O Colapso da Modernização
Entrevista concedida a Tarson Nufiez e Carlos Winckler

Robert Kurz

Junho de 1993


Primeira Edição: jornal Utopia, junho de 1993, Porto Alegre. Tradução de Peter Neumann.

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Em seu livro "O Colapso da Modernização" você afirma que a crise do chamado "socialismo real" é um aspecto de uma crise mais ampla, global, do sistema capitalista como um todo. A queda do Leste Europeu representaria apenas a falência de um determinado tipo de modernização ainda ligado ao sistema capitalista mundial. O que o leva a identificar uma natureza comum entre as sociedades em crise do Leste com as economias de mercado ocidentais?

O Leste concebeu-se como "mercado planificado", a autocompreensão do Ocidente favorece (ao menos no plano ideológico) o "mercado livre da economia concorrencial". O denominador comum é o "mercado", isto é, a economização abstrata do mundo através de processos de utilização empresarial do homem e da natureza. Marx denominou isso o fetichismo da modernidade, e, nesse plano, ambos os sistemas sempre foram idênticos.

A questão que se colocou para mim, em função da qual escrevi este livro, foi a seguinte: até que ponto nós não estamos dentro de um processo globalizante unitário, no qual as diferentes etapas de processos de modernização estão se referindo a uma conexão global. O sistema mundial de produção de mercadorias é uma relação global que cobre o mundo inteiro na qual também existem relações de reciprocidade entre as diferentes etapas dessas formações históricas. Nessa perspectiva, penso eu, a gente deve formular a pergunta até que ponto este socialismo de Estado, o assim chamado socialismo real, efetivamente representa uma transformação de uma sociedade capitalista. Até que ponto ele foi efetivamente esta transformação ou ao menos uma tentativa de transformação. Ou até que ponto o chamado socialismo realmente existente não reproduziu, muito pelo contrário, elementos da história da implementação do capitalismo nos séculos passados, só que desta vez sob as novas condições históricas do século XX.

Isto naturalmente é uma perspectiva que não é comumente aceita, na bipolarização ideológica do pós-guerra. Do meu ponto de vista, o conflito Leste-Oeste foi, por assim dizer, o conflito ou a concorrência entre diferentes etapas, diferentes tempos históricos de modernização capitalista. Isto, num primeiro momento, soa paradoxal quando a gente está acostumado pensar neste espaço demarcado pela bipolaridade da guerra fria, quando a gente pensa nos sistemas inimigos. Quando a gente não faz um esforço de descobrir uma identidade subjacente à base destes dois sistemas do Leste e do Ocidente.

Penso que a partir da aparência imediata, a partir do quadro referencial limitado, deve forçosamente parecer como se a alternativa sistémica tivesse desaparecido. Mas quando a gente coloca tudo isso num quadro referencial histórico, e é isto que eu tento mostrar, a gente poderia inversamente chegar à posição segundo a qual o colapso do socialismo de Estado representa o início do fim do sistema mundial moderno.

No entanto, esta crise atingiu profundamente o movimento socialista, que perdeu grande parte das suas referências tradicionais. Desta forma, a construção de uma alternativa global ao sistema capitalista se encontra obstruída por uma crise teórica e política da esquerda.

O problema que eu identifico aqui é que os conceitos com os quais se concebe as alternativas pertencem, eles próprios, a esta época que acaba de passar. A época que se encerra, com esta data-limite de 1989. Eu penso que estes conceitos, estes programas, estas ideias, ainda se encontram no horizonte da história de implementação da :modernização tardia. Que estes programas, estas ideias, ainda se orientam neste horizonte dentro do qual foram cunhados. E o problema naturalmente é que a gente não pode chegar facilmente a outros conceitos porque nós estamos, por assim dizer, apenas com um pé nesta nova época de crise. E mesmo nossos conceitos, nossa terminologia, nossa socialização política e teórica, ainda estão fortemente imbuídos da tradição desta época que acaba de passar.

Eu diria até que se deve proceder a uma crítica do próprio conceito de política. Na discussão marxista existe o conceito pejorativo do economicismo. Eu penso que a orientação, segundo a dimensão política (segundo o político), foi teoricamente e em princípio um movimento de desvio do marxismo, no qual o marxismo não se colocou certos problemas. Isto porque a economia não é simplesmente a economia, a economia não se reduz à economia no sentido comum. Ela representa o forno social segundo Marx, a própria forma do sistema produtor de mercadorias. E isto significa essencialmente mais do que uma economia num sentido estrito.

O problema me parece ser o seguinte: o marxismo tradicional não tinha condição de formular concretamente o problema da crítica da forma mercadoria e seus desdobramentos práticos. Em função disso, o marxismo tradicional se viu obrigado a proceder um desvio para a política. Eu a definiria, a política, não como um dado ontológico, previamente existente, mas como um conceito historicamente limitado que pertence à história da implementação do moderno sistema produtor de mercadorias. As reformas e revoluções realizadas nesse horizonte converteram os trabalhadores em sujeitos do direito civil, em sujeitos de relações contratuais e em cidadãos modernos. Além disso, elas estabeleceram condições de trabalho modernas, mas não alteraram a essência do sistema de produção de mercadorias.

Enquanto o sistema produtor de mercadorias não se tinha transformado em um sistema global, concreto, a: política foi a maneira pela qual este sistema foi historicamente encaminhado e através da qual seus aspectos emancipadores são explicitados. Isto é o que Marx chamava de "missão civilizadora do capital". O movimento operário tradicional faz parte deste período. Para esclarecer isto um pouco, eu diria que, até o início do século XX, na maioria dos países do mundo, não existia o direito universal de voto. Em muitos países, por exemplo, a Alemanha, até 1918, haviam ainda elementos pré-modernos, patriarcais na sociedade. Neste horizonte da implementação, da universalização da forma burguesa do sujeito, neste horizonte, o conceito do político encontrou o seu lugar.

E se nós observarmos este aspecto do ponto de vista histórico, certamente foi necessário que a política fosse colocada em primeiro lugar, que ela recebesse o primado e que as mediações políticas fossem consideradas significativas. No entanto, eu me pergunto agora se nós não chegamos num estado no qual este objetivo, de universalização das formas burguesas do sujeito, se efetivou. E no momento em que este objetivo foi atingido, inclusive nas suas dimensões negativas, nas suas dimensões de crise, neste momento, a política, no sentido tradicional, deixa de ter um objeto.

Isto apontaria para uma revalorização de certos movimentos considerados "não políticos" ou "pré-políticos", que a esquerda tradicional sempre subestimou, como os movimentos de mulheres, de juventude, a contracultura, a ecologia, entre tantos outros?

Eu penso que a questão deve ser formulada precisamente nestes termos. E, naturalmente, nós já conhecemos tais movimentos na Alemanha, na Europa, mas, certamente, eles já foram experimentados no Brasil ou em outros países do Terceiro Mundo. Eu penso que a gente não deve se deixar assustar pelo fato de que estes movimentos no passado sofreram apenas reveses. Foi talvez apenas a primeira tentativa do passado, assim como o antigo movimento operário teve de dar muitas largadas para poder cumprir o seu papel histórico.

Penso que o ponto central para que tais movimentos futuramente possam desenvolver uma crítica mais aguda, uma crítica mais precisa e pertinente das relações existentes, seria ligar o conteúdo e os questionamentos concretos destes movimentos com uma crítica coerente do sistema de produção de mercadorias e da lógica da forma mercadoria, quer dizer, da racionalidade da forma da mercadoria. E isto, até o presente, foi antes uma questão extremamente esotérica, uma questão aparentemente filosófica, mas, talvez, agora, tenha chegado o momento no qual as potências e as próprias forças produtivas, o próprio estado do sistema mundial permita que esta crítica, estes questionamentos, possam pela primeira vez ser feitos em termos concretos e práticos.

Esta crítica aos limites da política nos marcos do sistema produtor de mercadorias, associada a uma revalorização de movimentos alternativos, apontaria para uma perspectiva de secundarizar a luta política, enquanto forma de mudar a sociedade?

Eu gostaria de ser extremamente cauteloso neste sentido. Uma crítica teórica do conceito de política não pode ser confundida com uma rejeição pura e simples de todas as forças políticas, porque o problema, afinal de contas, também é sentido pelos ativistas políticos e pelas pessoas que militam nos partidos políticos. E as pessoas que estão organizadas em partidos políticos pertencem às forças despertas, as forças ativas e críticas da sociedade.

O problema é, penso, como se pode, a partir do reconhecimento da paralisia na qual se encontra a forma política, como se pode sair dessa paralisia e como a gente pode se emancipar, para formular de maneira paradoxal, como pessoa política da forma política tradicional. Eu aceitaria naturalmente também que há grandes diferenças entre as diferentes partes do mundo que apresentam graus diferentes de desenvolvimento, apesar disso, permanece o problema que nós agora estamos vivendo num sistema global unitário e as diferentes defasagens históricas não estão mais separadas umas das outras, pelo contrário, estão se interpenetrando.

Na Europa, no Primeiro Mundo, nós já podemos identificar elementos do Terceiro Mundo, e no Terceiro Mundo existem elementos do Primeiro Mundo. Nós já não temos mais mundos bonitinhos separados, mas uma espécie de colcha de retalhos, e nesta colcha de retalhos se evidencia o caráter unitário do sistema global em meio à sua crise. Eu penso que o problema mais difícil para os tradicionais partidos operários será até que ponto, e se, eles serão capazes, terão a vontade política de se referirem criticamente ao problema da exclusão da esfera do trabalho abstrato.

Isto porque a política operária e sindical tradicional por sua natureza, por seu próprio conceito, está referida basicamente aos problemas salariais, das pessoas que vivem em relações de trabalho que incluem dependência salarial. Eu não sei como as coisas são aqui no Brasil, mas na Alemanha, por exemplo, o problema se torna cada vez mais claro, os sindicatos não dão mais um voto em favor dos excluídos do sistema, se excetuarmos a fraseologia moralista sem compromissos maiores. Em termos reais, a massa crescente daqueles que caem fora do sistema de produção está abandonada cada vez mais à administração da pobreza por parte do Estado. E eu penso que este será também o problema de qualquer partido de esquerda se este partido chegar ao governo no sentido tradicional.

A crise global do sistema apontaria, portanto, para a tendência à constituição de uma espécie de" apartheid social", onde uma minoria integrada ao sistema se defronta com uma massa cada vez maior de despossuídos ?

Num primeiro momento sim, há uma tendência ao apartheid social nos países mais desenvolvidos. Isto já é uma realidade hoje. Mas eu penso que o processo não deverá ficar por aí. Se nós retrocedermos e examinarmos' os problemas de princípio, da acumulação capitalista, e se nós mantivermos a tese de Marx (que na minha opinião até hoje não foi refutada), de que a acumulação do capital, quer dizer, a acumulação de valor, na sua substância, repousa na utilização do trabalho humano abstrato, então nós estamos neste mesmo processo que num primeiro momento se manifesta como um apartheid social e simultaneamente diante de uma autocontradição fundamental do próprio sistema.

E, neste caso, nós estamos diante de uma barreira, de um obstáculo historicamente novo à acumulação do capital. Isto significa, na minha opinião, que seria completamente errôneo pensar que numa base social reduzida a acumulação do capital possa continuar sem maiores problemas até a eternidade. Para poder demarcar aqui o obstáculo histórico concreto que define a crise do capital, nós deveríamos, por exemplo, examinar a situação dos mercados financeiros globalizados. Isto significa que o que, por um lado, num pólo, aparece como uma degradação social, aparece no outro pólo como uma crise do dinheiro, como crise da própria forma do capital. E, neste sentido, nós estamos no fundo de uma ironia involuntária quando esta situação histórica é designada como uma vitória do capitalismo.

E neste quadro geral de globalização do sistema, qual o papel que cabe ainda aos Estados Nacionais?

Eu penso que este problema deve ser visto de forma muito diferenciada. Porque, por um lado, o sistema dos Estados Nacionais continua sendo o terreno no qual as forças da crítica se aglutinam. Por outro lado, o Estado Nacional não pode mais ser para estas forças o único e essencial sistema de referência. Deveríamos, portanto, refletir sobre o papel que o Estado Nação desempenha na crise do sistema global. A medida em que este Estado Nacional ainda desempenha um papel, este papel parece essencialmente ser o papel da externalização, vale dizer da transferência dos custos da crise para os outros Estados Nacionais.

Este é, naturalmente, o papel do Estado Nacional para as nações mais desenvolvidas que, durante um certo tempo, em meio à crise comum do sistema mundial, procuram, através dessa externalização, preservar a normalidade capitalista ao menos para uma parte da sua população. Mas, por outro lado, a gente precisa se dar conta também que Q Estado Nacional hoje não existe mais, ou melhor, não existe mais um Estado Nacional que ainda tenha poder de controle sobre sua reprodução básica. Os grandes capitais orientados para o mercado mundial não se referem mais a estruturas nacionais coerentes em si mesmas, eles não perseguem mais estratégias de economias nacionais. Eles procuram fazer com que a minimização de custos de produção se realize através de uma distribuição global de suas estratégias operacionais.

Em outras palavras, estes grandes capitais entram numa certa oposição às classes políticas tradicionais. As classes políticas estão fixadas no sistema referencial do Estado Nacional, ao passo que o capital opera num espaço econômico que há muito tempo transbordou o Estado Nacional. Eu penso que uma crítica, um movimento crítico, um movimento de oposição, deveria incluir todos estes momentos em sua reflexão. Em cima deste desafio é que a discussão começou. Sem este desafio, ela nem teria iniciado.

O dilema que está se enfrentando hoje no Brasil é o de como sair dos espaços regionais, de experiências de poder local e formular um programa, um projeto de caráter nacional dentro dessas novas condições internacionais. Este desafio, na atual conjuntura, se torna ainda mais complexo em função da inexistência de modelos, da crise dos paradigmas que vinham orientando a ação da esquerda mundial.

Eu penso que isto é inevitável. O conceito de alternativa, o conceito de socialismo de que nós dispomos, este conceito pertence ele mesmo à história da modernização. E toda esta riqueza de idéias, de programas e também de formas práticas, aparece agora como algo que perdeu o seu valor. Não porque esta riqueza nunca teve valor em si, mas porque ela cumpriu as possíveis tarefas históricas que lhe eram próprias, porque agora esta riqueza se tornou história.

Agora aparece uma nova etapa de crítica historicamente possível. Num primeiro momento, ela aparece como uma abstração extremamente esquemática, que é a crítica da forma mercadoria. E isto nos parece ser uma abstração extremamente pobre comparada com a riqueza das antigas formas de crítica. Penso que este problema do operar em termos pragmáticos em regiões delimitadas e de como chegar deste operar em regiões delimitadas para uma universalização maior, para uma política mais universal, esta transição não se pode restringir ao espaço da soberania do Estado Nacional tradicional.

O pólo oposto ao campo de operação regional deveria ser uma nova forma de movimento internacional, isto porque os problemas têm um caráter internacional, eles são internacionais num grau muito mais elevado do que foi o caso na história da modernização até o presente. Nós estamos diante de problemas globalizados. E a questão que se impõe é a seguinte: será que as forças da crítica terão condições de ocupar este terreno das relações globais, será que terão condições de o fazer a nível teórico e prático. Em outras palavras, estamos talvez diante da pergunta: até que ponto é possível se contrapor ao internacionalismo abstrato das esquerdas tradicionais.

Isto porque este internacionalismo das esquerdas tradicionais era um internacionalismo que estava limitado e referido ao destino das economias nacionais. Até que ponto seria possível chegar a um internacionalismo concreto, no qual se articulem pessoas de diferentes países, de diferentes regiões do globo, que se encontram em situações similares quanto aos seus problemas, precisamente em função do processo de globalização. Até que ponto estas pessoas de diferentes regiões de repente se tornam capazes de se valer dos novos meios de produção, por exemplo, os novos meios de comunicação, para mobilizá-los para si e para a crítica. Até que ponto não se pode utilizar estes meios tão concretamente quanto estes meios têm sido utilizados até este momento apenas para o processo e reprodução do capital.

Este novo internacionalismo não seria prejudicado pela grande fragmentação das forças da crítica? Temos, de um lado, a esquerda tradicional, que está desarticulada pela falência dos modelos stalinista e social-democrata, de outro lado temos toda uma gama de movimentos heterogêneos e desarticulados entre si. Como superar esta fragmentação?

A gente deve primeiro verificar de onde vem esta fragmentação, ela naturalmente vem do fato de que as forças alternativas ainda não foram capazes de formular uma crítica mais profunda, teórica e prática, do sistema tal como se encontra hoje. Eu posso estar dizendo uma coisa que parece teoria pura, teoria estratosférica, completamente desligada da realidade, mas eu penso que a questão essencial, decisiva, é a seguinte: até que ponto as questões práticas podem se interligar com a crítica fundamental, uma crítica de princípio da forma moderna da mercadoria.

Eu tenho a impressão de que parcelas significativas da esquerda simplesmente estão se negando a formular esta pergunta. Sem falar em dar respostas a ela. Isto porque as suas próprias identidades estão orientadas segundo um sistema referencial que ele mesmo sempre teve a forma da mercadoria. E parece que a resistência a este questionamento em nenhum lugar é tão grande, tão pronunciado como entre a esquerda marxista.

Neste sentido, deveríamos perguntar-nos o seguinte: (se tivermos a coragem, se ousarmos enfrentar esta pergunta) será que nós não encontramos elementos na práxis social que vêm ao encontro deste questionamento? Elementos estes que deveriam ser procurados e identificados, mas que somente podem ser encontrados se nós nos retirarmos deste quadro conceitual e prático que se caracteriza pela sua referência, a economias de Estados-Nação (as economias que estão inseridas no sistema produtor de mercadorias, as economias que privilegiam o trabalho abstrato).

Até que ponto estes dois pólos que no momento parecem estar essencialmente afastados um do outro: uma crítica de princípio da mercadoria por um lado e, por outro lado, o movimento prático de oposição, será que a gente não pode já neste momento unir estes dois pólos mais do que estamos acreditando que seja possível? Eu penso que nós somente teríamos razão para o pessimismo real se nós nos mantivermos exclusivamente dentro das formas da relação empresarial tradicional e dentro das formas da valorização da mercadoria e assim por diante.


Inclusão: 20/12/2019