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Primeira Edição: Kanonen und Kapitalismus in www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo, 30 de Março de 1997 com o titulo A Origem Destrutiva do Capitalismo.
Tradução: José Marcos Macedo
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Há numerosas versões do nascimento da era moderna. Nem mesmo quanto à data os historiadores se põem de acordo. Uns fazem a modernidade ter início já nos séculos 15 e 16, com o chamado Renascimento (um conceito que só foi inventado no século 19 por Jules Michelet, como demonstrou o historiador francês Lucien Febvre). Outros vêem a verdadeira ruptura, o descolar da modernidade, só no século 18, quando a filosofia do Iluminismo, a Revolução Francesa e o início da industrialização abalaram o mundo. Mas qualquer que seja a data preferida pelos historiadores e filósofos modernos para o nascimento de seu próprio mundo, numa coisa eles concordam: quase sempre conquistas positivas são tomadas como os impulsos originais.
Consideram-se razões proeminentes para a ascensão da modernidade tanto as inovações artísticas e científicas do Renascimento italiano quanto as grandes viagens de descobrimento desde Colombo, a idéia protestante e calvinista da auto-responsabilidade do indivíduo, a libertação iluminista da superstição irracional e o surgimento da democracia moderna na França e nos EUA. No âmbito técnico-industrial, também é lembrada a invenção da máquina a vapor e do tear mecânico como "tiro de largada" do desenvolvimento social moderno.
Esta última explicação foi ressaltada sobretudo pelo marxismo, pelo fato de se harmonizar com a doutrina filosófica do "materialismo histórico". O verdadeiro motor da história, afirma esta doutrina, é o desenvolvimento das "forças produtivas" materiais, que repetidamente entram em conflito com as "relações de produção" tornadas muito restritas e obrigam a uma nova forma de sociedade. Por isso, para o marxismo o ponto decisivo da transformação é a industrialização: a máquina a vapor, assim diz a fórmula simplificada, teria sido a primeira a romper as "correntes das antigas relações feudais de produção".
Aqui salta aos olhos uma contradição gritante no argumento marxista. Pois no famoso capítulo sobre a "acumulação primitiva do capital", Marx ocupa-se em sua obra magna de períodos que remontam a séculos antes da máquina a vapor. Não será isso uma auto-refutação do "materialismo histórico"? Se a "acumulação primitiva" e a máquina a vapor acham-se tão afastados em termos históricos, as forças produtivas da indústria não podem ter sido a causa decisiva para o nascimento do capitalismo moderno. É verdade que o modo de produção capitalista só se impôs em definitivo com a industrialização do século 19, mas, se buscarmos pelas raízes do desenvolvimento, teremos de cavar mais fundo.
Também é lógico que o primeiro germe da modernidade, ou o "big bang" de sua dinâmica, tivesse de surgir de um meio ainda em boa parte pré-moderno, pois de outro modo não poderia ser uma "origem" no sentido rigoroso da palavra. Assim, a "primeira causa" muito precoce e a "consolidação plena" muito tardia não representam uma contradição. Se também é verdade que para muitas regiões do mundo e para muitos grupos sociais o início da modernização prolonga-se até o presente, é igualmente certo que o primeiríssimo impulso há de ter ocorrido num passado remoto, caso se considere a enorme extensão temporal (da prespectiva da vida de uma geração ou mesmo de uma pessoa isolada) dos processos sociais.
O que era afinal, num passado relativamente distante, o novo, que na sequência engendrou de forma inevitável a história da modernização? Pode-se conceder plenamente ao materialismo histórico que a maior e principal relevância não coube à simples mudança de idéias e mentalidades, mas ao desenvolvimento no plano dos fatos materiais concretos. Não foi porém a força produtiva, mas pelo contrário uma retumbante força destrutiva que abriu caminho à modernização, a saber, a invenção das armas de fogo. Embora essa correlação há muito seja conhecida, nas mais célebres e consequentes teorias da modernização (inclusive o marxismo), sempre lhe foi dada pouca importância.
Foi o historiador da economia alemão Werner Sombart que, significativamente pouco antes da Primeira Guerra Mundial, em seu estudo "Guerra e Capitalismo" (1913), abordou com minúcias essa questão; naturalmente, apenas para logo se entregar à exaltação da guerra, como tantos intelectuais alemães da época. Só nos últimos anos as origens técnico-armamentistas e bélico-econômicas do capitalismo voltaram à berlinda, como no livro "Canhões e Peste" (1989), do economista alemão Karl Georg Zinn, e no trabalho "A Revolução Militar" (1990), do historiador norte-americano Geoffrey Parker. Mas tampouco estas investigações encontraram a repercussão que mereciam. Obviamente, o mundo ocidental moderno e seus ideólogos só a custo aceitam a visão de que o fundamento histórico último de seus sagrados conceitos de "liberdade" e "progresso" há de ser encontrado na invenção dos mais diabólicos instrumentos mortais da história humana. E essa relação vale também para a democracia moderna, pois a "revolução militar" permaneceu até hoje um motivo secreto da modernização. A própria bomba atômica foi uma invenção democrática do ocidente.
A inovação das armas de fogo destruiu as formas de dominação pré-capitalistas, visto que tornou militarmente ridícula a cavalaria feudal. Já antes do invento das armas de fogo pressentira-se a consequência social das armas de alcance, pois o Segundo Concílio Lateranense proibiu no ano de 1129 o uso de balestras contra cristãos. Não por acaso, a balestra importada de culturas não-européias para a Europa por volta do ano 1000 era tida como a arma especial dos salteadores, fora-da-lei e rebeldes, incluindo figuras lendárias como Robin Hood. Quando entraram em voga as armas de distância com "cano de fogo" muito mais eficazes,foi selado o destino dos exércitos montados e trajados de armadura.
Contudo, a arma de fogo não estava mais nas mãos de uma oposição "de baixo" que fazia frente ao domínio feudal, mas conduziu antes a uma revolução "de cima" desencadeada por príncipes e reis. Pois a produção e mobilização dos novos sistemas de armas não eram possíveis no plano de estruturas locais e descentralizadas, que até então haviam marcado a reprodução social, mas exigiam uma organização inteiramente nova da sociedade, em diversos planos. As armas de fogo, sobretudo os grandes canhões, não podiam mais ser produzidos em pequenas oficinas como as armas brancas ou de arremesso pré-modernas. Por isso desenvolveu-se uma indústria de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes fábricas. Ao mesmo tempo, surgiu uma nova arquitetura militar de defesa, na figura de gigantescos baluartes que deviam resistir às canhonadas. Chegou-se a uma disputa inovadora entre armas ofensivas e defensivas e a uma corrida armamentista entre os estados, que persiste até aos dias de hoje.
Por obra das armas de fogo, alterou-se profundamente a estrutura dos exércitos. Os beligerantes não podiam mais se equipar por si próprios e tinham de ser providos de armas por um poder social centralizado. Por isso a organização militar da sociedade separou-se da civil. Em lugar dos cidadãos mobilizados caso a caso para as campanhas ou dos senhores locais com as suas famílias armadas surgiram os "exércitos permanentes": nasceram as "forças armadas" como grupo social específico, e o exército tornou-se um corpo estranho na sociedade. O oficialato transformou-se de um dever pessoal de cidadãos ricos numa "profissão" moderna. A par dessa nova organização militar e das novas técnicas bélicas, também o contingente dos exércitos cresceu vertiginosamente: "As tropas armadas, entre 1500 e 1700, decuplicaram" (Geoffrey Parker).
Indústria armamentista, corrida armamentista e manutenção de exércitos permanentemente organizados, divorciados da sociedade civil e ao mesmo tempo com forte crescimento conduziram necessariamente a uma subversão radical da economia. O grande complexo militar desvinculado da sociedade exigia uma "economia de guerra permanente". Essa nova economia da morte estendeu-se como uma mortalha sobre as estruturas das antigas sociedades agrárias baseadas na economia natural. Como o armamento e o exército não podiam mais se apoiar na reprodução agrária local, mas tinham de ser abastecidos com recursos obtidos anonimamente em grandes espaços, eles passaram a depender da mediação do dinheiro. Produção de mercadorias e economia monetária como elementos básicos do capitalismo receberam um impulso decisivo no início da era moderna por meio do desencadeamento da economia militar e armamentista.
Esse desenvolvimento produziu e favoreceu a subjetividade capitalista e a sua mentalidade do "fazer-mais" abstrato. A permanente carência financeira da economia de guerra conduziu, na sociedade civil, ao aumento dos capitalistas financeiros e comerciais, dos grandes tomadores de dinheiro e financiadores da guerra. Mas também a nova organização do próprio exército criou a mentalidade capitalista. Os antigos beligerantes agrários transformaram-se em "soldados", ou seja, em pessoas que recebem o "soldo". Eles foram os primeiros "trabalhadoresassalariados" modernos que tinham de reproduzir sua vida exclusivamente pela renda monetária e pelo consumo de mercadorias. E por isso eles não lutavam mais por metas idealizadas, mas somente por dinheiro. A eles era indiferente quem matar, pois só o soldo "contava"; com isso eles se tornaram os primeiros representantes do "trabalho abstrato" (Marx) no moderno sistema produtor de mercadorias.
Aos chefes e comandantes dos "soldados" interessava angariar recursos por meio de butins e convertê-los em dinheiro. Para tanto a renda dos butins tinha de ser maior do que os custos com a guerra. Eis a origem da racionalidade econômico-empresarial moderna. Na sua maioria, os generais e comandantes do exército do início da era moderna investiam com ganho o produto de seus butins e tornavam-se sócios do capital monetário e comercial. Não foram portanto o pacífico vendedor, o diligente poupador e o produtor cheio de idéias que marcaram o início do capitalismo, muito pelo contrário: do mesmo modo que os "soldados", como artesãos sangrentosda arma de fogo, foramos protótipos do assalariado moderno, assim também os comandantes de exército e "condottieri" "multiplicadores de dinheiro" foram os protótipos do empresariado moderno e de sua "prontidão ao risco".
Como livres empresários da morte, os "condottieri" dependiam porém das grandes guerras dos poderes estatais centralizados e de sua capacidade de financiamento. A versátil relação moderna entre mercado e estado tem aqui a sua origem. Para poder financiar as indústrias de armamento e os baluartes, os gigantescos exércitos e a guerra, os estados tinham de espremer ao máximo sua população e isso, em correspondência à matéria, numa forma igualmente nova: no lugar dos antigos impostos em espécie, a tributação monetária. As pessoas foram assim obrigadas a "ganhar dinheiro" para poder pagar seus impostos ao estado. Desse modo, a economia de guerra forçou não apenas de forma direta, mas também indireta, o sistema da economia de mercado. Entre os séculos 16 e 18, a tributação do povo nos países europeus cresceu em até 2.000 %.
Obviamente, as pessoas não se deixaram introduzir de forma voluntária na nova economia monetária e armamentista. Elas só puderam ser forçadas a tanto por intermédio de uma sangrenta repressão. A permanente economia de guerra das armas de fogo ensejou durante séculos a permanente insurreção popular e, na sua esteira, a guerra intestina permanente. A fim de poder extorquir os monstruosos tributos, os poderes centralizados estatais tiveram de construir um aparato igualmentemonstruoso de polícia e administração. Todos os aparatos estatais modernos são procedentes dessa história do início da era moderna. A auto-administração local foi substituída pela administração centralizada e hierárquica, a cargo de uma burocracia cujo núcleo foi formado pelos aparelhos da tributação e da repressão interna.
As próprias conquistas positivas da modernização trouxeram sempre o estigma dessas origens. A industrialização do século 19, tanto no aspecto tecnológico quanto no traço histórico das organizações e das mentalidades, foi uma herdeira das armas de fogo, da produção de armamentos no início da modernidade e do processo social que a seguiu. Nesse sentido, pouco admira que o vertiginoso desenvolvimento capitalista das forças produtivas desde a Primeira Revolução Industrial pudesse ocorrer senão de forma destrutiva, apesar das inovações técnicas aparentemente inocentes. A moderna democracia do ocidente é incapaz de ocultar o fato de ser herdeira da ditadura militar e armamentista do início da modernidade — e isso não só na esfera tecnológica, mas também em sua estrutura social. Sob a fina superfície dos rituais de votação e dos discursos políticos, encontramos o monstro de um aparato que administra e disciplina de forma continuada o cidadão aparentemente livre em nome da economia monetária total e da economia de guerra a ela vinculada até hoje. Em nenhuma sociedade da história houve tão grande percentual de funcionários públicos e administradores de recursos humanos, soldados e policiais; nenhuma jamais desbaratou uma parcela tão grande de seus recursos em armamentos e exército.
As ditaduras burocráticas da "modernização tardia" no leste e no sul, com seus aparatos centralizados, não foram os antípodas, mas os agentes reincidentes da economia de guerra da história ocidental, sem contudo poderem alcançá-la. As sociedades mais burocratizadas e militarizadas são ainda, do ponto de vista estrutural, as democracias ocidentais. Também o neoliberalismo é um filho serôdio dos canhões, como demonstraram o gigantesco programa armamentista da "Reaganomics" e a história dos anos 90. A economia da morte permanecerá o inquietante legado da sociedade moderna fundada na economia de mercado até que o capitalismo-assassino se destrua a si próprio.