI, apesar de as conseqüências destas serem dificilmente menos brutais do que as intervenções do Conducator. Para pessoas famintas, com frio e humilhadas pela lógica do dinheiro tanto faz, em última instancia, quais são os ideais de seus atormentadores. O balbuciar dos políticos, ainda corriqueiro e possível no Ocidente, acaba ali onde os chamados responsáveis, de fato desamparados, correm perigo de serem simplesmente enforcados ou fuzilados, mesmo que já não exista nenhuma idéia coerente atrás dos golpes, revoltas e surtos de desespero. (retornar ao texto)
(9) Poderia revelar-se, a esse respeito, que talvez fosse um pouco precipitada e incauta a ambição do "líder operário" polonês e portador do premio Nobel da Paz, Lech Walesa, de ser eleito presidente. Ele poderia meter-se numa situação em que apenas defenderia sua posição mediante a identificação de algum bode expiatório coletivo e a organização de perseguições. Isto já indica seu palavrório tão vago quanto perigoso, atrás do qual já aparecem, nos nichos imundos da consciência das massas, traços anti-semitas. (retornar ao texto)
(10) Em seus rebentos mais recentes continua se desenvolvendo esse processo. Um europeu ocidental comum deve achar muito estranho que no ano de 1991, por exemplo no Brasil ou no México, na Índia ou nas Filipinas, certos latifundiários e o capital agrário tenham a seu serviço autênticos pistoleiros que fuzilam um arrendatário ou um funcionário do sindicato dos trabalhadores rurais com a mesma naturalidade com que se sentam à mesa para tomar um café da manhã. Segundo o modelo clássico, terrenos gigantescos são transformados em pastos quase desabitados ou em empresas agroindustriais intensivas de capital, fornecedoras das cadeias de restaurantes de fast food do ocidente, enquanto a população foge para a periferia miserável das metrópoles monstruosas. E não pode ser ocultado que, além de grupos radicados no Brasil, também as empresas Volkswagen constam entre esses latifundiários. (retornar ao texto)
(11) Se também na Polônia, nas eleições presidenciais de dezembro de 1990, o "líder operário" populista Lech Walesa teve que enfrentar um segundo turno contra o polonês residente no exterior Stanislaw Tyminski (ao mesmo tempo cidadão canadense, peruano e polonês), que de repente emergiu do nada, operando com promessas charlatanescas e uma versão estridente da ideologia do FMI, esse acontecimento, registrado com certa preocupação, revela eloqüentemente a situação histórica. Os candidatos vigaristas, que também chegam ao poder político, parecem ser a última versão da "democratização" que ainda tem para oferecer o frágil sistema da mercadoria moderna. (retornar ao texto)