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Primeira Edição: Folha de São Paulo, 14/05/2000
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Tradução: José Marcos Macedo
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Claro que a história não se repete. Mas o reprimido sempre volta em nova roupagem, enquanto não é elevado à consciência e superado junto com suas condições. Europa, a mãe da modernidade capitalista, também deu à luz o fascismo e, com a versão alemã do nacional-socialismo, inaugurou o crime contra a humanidade. Nos registros oficiais esses crimes foram excomungados da tradição européia do Iluminismo, do liberalismo e da democracia. Mas os fascistas não nasceram sob outra estrela; seu pensar sanguinário radicava na própria modernidade européia. Todos os elementos da ditadura nazista encontram-se dispersos nos países, épocas, instituições e idéias da história da modernização: das penitenciárias com trabalhos forçados do pré-capitalismo, do racismo e anti-semitismo latentes ou manifestos da filosofia iluminista, das fantasias de extermínio social de Sade e de Malthus, o "teórico da demografia", até o darwinismo social de cunho democrata do século 19. Os crimes nazistas foram singulares; mas essa singularidade consistiu justamente em concentrar em alto grau e levar a extremos todos aqueles elementos de repressão, constrangimento, exclusão e irracionalidade, tal como estes, de uma forma ou de outra, acompanharam desde o princípio a história da expansão européia. O pesadelo vivido pela Europa entre 1933 e 1945 parecia não deixar outra alternativa: fascismo nunca mais! No entanto, como os fundamentos sociais desse pesadelo permaneceram totalmente inalterados, as próprias raízes do terror fascista não foram postas de lado. Na efêmera época do "milagre econômico" após a Segunda Guerra Mundial, os demônios desapareceram nos subterrâneos, mas com a crise socioeconômica da terceira revolução industrial eles voltaram à tona. Desde os anos 80, o novo desemprego estrutural de massas é acompanhado pela ascensão de ideologias neofascistas e sentimentos racistas. O potencial intimidativo com que se enriqueceram as sociedades européias na crise estrutural ao fim do século 20 se descarrega em sucessivas ondas de um "radicalismo de direita" amplamente difundido, que ainda não assumiu contornos nítidos. Não são apenas (e nem sequer são tantos) os rebaixados sociais em quem se manifesta o potencial neofascista. O temor difuso que pesa sobre toda a sociedade transmuta-se em selvagem agressão precisamente naqueles setores populacionais que ainda não foram excluídos. De um lado, é o temor de um futuro incerto que define essa consciência. De outro, o agravamento dramático e a selvageria da concorrência suscitam um novo "mandonismo" de mercado. Quer-se a todo custo fazer parte dos vencedores, que sabidamente "ficam com tudo", ou pelo menos bancar o tipão de sucesso.
E consta do hábito da superioridade arrogante fazer praça de uma crueldade racista e sociodarwinista, ou mesmo colocá-la em prática. Não raro são jovens de posses, com carro e celular, que depois da discoteca se juntam em bandos neofascistas para dar caça a estrangeiros, pessoas de pele escura ou deficientes. Tais fenômenos de negligência moral existem em todos os continentes; mas na Europa eles se prendem a uma recaída no terror especificamente fascista. De Moscou a Madri, mas sobretudo na Alemanha, a cruz gamada e as runas da SS viraram símbolos provocativos diletos de uma subcultura jovem, brutalizada. A energia neofascista insinua-se a fundo nos meandros da sociedade, embora essa "continuação da concorrência por outros meios" ainda se esconda sob a fachada do bem-estar burguês de funcionários públicos, advogados, médicos, trabalhadores qualificados, engenheiros etc. Mas as violências e os assassinatos dos bandos de jovens neofascistas são recebidos com leniência visivelmente "compreensiva" (supostamente por razões sociais), com a qual a antiga cultura de protesto da juventude "radical de esquerda" jamais pôde contar. Essa combinação dissimulada entre "centro" e "direita" revela-se com particular virulência nas gerações acima dos 60 e abaixo dos 30, enquanto a geração de meia-idade, que cresceu durante o "milagre econômico" e foi impregnada pelo movimento de 68, prega ideais democráticos de forma um tanto untuosa, sem no entanto ser capaz de oferecer o menor expediente contra a crise que degringola.
Em certo sentido, trata-se de uma união entre o avô fascista, que nunca largou mão de sua ideologia soturna, e o neto neofascista, que, numa espécie de versão pop-cultural, recai nessa mesma ideologia. A nova consciência fascista de massas possui também um lado sexual: ela é sustentada por relativamente poucas mulheres -a maioria são homens, sejam velhos cruéis ou jovens de intelecto corrompido. Não tardaria para que essa constelação social se sedimentasse também em termos políticos. O papel da política em relação à dinâmica econômica na terceira revolução industrial decresceu objetivamente, é verdade, mas para a maioria, ao menos por enquanto, a forma do partido político e a respectiva "atitude eleitoral" restam como a única possibilidade de expressar suas opiniões e dar nome à sua elaboração ideológica da crise. Assim, desde o início dos anos 80, a terceira revolução industrial foi acompanhada em toda a Europa pela ascensão de partidos "populistas de direita" ou neofascistas, que nesse meio tempo ganharam considerável peso parlamentar. Devagar, mas sempre, os tradicionais partidos moderadamente conservadores do pós-guerra rompem com suas alas direitistas e perdem sua força de integrar os demônios fascistas à consciência de massas. Mas tal processo não é imposto à democracia a partir de fora, antes se alimenta das contradições internas do próprio mundo democrático. Foi na Itália que o bloco da democracia oficial cedeu passo, pela primeira vez, ao rebento neofascista por ele próprio gerado. Após décadas de domínio conservador da "Democracia Cristã", a corrupção escrachada e o conluio da classe política com a máfia assumiram proporções tais que o conservadorismo italiano dissolveu-se vertiginosamente. Seu espólio foi açambarcado pelo sincrético partido de direita de Berlusconi, o magnata da mídia, pelos populistas de direita de Bossi, o líder separatista do norte da Itália, e pelos neofascistas ávidos de poder. Mas o processo de erosão dos partidos conservadores agravou-se também na Inglaterra, Alemanha e França. A "rendição da guarda" pareceu primeiro dar uma guinada política para a "esquerda". No lugar dos regimes conservadores, corroídos por seus escândalos, surgiram governos predominantemente de centro-esquerda; essa tendência também foi seguida pela Itália.
Para observadores desavisados, volvia-se inesperadamente à "era social-democrata". A verdade é bem diversa, porém. Isso porque a erosão do conservadorismo foi acompanhada por uma mutação das esquerdas estatais. Da mesma maneira que a doutrina econômica neoliberal passou a ser perfilhada por todos os partidos, numa espécie de mestiçagem com suas respectivas ideologias originárias (havia muito empalidecidas), assim também um bafejo das ideologias e dos humores neofascistas varreu o ambiente partidário; e nisso a "nova social-democracia" de Blair ou de Schroeder constitui tão pouco uma exceção quanto os comunistas franceses ou os diversos partidos verdes do movimento ecológico.
Esse caráter neofascista de toda a classe política pode ser designado como "nacionalismo interno" e, no tocante à União Européia, como política da "Fortaleza Europa". Sob as condições da globalização, perdeu todo sentido um expansionismo político agressivo.
O próprio impulso da ideologia neofascista não consiste mais num nacionalismo conquistador voltado para fora, senão num nacionalismo excludente voltado para dentro, que se alia à concorrência no mercado mundial sem barreiras. É assim que os vários milhões de trabalhadores imigrantes provenientes da Turquia, do norte africano etc. e os refugiados das regiões em colapso do Leste Europeu viram alvo do ritual de ódio dos neofascistas. Os partidos democráticos, norteados pelos índices de opinião pública, condenam os "pogroms" mais atrozes com palavras ocas, porém de olho no potencial eleitoreiro desse racismo "implosivo". Eximindo-se da responsabilidade social, o Estado ao mesmo tempo faz concessão à atmosfera "xenófoba". Entre os governos social-democratas regidos pelo chamado "novo centro" essa tendência se aguçou ainda mais. Batidas da polícia em centros de "ilegais" e ameaças de repatriação acham-se mais do que nunca na ordem do dia. O atual ministro do Interior do governo social-democrata alemão estuda uma drástica ampliação do direito de asilo, embora a própria Alemanha, em razão de sua história, tivesse todos os motivos para ser mais aberta, nesse ponto, do que qualquer outro país.
Mesmo o "ius sanguinis", que desde 1913 define a cidadania segundo critérios de "ascendência", foi modificado apenas superficialmente no mandato de Schroeder, mas não revogado um ato qualificado de "compromisso democrático" com a direita racista. Em toda a Europa, a política dos governos de centro-esquerda coincide nos pontos decisivos com as manifestações surdas da síndrome neofascista. De caso pensado é favorecida a resolução da crise estrutural da sociedade na forma de uma primazia racista e sociodarwinista, para que nenhum movimento emancipatório extraparlamentar possa nascer. Oficialmente essa política de adaptação à atmosfera neofascista é justificada pelo fato de que só se quer evitar o pior e "apaziguar" a agressividade racista; mas é justamente assim que os demônios se metem em brios, sedentos de sangue, prestes a fugir ao controle. Um surto social nesse sentido ocorreu na Áustria, onde os conservadores formaram uma coalizão com o partido abertamente racista e anti-semita do populista de direita Joerg Haider. Quebrou-se, assim, um tabu das democracias européias do pós-guerra. A síndrome Haider é mais perigosa do que as demais tendências neofascistas -e por diversas razões. Paradoxalmente, o potencial intimidativo é tanto maior na Áustria pelo fato mesmo de lá a crise ter sido até agora represada e o desemprego ter permanecido relativamente baixo. A grande coalizão decenária de socialistas e conservadores não só gerou uma "avarocracia" corrupta, mas também cercou o capitalismo austríaco com uma redoma nacionalista contra a globalização: os grandes bancos e as indústrias siderúrgica e petrolífera são propriedade majoritária do Estado e são subvencionados -e também nos demais setores a participação estatal é a maior de todos os países da União Européia. Em compensação, a Áustria tem o maior déficit de toda a união monetária. Essas são relações estruturalmente análogas aos países socialistas do Leste, antes do colapso dos anos 80. Assim todos sabem, ou presumem, que é iminente a "virada" na Áustria e que as vítimas das privatizações e fusões estão por um fio. O partido de Haider serve de catalisador da crise porque, ao contrário da maioria dos outros partidos de direita radical na Europa, não é economicamente retrógrado. Pelo menos a Frente Nacional francesa e os diversos neonazistas alemães defendem, sob o influxo da crise, velhos programas econômicos estatais, enriquecidos de lemas nacionalistas; no fundo se trata à semelhança, ironicamente, da oposição de esquerda, sem teoria nem programa, de uma débil reciclagem de idéias keynesianas. O Partido da Liberdade, de Joerg Haider, por sua vez, é uma mutação do liberalismo austríaco e sustenta o programa econômico neoliberal. Certos aspectos dessa orientação se acham também em Berlusconi; mas a especificidade do partido de Haider é a união de um severo radicalismo de mercado com um racismo aberto, de laivos anti-semitas.
À diferença das ditaduras fascistas do entre-guerras, não se trata mais se moldar a sociedade com um espartilho econômico-estatal em benefício de uma política externa agressiva e imperialista, mas, pelo contrário, de conferir à sua ruína interna um curso igualmente agressivo. Haider diz com todas as letras à consciência de massas: suas antigas garantias sociais têm de ser sacrificadas à globalização, mas em contrapartida vocês podem soltar seus instintos mais baixos contra o "Outro" na sua vizinhança. Neoliberalismo e neofascismo fundem-se aqui numa perfeita identidade.
O boicote dos Estados da União Européia contra a participação no governo do partido de Haider não é de tônica substancialmente diversa, pois as mesmas facetas do programa de Haider encontram-se em Blair, Schroeder, Jospin e companhia. O súbito alvoroço deriva antes do fato de que Haider pôs em evidência o seu próprio "programa secreto" e tornou direto o conluio até agora indireto entre globalização e perseguição etno-nacionalista, entre economicismo neoliberal e racismo da direita.
Mas, enquanto a classe política da União Européia teme no "fenômeno Haider" o estopim de um processo incontrolável, a maioria da imprensa econômica liberal faz vista grossa e inventa piadas sobre o boicote indeciso e meramente protocolar contra o governo austríaco, apostando que o time de Haider implementará as "necessárias reformas socioeconômicas". No final das contas, as democracias vão ter de capitular aos demônios que elas mesmas alimentaram. A Europa se cobre de trevas, porque a cega economia de mercado não consegue aprender nada com a história.
S.Paulo, Domingo, 14 de Maio 2000