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Hoje, o marxismo, e com ele a teoria de Marx, é visto essencialmente como uma orientação historicamente fracassada para o Estado, para a rede de redistribuição monetária do Estado social, para a regulamentação dos processos económicos pelo Estado e, finalmente, para o Estado actuando como empresário geral da sociedade. Não se vê nele mais do que o disparate de um controlo burocrático do indivíduo mantido dependente, de uma administração repressiva das pessoas, dos horrores do Gulag e do totalitarismo em geral: por conseguinte, tudo o que a "economia de mercado e democracia" não devem nem podem ser. Há alguma verdade nisso, na medida em que as sociedades da modernização atrasada, que se referiam a Marx como ideologia legitimadora, eram de facto estados totalmente autoritários, ou ainda o são, os que restam.
E este autoritarismo burocrático de Estado não é de modo nenhum apenas uma distorção sofrida pelo marxismo, sob as condições dos retardatários históricos na periferia do mercado mundial, mas tem sido sempre uma característica do movimento operário marxista, bem como dos seus partidos e sindicatos nos países capitalistas desenvolvidos do Ocidente. A social-democracia europeia manteve-se até hoje, em todas as suas metamorfoses, como um poder estatal profundamente autoritário. Das fantasmagorias ideológicas do "estado dos trabalhadores" até à co-gestão repressiva da sociedade do desaforo capitalista, das primeiras declarações programáticas até à formação do Estado social e intervencionista burocrático keynesiano após a II Guerra Mundial, o marxismo e os seus seguidores ocidentais, até ao fim do século XX, nunca puderam negar uma contínua orientação estatal contra a "liberdade de mercado" liberal.
Seria distorcer os factos pretender exonerar o próprio Marx deste estatismo. Encontramos na sua teoria declarações mais que suficientes, culminando claramente em que a chamada classe operária teria de "tomar o poder do Estado" para se livrar da opressão (socioeconómica) da chamada classe capitalista, que o socialismo seria um "Estado do trabalho" com o "dever de trabalhar", para o qual importaria a verdadeira instauração da "nação" e da "democracia", e que a via para tudo isso teria de ser "política". E, tal como este Marx exotérico é determinado por uma dupla não-simultaneidade histórica (a do estatuto "desclassificado" do trabalhador de então em geral e a da situação especificamente alemã, em particular), também o é em relação às categorias da política, do Estado, da nação e da democracia.
Por um lado, tratava-se do atraso também duplo da Alemanha como Estado, em comparação com a Inglaterra ou com a França: primeiro, o país estava dividido em muitos pequenos Estados e ainda não se tinha elevado a nação capitalista; em segundo lugar, ele continuava a ser governado por uma retrógrada monarquia absoluta de "direito divino" e ainda não tinha chegado à república capitalista. Dado que Marx, como rebento dissidente do pensamento burguês moderno, estava imbuído por uma ideia de progresso liberal-iluminista e determinista, segundo o seu entendimento seria necessário cumprir as "tarefas capitalistas" não só no aspecto económico e cultural, mas também no político, ou seja, estabelecer a unidade política nacional e a república burguesa. Na medida em que Marx considerava a burguesia alemã, de que ele ridicularizava a covardia hipócrita, como incapaz de executar esta suposta agenda histórica, ele aventurou-se a encarregar a ominosa classe operária dessas missões, como que de passagem. Pois tudo o que está na checklist da história também tem de ser correctamente executado, sem ficar nada para trás! Esta paradoxal figura do pensamento do determinismo histórico, de instalar primeiro as próprias categorias da sociedade capitalista que na verdade têm de ser abolidas, de modo que possam depois ser correctamente eliminadas, foi mais tarde não por acaso instrumentalizada por Lenine politicamente (e partindo de um entendimento redutoramente politicista), para os esforços paradoxais da modernização atrasada no século XX. Marx não se apercebeu — ou não quis admitir — que poderia estar aqui uma armadilha, que iria acorrentar a consciência crítica justamente a essas categorias da socialização capitalista.
Por outro lado, não só na Alemanha, mas também nos países capitalistas ocidentais mais avançados, o proletariado industrial, que acabara de aparecer e ainda continuava a surgir, era ainda em muitos aspectos uma massa privada de direitos, não era portanto de modo nenhum um sujeito com plena capacidade jurídica e contratual em sentido burguês, e estava em grande parte excluído da vida política das repúblicas burguesas, mesmo em termos formais. O direito de voto era recusado não só às mulheres, mas também aos homens “não proprietários”, ou pelo menos era muito limitado (por exemplo, através do voto censitário). Nestas circunstâncias, o Estado, mesmo republicano, tinha de surgir inevitavelmente como um Estado de classe, ou seja, era exclusivamente um negócio e um aparelho das classes proprietárias. Assim, impôs-se inevitavelmente o impulso inteiramente imanente para, no quadro da vida como trabalhador assalariado (e mesmo para moldar e aperfeiçoar esta existência), ambicionar e construir a subjectividade burguesa jurídica e de cidadania dos trabalhadores assalariados, sobretudo dos homens. A luta do movimento operário pelo seu reconhecimento no capitalismo tomou assim necessariamente uma forma política. A bandeira desta aspiração era a noção enfática de democracia, a forma do seu exercício como luta de classes enquanto "luta política". Assim surgiu a social-democracia como partido político, como protótipo de partido político moderno, na "jaula de ferro" da socialização capitalista. E Marx não podia deixar de fazer concessões a esse impulso, de o integrar de algum modo na redacção da sua teoria, embora justamente esta luta política não levasse para fora do capitalismo, levando, pelo contrário, sempre mais profundamente para dentro dele, e vinculando tanto mais amargamente as pessoas às formas sociais, às categorias e aos critérios do capitalismo.
Assim, como em todas as outras questões, também na questão da estatalidade, da nação, da política e da democracia o núcleo radicalmente crítico da teoria de Marx foi ocultado. O que foi intencionalmente percebido foi apenas a formulação da teoria do Estado na sociologia das classes, em que Marx falava do Estado como o "conselho de administração da burguesia." Esta formulação, pertence ao passado século do movimento operário, não corresponde à situação de uma democracia burguesa desenvolvida até ao fim. Tanto mais importantes se tornam, por isso, as ideias do "outro” Marx que, juntamente com o trabalho, também criticou radicalmente a forma jurídica e as manifestações da estatalidade democrática como tal. Desde o início das suas reflexões teóricas, Marx levantou a questão do carácter de uma democracia plenamente realizada e de uma juridificação geral — e revelou as contradições entre a forma jurídica e a estatalidade em geral, que já não podem ser simplesmente definidas como mera oposição externa entre classes sociais.
Pode parecer estranho à nossa consciência actual que essa questão esteja relacionada com o problema aparentemente tão distante da crítica da religião. Marx não só pressentiu que a sociedade capitalista representava uma espécie de religião secular, uma metafísica real terrena do dinheiro (o seu contemporâneo Heinrich Heine já tinha falado neste sentido), mas referiu-se também ao debate filosófico e de crítica social na Alemanha anterior a 1848, dominado pelos chamados "hegelianos de esquerda". Tratava-se aqui, de um ponto de vista filosófico, da crítica da religião como uma ideia "falsa" e fantástica que o ser humano faz de si mesmo e da sociedade, e que deveria ser superada ultrapassando a consciência religiosa. Em termos de política social, a este impulso pôde corresponder a exigência do fim da religião de Estado cristã, ou seja, a separação de igreja e Estado, a liberdade de religião, etc.
O traço genial de Marx neste debate consistiu em inverter o problema, atribuí-lo à ordem social existente e retirar o "véu religioso" de toda a discussão: em vez de ultrapassar a consciência religiosa "no interior da consciência", para tornar a sociedade uma sociedade humana, diz Marx, é preciso primeiro ultrapassar a sociedade existente, a fim de se livrar da consciência religiosa. Mas, quando se olha para esta sociedade mais de perto, vê-se que a reforma ou emancipação política sofre da contradição insolúvel de fazer simplesmente dos problemas reais "um assunto privado", em vez de resolvê-los. Tal como a consciência religiosa não desaparece com a liberdade religiosa e o fim da religião de Estado, mas transforma-se num assunto privado anterior e exterior ao Estado, o mesmo se aplica aos problemas sociais e económicos. Na medida em que a propriedade económica privada como tal já não desempenha qualquer papel político numa democracia pura, após a abolição do direito eleitoral censitário, ela irá finalmente alcançar o seu pleno desenvolvimento negativo em termos sociais.
Assim, Marx teve a ideia de questionar radicalmente a divisão do homem e da sua sociedade em geral em uma esfera estatal "ideal", por um lado, e uma esfera socioeconómica, privada, burguesa, “suja”, do trabalho abstracto, do interesse do dinheiro, da concorrência económica, etc., por outro. A “sociedade civil”, “burguesa" neste sentido não é a sociedade em que uma determinada classe domina (mesmo no Estado), nomeadamente a burguesia proprietária, mas sim a esfera da reprodução económica autonomizada de todos os indivíduos, que se opõe à estatalidade meramente abstracta dos mesmos indivíduos. Uma tal situação de pura democracia, que põe cada indivíduo como "soberano" por meio da cidadania, enquanto o mesmo indivíduo pode ser simultaneamente um mendigo sem-abrigo no aspecto social (“civil”), zomba da comunidade humana, diz Marx.
A estatalidade em geral, de que a democracia é a forma suprema e mais pura, constitui, portanto, a outra face de uma paradoxal insociabilidade dos indivíduos reais, que são comandados pelo automovimento cego do dinheiro. Estando todos eles submetidos ao processo de valorização capitalista, só podem proceder entre si, na sua práxis social, como pessoas jurídicas. Mas as pessoas jurídicas não são senão "representantes das mercadorias", e, uma vez que os seres humanos têm de se relacionar entre si deste modo, como meros representantes das categorias económicas tornadas independente deles, os seres humanos não podem formar uma comunidade real. Pois os indivíduos, na sua vida quotidiana real, são de facto membros de uma comunidade enquanto cidadãos, mas na sua reprodução material são exactamente o oposto a uma comunidade, embora os meios de produção há muito tempo tenham assumido um carácter social.
Longe de considerar a juridificação, a estatalidade e a democracia como solução da miséria socioeconómica, o outro Marx, escondido, vê aí apenas o reverso dessa mesma miséria. E é precisamente neste ponto que ele se tornou hoje extremamente actual. Enquanto o liberalismo sempre criticou apenas a administração externa e burocrática da sociedade pelo Estado, para em compensação favorecer o mercado e a sua pretensa liberdade, a crítica radical do Estado feita por Marx vê no mercado apenas o reverso da mesma medalha: o autoritarismo do Estado é o equivalente complementar do autoritarismo do mercado, o totalitarismo político é apenas uma manifestação do totalitarismo económico. Em ambos os lados desta relação os indivíduos continuam sem ser livres, porque numa das armadilhas estão entregues à burocracia, na outra, aos poderes da concorrência anónima. Mercado e Estado, política e economia, constituem apenas os dois lados de uma relação social paradoxal, irracional e esquizofrénica onde os indivíduos se desagregam em "homo oeconomicus" e "homo politicus", em "bourgeois" e "citoyen", ou seja, entram em contradição consigo mesmos. São os dois aspectos de uma e mesma deficiência grave, que não podem ser jogados um contra o outro, mas apenas têm de ser ambos igualmente abolidos — justamente naquela associação de "indivíduos sociais concretos" que Marx tinha em vista quando da sua crítica do trabalho abstracto.
A luta de classes como luta política — e só como tal ela pôde abolir parcialmente a concorrência entre os trabalhadores assalariados — completou o capitalismo em vez de o ultrapassar: ela completou-o precisamente na esfera estatal e política, uma vez que uniformizou as várias categorias funcionais sociais do capital como cidadãos "livres" abstractos, de modo que agora a forma comum, sobrejacente e igual da concorrência, do trabalho abstracto, da juridificação e da cidadania democrática está concluída. Assim, a luta de classes não aboliu o capitalismo, mas aboliu-se a si mesma. Mas agora torna-se tanto mais flagrantemente visível a deficiência, a irracionalidade e a negatividade deste contexto formal social comum.
No fim do século XX já ninguém acredita realmente na política, nem mesmo os próprios políticos. Mas o mercado, mais uma vez chamado para fazer face ao decaimento da força funcional da esfera estatal e política, é incapaz de criar qualquer comunidade humana, mesmo abstracta, com a sua concorrência anónima; por isso mesmo foi necessário o isolamento daquela esfera estatal abstracta. Assim, o contexto formal em si cindido, social e não-social, irreal-ideal e sujo-quotidiano começa a asselvajar-se, juntamente com os indivíduos nele incluídos. A realidade da concorrência dissolve a idealidade abstracta da cidadania democrática.
A esquerda, fixada na política e na democratização, já não é capaz de compreender criticamente a realidade do capitalismo completado: em vez de eliminar ambos os lados da duplicação e portanto também as suas categorias, pretende-se que as categorias não superadas da esfera política separada sejam transmitidas às categorias também não superadas da sociedade de mercado burguesa, sob a forma de politização ou democratização da economia das mercadorias na gestão empresarial. Essa ilusão foi ridicularizada e arrumada. Agora, a emancipação do ser humano só pode ocorrer contra a cidadania abstracta, ou seja, para além da ilusão política e democrática, bem como para além do trabalho e da concorrência.
Um obstáculo a essa emancipação, que ultrapassaria finalmente a chamada modernidade do sistema produtor de mercadorias, é o acanhamento no conceito de "nação". A nação, de modo nenhum um dado supra-histórico, mas uma invenção do capitalismo moderno, não é senão uma capa, ou um disfarce mediado cultural-simbólicamente e mitologicamente, da esfera político-estatal. É tão abstracta e "inverdadeira" como esta, mas pelas cores do seu traje parece mais concreta e tangível, capaz de criar comunidade, não contra a concorrência, mas na concorrência, pela exclusão do estrangeiro.
Neste aspecto, a oposição entre o Marx exotérico e o esotérico torna-se mais uma vez flagrante, e justamente em relação à Alemanha. No sentido da sua checklist histórica determinista, Marx também teve de aprovar que a Alemanha se formasse como nação e aceitar o espírito nacional do movimento operário. A determinação cívica do movimento operário desde muito cedo revelou que o patriotismo social-democrata aqui afirmado levaria directamente aos campos de batalha da I Guerra Mundial. O outro Marx verdadeiramente radical, pelo contrário, percebeu perfeitamente desde o início o carácter da nação e polemizou mesmo contra a lamechice nacionalista com particular mordacidade.
Aqui ele esbarrou logo muito cedo com aquela "ideologia alemã", que, na esteira da modernização atrasada da Alemanha do século XIX, mitologizava a nação alemã (primeiro ainda virtual) como uma comunidade de sangue e cultura superior ao capitalismo, em que devia vigorar o “bom” capital meramente material de uma força produtiva puramente técnica para lá das oposições sociais, um constructo que se adensou sempre mais e devia formar o essencial da ideologia nazi. Na sua polémica contra Friedrich List, fundador da "economia nacional" Alemã (texto redescoberto na década de 1970 e que ainda não aparece na edição das obras publicadas), Marx ataca com uma virulência cáustica todos os elementos fundamentais deste "estabelecimento do capitalismo com frases anticapitalistas" especificamente alemão, e formula uma crítica precoce da ideologia ainda latente do "nacional-socialismo", ou seja, um capitalismo que se pretende não capitalista precisamente por causa da nacionalidade — sobretudo porque invoca a concorrência para o exterior, a fim de constituir no interior uma "comunidade do povo" nacional etno-racista.
Também a polémica de Marx contra a nacionalidade em geral e contra a "ideologia alemã" em particular ganha hoje novamente uma actualidade flagrante. Como reacção à crise da política, vivemos a nível mundial uma regressão etnonacionalista e, na Alemanha, um regresso dessa fantasmagórica "ideologia alemã" sob novas formas, e não é só nos bandos neonazis da Alemanha Oriental.
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O burguês alemão é o cavaleiro da triste figura que queria introduzir o código dos cavaleiros andantes no preciso momento em que se implantavam a polícia e o dinheiro … Um grande embaraço … em que se encontra o burguês alemão, na sua busca da riqueza industrial, é o seu anterior idealismo. Como pode este povo do «espírito» passar de súbito a considerar que os supremos bens da humanidade residem no calico, no fio de tricotar, na máquina de fiar automática, no materialismo da maquinaria, num amontoado de escravos da fábrica, nos bolsos cheios dos senhores fabricantes? O idealismo vazio, leviano e sentimental do burguês alemão, sob o qual se esconde o mais mesquinho e sórdido espírito de merceeiro, a alma mais cobarde, chegou agora ao momento em que não pode deixar de trair o seu segredo. Só que, mais uma vez, tem de traí-lo de maneira genuína e exaltadamente alemã. Trai o seu segredo com uma vergonha cristã idealista. Renega a riqueza ao mesmo tempo que anseia por ela. Trata de dar roupagens completamente idealistas ao materialismo destituído de espírito e só então se atreve a ambicioná-lo. Toda a parte teórica do sistema de List mais não é do que enfarpelar com um fraseado idealista o materialismo industrial da economia genuína. A coisa permanece intocada, mas a expressão é idealizada …
O burguês alemão é religioso, mesmo quando é industrial. Tem vergonha de falar nos iníquos valores de troca que persegue e fala em forças produtivas, tem vergonha de falar em concorrência e fala em confederação nacional de forças produtivas nacionais, tem vergonha de falar nos seus interesses privados e fala em interesse nacional. Se se observa a franqueza do cinismo clássico com que a burguesia inglesa e francesa, pelo menos na fase inicial da sua dominação, pela pena dos seus primeiros porta-vozes científicos da economia política, elevava a riqueza à qualidade de deus e tudo sacrificava implacavelmente a esse Moloch, mesmo no âmbito da ciência, e se, por outro lado, se observa o estilo idealizante, arrebicado e bombástico do Senhor List, que no meio da economia política despreza a riqueza dos «homens sérios» e visa fins mais elevados, terá de se achar «também triste» que hoje em dia já não haja lugar para a riqueza.
O Senhor List fala sempre em versos de Molossus. Pavoneia-se continuamente num pathos pesado e palavroso, cujo núcleo central agita em constante repetição as tarifas proteccionistas e as fábricas «germânicas», e cujas águas turvas, em última instância, conduzem sempre a um banco de areia. O Senhor List é continuamente sensível-supra-sensível.
O idealizante filisteu alemão que quer tornar-se rico tem naturalmente de começar por criar para seu uso uma nova teoria da riqueza capaz de tornar essa mesma riqueza digna de ser desejada por ele. Os burgueses em França e em Inglaterra vêem aproximar-se a tempestade que destruirá na prática a vida real daquilo a que até agora se chamou riqueza, e o burguês alemão, que ainda não alcançou essa malfadada riqueza, ensaia uma nova interpretação «espiritualista» da riqueza. Com a finalidade de se justificar perante si mesmo e perante o mundo pelo facto de também querer enriquecer, cria para seu uso uma economia política «idealizante», que nada tem de comum com a economia política profana francesa e inglesa. O burguês alemão começa a sua criação de riqueza com a criação de uma economia política exaltada e hipocritamente idealizante …
O burguês quer … fazer dinheiro; porém, ao mesmo tempo tem de se conciliar com o idealismo que vigora entre o público alemão e com a sua própria consciência. Trata portanto de demonstrar que não anda à caça de bens materiais, destituídos de sentido espiritual, mas que pelo contrário procura uma essência espiritual, a força produtiva infinita, em vez do valor de troca mau e finito…
Por último, é característico da teoria do Senhor List, tal como da burguesia alemã no seu todo, o facto de para defender os seus desejos de exploração se ver constantemente obrigado a encontrar refúgio em tiradas «socialistas» e a manter à força uma ilusão que há muito foi refutada …
O Senhor List está de tal modo prisioneiro ... dos preconceitos económicos da velha economia política — veremos que está mais do que os outros economistas da Escola — que para ele «bens materiais» e «valores de troca» coincidem inteiramente. Porém, o valor de troca é inteiramente independente da natureza específica dos «bens materiais». Não depende nem da qualidade, nem da quantidade dos bens materiais. O valor de troca cai quando a quantidade dos bens materiais sobe, apesar de estes antes e depois manterem a mesma relação com as necessidades humanas. O valor de troca não tem a ver com a qualidade. Há coisas extremamente úteis, por exemplo o saber, que não têm valor de troca. O Senhor List teria, pois, obrigação de perceber que a metamorfose dos bens materiais em valores de troca é obra da ordem social vigente, da sociedade da propriedade privada desenvolvida. A abolição do valor de troca é a abolição da propriedade privada e do trabalho privado. Pelo contrário, o Senhor List é tão ingénuo que admite que com a teoria dos valores de troca «podem estabelecer-se os conceitos de valor e capital, lucro, salário, renda fundiária, analisá-los nas suas partes constitutivas, especular sobre o que possa ter influência no respectivo crescimento ou diminuição, etc., sem simultaneamente levar em linha de conta as condições políticas das nações.» ...
Portanto, sem levar em conta a «teoria das forças produtivas» e as «condições políticas das nações» pode «estabelecer-se» tudo isto. E que fica assim estabelecido? A realidade … Assim sendo, se o salário do trabalho pode ser «estabelecido» segundo a teoria dos valores, se desse modo se «estabelece» também que o ser humano é um valor de troca e que a imensa maioria dos indivíduos dentro de cada nação é uma mercadoria que pode ser determinada sem consideração das «condições políticas das nações», que outra coisa prova tudo isto senão que a imensa maioria em cada nação não tem de levar em consideração as «condições políticas», que estas condições são para essa maioria uma pura ilusão, que uma doutrina que na realidade desce ao nível desse sórdido materialismo que é o de transformar a maioria das pessoas de cada nação em «mercadoria», em «valor de troca», e de as submeter às condições inteiramente materiais do valor de troca mais não é do que uma hipocrisia infame e um disfarce (uma patranha) idealista quando, em relação a outras nações, olha com sobranceria e desdém para o malfadado «materialismo» dos «valores de troca» e declara estar somente interessada nas «forças produtivas»? Se, para além disto, a relação do capital, da renda fundiária, etc., pode ser «estabelecida» sem levar em conta as «condições políticas» das nações, que outra coisa se prova assim senão que o capitalista industrial e o beneficiário da renda fundiária são determinados nas suas acções, na sua vida real pelo lucro, pelos valores de troca, e não pela consideração «das condições políticas» e das «forças produtivas», e que todo o respectivo palavreado acerca da civilização e das forças produtivas não passa de um disfarce de tendências tacanhamente egoístas?
O burguês diz: como é natural, no plano interno, não deve ser causado prejuízo algum à teoria dos valores de troca, a maioria da nação deve continuar a ser um mero «valor de troca», uma «mercadoria» que deve apresentar-se ao respectivo comprador, uma mercadoria que não é vendida por outrem, antes se vende por iniciativa própria. Perante vós, proletários, e mesmo entre nós consideramo-nos a nós mesmos valores de troca; neste plano, vigora a lei do regateio universal. Porém, em relação às outras nações temos de suspender a eficácia desta lei. Enquanto nação, não podemos vender-nos a qualquer preço para benefício de outras nações. Ora, como a maioria dentro de cada nação, «sem consideração» das «condições políticas das nações», está submetida às leis do regateio, a dita proposição não pode ter outro sentido que não seja o seguinte: nós, burgueses alemães, não queremos ser explorados pelos burgueses ingleses da mesma maneira que vós, proletários alemães, sois explorados por nós e da mesma maneira que entre nós nos exploramos mutuamente. Não queremos sujeitar-nos às mesmas leis do valor de troca às quais vos sujeitamos. Não queremos reconhecer no plano externo a validade das leis económicas que reconhecemos no plano interno. Que quer afinal o filisteu alemão? Quer, no plano interno, ser bourgeois, explorador, mas no plano externo quer não ser explorado. No plano externo, pavoneia-se como «nação» e diz: não me submeto às leis da concorrência; isso é contra a minha dignidade nacional; enquanto nação, sou um ente que está acima do regateio.
A nacionalidade do operário não é francesa, nem inglesa, nem alemã; é o trabalho, a escravidão livre, o regateio de si mesmo. O governo do operário não é francês, nem inglês, nem alemão; é o capital. O ar pátrio do operário não é o ar francês, nem o alemão, nem o inglês; é o ar da fábrica. O solo que pertence ao operário não é o solo francês, nem o inglês, nem o alemão; é um solo que fica alguns pés abaixo do chão.
No plano interno, a pátria do industrial é o dinheiro. Portanto, o filisteu alemão quer que as leis da concorrência, do valor de troca, do regateio, percam a sua eficácia quando chegam aos portões do país? Quer reconhecer o poder da sociedade burguesa só na medida em que isso esteja no âmbito do seu interesse, no âmbito do interesse da sua classe? Não quer ser sacrificado a um poder ao qual quer sacrificar outros indivíduos e ao qual ele mesmo se sacrifica dentro das fronteiras do seu país? Quer, no plano externo, apresentar-se e ser tratado como um ente diferente daquele que é e age no plano interno? Quer deixar que a causa se mantenha e suprimir um dos respectivos efeitos? Provar-lhe-emos que o regateio que um indivíduo faz de si no plano interno tem como consequência necessária o regateio no plano externo, que a concorrência, que no plano interno é o seu poder, não pode impedir que no plano externo ela mesma seja a sua impotência, que o Estado, que, no plano interno, ele submete à sociedade burguesa, não pode, no plano externo, protegê-lo da acção da sociedade burguesa …
Se a Escola não deu qualquer «desenvolvimento científico» à teoria das forças produtivas a par ou separadamente da teoria dos valores de troca, foi porque tal separação é uma abstracção arbitrária, porque ela é impossível e terá necessariamente de ficar pelas tiradas de carácter geral …
A força produtiva surge acima do valor de troca como uma entidade infinitamente sublime. Essa força reclama para si o lugar de essência interior e o valor de troca fica com o lugar de fenómeno duvidoso. A força surge como infinita, o valor de troca como finito; a força surge como algo de imaterial, o valor de troca como algo de material; todas estas oposições se encontram no Senhor List. Assim, o mundo supra-sensível das forças toma o lugar do mundo material dos valores de troca. Se é evidente a baixeza que constitui o facto de uma nação se sacrificar por valores de troca, de as pessoas serem sacrificadas por coisas, as forças pelo contrário surgem como entidades espirituais autónomas — fantasmas –, como personificações puras, como divindades, e é legítimo perguntar se deve exigir-se do povo alemão que sacrifique os malfadados valores de troca em benefício de fantasmas. Um valor de troca, o dinheiro, parece ser sempre uma finalidade de carácter exterior, enquanto a força produtiva parece ser uma finalidade que nasce da minha própria natureza, uma finalidade própria. Deste modo, tudo o que eu sacrificar em matéria de valores de troca é algo que me é exterior; aquilo que eu ganhar em matéria de forças produtivas é um ganho próprio. Assim parece ser, se nos contentarmos com uma palavra ou se, na qualidade de alemães idealizantes, não nos preocuparmos com a sórdida realidade que se encontra por trás dessa palavra pomposa.
Para destruir o brilho místico que transfigura a «força produtiva», basta consultar qualquer registo estatístico. Aí se fala de força hidráulica, força do vapor, força humana, cavalo-força. Será dar ao ser humano um grande reconhecimento fazê-lo figurar como «força» ao lado do cavalo, do vapor e da água?
Sobre o livro de Friedrich List "O sistema nacional da economia política”, 1845
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A pergunta é: como se comporta a emancipação política plena para com a religião? Se até mesmo no país da emancipação política plena encontramos não só a existência da religião, mas a existência da mesma em seu frescor e força vitais, isso constitui a prova de que a presença da religião não contradiz a perfeição do Estado. Como, porém, a existência da religião é a existência de uma carência, a fonte dessa carência só pode ser procurada na essência do próprio Estado. Para nós, a religião não é mais a razão, mas apenas o fenómeno da limitação secular. Em consequência, explicamos o envolvimento religioso dos cidadãos livres a partir do seu envolvimento secular. Não afirmamos que eles devam primeiro suprimir a sua limitação religiosa para depois suprimirem as as suas limitações seculares. Afirmamos, sim, que eles suprimem a sua limitação religiosa no momento em que suprimem as suas barreiras seculares. Não transformamos as questões mundanas em questões teológicas. Transformamos as questões teológicas em questões mundanas. Tendo a história sido dissolvida em superstição por tempo suficiente, passamos agora a dissolver a superstição em história. A questão da relação entre emancipação política e religião transforma-se para nós na questão da relação entre emancipação política e emancipação humana. Criticamos a debilidade religiosa do Estado político ao criticar o Estado político em sua construção secular, independentemente da sua debilidade religiosa …
A emancipação política em relação à religião não é a emancipação já efectuada, isenta de contradições, em relação à religião, porque a emancipação política ainda não constitui o modo já efectuado, isento de contradições, da emancipação humana.
O limite da emancipação política fica evidente de imediato no facto de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o ser humano realmente fique livre dela, no facto de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem que o ser humano seja um ser humano livre …
Daí decorre que o ser humano se liberta de uma limitação por meio do Estado, ou seja, ele liberta-se politicamente de uma limitação, colocando-se em contradição consigo mesmo, alteando-se acima dessa limitação de maneira abstracta e limitada, ou seja, de maneira parcial. Decorre, ademais, que o ser humano, ao libertar-se politicamente, liberta-se por um desvio, através de um meio, ainda que se trate de um meio necessário. Decorre, por fim, que, mesmo proclamando-se ateu por intermédio do Estado, isto é, declarando o Estado ateu, o ser humano continua religiosamente condicionado, justamente porque ele só reconhece a si mesmo mediante um desvio, através de um meio. A religião é exactamente o reconhecimento do ser humano mediante um desvio. Através de um mediador. O Estado é o mediador entre o ser humano e a liberdade do ser humano. Tal como Cristo é o mediador ao qual o ser humano imputa toda a sua divindade, toda a sua inibição religiosa, assim o Estado é o mediador ao qual ele imputa toda a sua não-divindade, toda a sua desinibição humana.
A elevação política do ser humano acima da religião compartilha de todos os defeitos e de todas as vantagens de qualquer elevação política. O Estado como Estado anula, por exemplo, a propriedade privada; o ser humano declara, em termos políticos, a propriedade privada como abolida assim que abole o carácter censitário da elegibilidade activa e passiva, como ocorreu em muitos estados norte-americanos. Hamilton interpreta esse facto com todo o acerto do ponto de vista político quando diz: “A grande massa levou a melhor sobre os proprietários e sobre a riqueza em dinheiro”. Não está a propriedade privada abolida idealmente se o não proprietário se tornou legislador do proprietário? O censo eleitoral é a última forma política de reconhecimento da propriedade privada.
No entanto, a anulação política da propriedade privada não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até mesmo a pressupõe. O Estado anula à sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e actividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e actividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem consideração dessas diferenças, como participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a formação, a actividade laboral actuem à sua maneira, isto é, como propriedade privada, como formação, como actividade laboral, e tornem efectiva a sua essência particular. Longe de anular essas diferenças fácticas, ele somente existe pressupondo-as, ele só se percebe como Estado político e a sua universalidade só torna efectiva em oposição a esses seus elementos ... Só sobre os elementos particulares é que o Estado se constitui como universalidade.
O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida de género do ser humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos desta vida egoísta continuam a existir fora da esfera estatal na sociedade civil, só que como qualidades da sociedade civil. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o ser humano leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade civil, na qual ele actua como pessoa privada, encara as demais pessoas como meios, se degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. A relação entre o Estado político e a sociedade civil é tão espiritualista como a relação entre o céu e a terra. A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político supera-a da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano, isto é, sendo igualmente forçado a reconhecê-la, a produzi-la e deixar-se dominar por ela. Na sua realidade mais imediata, na sociedade civil, o ser humano é um ente profano. Aqui, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenómeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o ser humano é considerado um ser-género, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado da sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal.
O conflito que emerge entre o ser humano que professa uma religião particular e a sua cidadania, entre ele e as demais pessoas como membros da sociedade, reduz-se à divisão secular entre o Estado político e a sociedade civil. Para o ser humano como bourgeois, a “vida no Estado [é] apenas aparência ou uma excepção momentânea à essência e à regra” ... A diferença entre o ser humano religioso e o cidadão é a diferença entre o mercador e o cidadão, entre o assalariado e o cidadão, entre o proprietário fundiário e o cidadão, entre o indivíduo vivo e o cidadão. A contradição que se interpõe entre o ser humano religioso e o ser humano político é a mesma que existe entre o bourgeois e o citoyen, entre o membro da sociedade civil e a sua pele de leão política …
A emancipação política de facto representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: falamos aqui de emancipação real, de emancipação prática.
O ser humano emancipa-se politicamente da religião, banindo-a do direito público para o direito privado. Ela deixa de ser o espírito do Estado, no qual o ser humano — ainda que de modo limitado, sob formas bem particulares e dentro de uma esfera específica — se comporta como ser-género, em comunidade com os outros humanos; ela passou a ser o espírito da sociedade civil, da esfera do egoísmo, do bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos]. Já não é a essência da comunidade, mas a essência da diferença. Tornou-se expressão da separação entre o ser humano e a sua comunidade, entre si mesmo e os demais humanos — como era originalmente. Ela já não passa de uma profissão abstracta da perversidade particular, do caprichoprivado, da arbitrariedade. A interminável fragmentação da religião na América do Norte, por exemplo, confere-lhe já exteriormente a forma de uma questão puramente individual. Ela foi remetida para o número dos interesses privados e exilada da comunidade como comunidade. Todavia, não tenhamos ilusões quanto ao limite da emancipação política. A cisão do ser humano em público e privado, o deslocamento da religião do Estado para a sociedade civil, não constitui um estádio, mas sim a realização plena da emancipação política, a qual, portanto, não anula nem busca anular a religiosidade real do ser humano …
No entanto: nos períodos, em que o Estado político é gerado por meio da violência como Estado político a partir da sociedade civil, em que a autolibertação humana procura realizar-se sob a forma da autolibertação política, o Estado pode e tem de avançar até à abolição da religião, até à destruição da religião; porém, somente na medida em que avance até à abolição da propriedade privada, no máximo até ao confisco, à taxação progressiva, em que avance até à abolição da vida, até à guilhotina. Nos momentos em que está particularmente autoconfiante, a vida política procura esmagar o seu pressuposto, a sociedade civil e os seus elementos, e constituir-se como a vida real e sem contradição da vida de género do ser humano. No entanto, ela só consegue fazer isso caindo em contradição violenta com as suas próprias condições de vida, ou seja, declarando a revolução como permanente, e, em consequência disso, o drama político termina tão necessariamente com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade civil, como a guerra termina com a paz.
Pois o Estado cristão consumado não é o chamado Estado cristão que confessa o cristianismo como seu fundamento, como religião do Estado, e, em consequência, se comporta de modo excludente para com as demais religiões; o Estado cristão consumado é, antes, o Estado ateu, o Estado democrático, o Estado que aponta à religião um lugar entre os demais elementos da sociedade civil. O Estado que ainda não deixou de ser teólogo, que ainda professa a confissão de fé do cristianismo em termos oficiais, que ainda não ousa proclamar-se como Estado, ainda não logrou expressar de forma secular, humana, em sua realidade como Estado, o fundamento humano, cuja expressão efusiva é o cristianismo. O chamado Estado cristão nada mais é do que o não Estado, porque o que nele pode efectuar-se, em termos de criação realmente humana, não é o cristianismo como religião, mas tão somente o pano de fundo humano da religião cristã. O chamado Estado cristão constitui, na verdade, a negação cristã do Estado, mas jamais a realização estatal do cristianismo. O Estado que continua a professar o cristianismo na forma da religião ainda não o professa na forma do Estado, pois continua a comportar-se religiosamente para com a religião, isto é, ele não é a realização efectiva do fundamento humano da religião, porque ainda se reporta à irrealidade, à figura imaginária desse cerne humano. O chamado Estado cristão é o Estado incompleto, e ele tem a religião cristã na conta de complemento e santificação da sua incompletude. Sendo assim, a religião torna-se para ele um meio, e ele constitui-se em Estado da hipocrisia. Há uma grande diferença entre o Estado completo enumerar a religião entre seus pressupostos por causa da deficiência inerente à essência universal do Estado e o Estado incompleto declarar a religião como seu fundamento por causa da deficiência inerente à sua existência particular de Estado deficiente. No último caso, a religião torna-se política incompleta. No primeiro caso, manifesta-se na religião a incompletude até mesmo da política completa. O chamado Estado cristão necessita da religião cristã para se completar como Estado. O Estado democrático, o Estado real, não necessita da religião para chegar à sua completude política. Pelo contrário, ele pode abstrair da religião, porque nele se realiza efectivamente em termos seculares o fundamento humano da religião. O chamado Estado cristão, em contrapartida, comporta-se politicamente para com a religião e religiosamente para com a política. Ao rebaixar as formas estatais à condição de aparência, ele rebaixa na mesma proporção a religião a essa condição … No chamado Estado cristão vigora de facto a alienação, mas não o ser humano. O único ser humano que tem valor, o rei, é um ente diferenciado especificamente dos demais seres humanos, mas ele próprio ainda é religioso, vinculado directamente com o céu, com Deus. As relações que vigoram nesse caso ainda são relações de fé. Nesse caso, portanto, o espírito religioso ainda não foi realmente secularizado.
Todavia, o espírito religioso não pode ser secularizado realmente, pois o que é ele próprio senão a forma não secular de um estádio do desenvolvimento do espírito humano? O espírito religioso somente pode ser realizado na medida em que o estádio de desenvolvimento do espírito humano, do qual ele é a expressão religiosa, emergir em sua forma secular e assim se constituir. Isso sucede no Estado democrático. O fundamento desse Estado não é o cristianismo, mas o fundamento humano do cristianismo. A religião permanece a consciência ideal, não secular dos seus membros, porque é a forma ideal do estádio de desenvolvimento humano que nela efectivamente se realiza.
Os membros do Estado político constituem-se como religiosos mediante o dualismo de vida individual e vida como género, de vida em sociedade civil e vida política, religiosos, um vez que o ser humano se comporta em relação à vida estatal, que se encontra além da sua individualidade real, como se esta fosse sua verdadeira vida, religiosos, na medida em que, nesse caso, a religião representa o espírito da sociedade civil, a expressão da separação e do distanciamento entre as pessoas. A democracia política é cristã pelo facto de que nela o ser humano — não apenas um ser humano, mas cada ser humano — é considerado um ente soberano, o ente supremo, ainda que seja o ser humano em sua manifestação inculta, não social, o ser humano em sua existência casual, o ser humano assim como está, o ser humano do seu jeito corrompido pela organização de toda a nossa sociedade, perdido para si mesmo, alienado, sujeito à dominação por relações e elementos desumanos, em suma: o ser humano que ainda não é um ser-género real. Na democracia, a quimera, o sonho, o postulado do cristianismo, ou seja, a soberania do ser humano, só que como ente estranho e distinto do ser humano real, tornou-se realidade, presença palpável, máxima secular …
Demonstrámos, portanto, que a emancipação política em relação à religião permite que a religião subsista, ainda que já não se trate de uma religião privilegiada. A contradição em que se encontra o adepto de uma religião em particular com a sua cidadania é apenas uma parte da contradição secular universal entre o Estado político e a sociedade civil. A realização plena do Estado cristão é o Estado que se professa como Estado e abstrai da religião dos seus membros. A emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do ser humano real em relação à religião.
A questão judaica, 1844
Esse fixar-se da actividade social, essa consolidação do nosso próprio produto num poder objectivo situado acima de nós, que foge ao nosso controlo, que contraria as nossas expectativas e aniquila as nossas conjecturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado e é precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse colectivo que o interesse colectivo assume, como Estado, uma forma autónoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade ilusória …
É justamente porque os indivíduos buscam apenas o seu interesse particular, para eles não coincidente com o seu interesse colectivo, que este último lhes é imposto como um interesse a eles “estranho” e deles “independente”, como um interesse “geral” peculiar, por sua vez particular, ou os próprios indivíduos têm de mover-se no meio deste conflito interior, como na democracia. Por outro lado, a luta prática desses interesses particulares, que se contrapõem constante e realmente aos interesses colectivos ou ilusoriamente colectivos, também torna necessária a ingerência e a contenção práticas por meio do ilusório interesse “geral” como Estado. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos, porque a própria cooperação não é voluntária mas natural, não como o seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde vai.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
Essas massas, ou melhor, essa massa, não só aparece, como é realmente, por toda parte, “uma multidão dissolvida nos seus átomos” e, enquanto atomística, ela tem de aparecer e produzir-se em sua actividade político-estamental. O estamento privado, a sociedade civil, não pode aqui aparecer “como aquilo que já é”. Pois o que já é ele? É estamento privado, isto é, oposição e separação em relação ao Estado. Para alcançar “significado e eficácia políticos”, pelo contrário, ele tem de renunciar àquilo que já é como estamento privado. Somente com isso ele adquire o seu “significado e eficácia políticos”. Esse acto político é uma completa transubstanciação. Nele, a sociedade civil deve separar-se de si completamente como sociedade civil, como estamento privado, e deve fazer valer uma parte do seu ser, aquela que não somente não tem nada em comum com a existência social real do seu ser, mas se lhe opõe directamente.
O que é a lei geral mostra-se, aqui, no indivíduo. Sociedade civil e Estado estão separados. Portanto, também o cidadão do Estado está separado do simples cidadão, isto é, do membro da sociedade civil. Ele tem de realizar uma ruptura essencial consigo mesmo. Como cidadão real, ele encontra-se numa dupla organização, a burocrática– que é uma determinação externa, formal, do Estado transcendente, do poder governamental, que não afecta o cidadão nem a sua realidade independente — e a social, a organização da sociedade civil. Nesta última, porém, o cidadão, como homem privado, encontra-se fora do Estado; ela não tangencia o Estado político como tal. A primeira é uma organização estatal, para a qual ele sempre dá a matéria. A segunda é uma organização civil, cuja matéria não é o Estado. Na primeira, o Estado se comporta como oposição formal ao cidadão; na segunda, o cidadão se comporta como oposição material ao Estado. Portanto, para se comportar como cidadão real do Estado, para obter significado e eficácia políticos, ele tem de abandonar a sua realidade social, abstrair-se dela, refugiar-se de toda essa organização em sua individualidade; pois a única existência que ele encontra para a sua qualidade de cidadão do Estado é a sua individualidade nua e crua, já que a existência do Estado como governo está completa sem ele e a existência dele na sociedade civil está completa sem o Estado. Apenas em contradição com essas únicas comunidades existentes, apenas como indivíduo, ele pode ser cidadão do Estado. Sua existência como cidadão do Estado é uma existência que se encontra fora de suas existências comunitárias, sendo, portanto, puramente individual. O “poder legislativo”, como “poder”, é, de facto, apenas a organização, o corpo comum que ela deve adquirir. Antes do “poder legislativo”, a sociedade civil, o estamento privado, não existe como organização estatal, e a fim de que ele, em tal condição, chegue à existência, a sua organização real, a sua vida civil real tem de ser posta como não existente, pois o elemento estamental do poder legislativo tem precisamente a determinação de pôr como não existente o estamento privado, a sociedade civil. A separação da sociedade civil e do Estado político aparece necessariamente como uma separação entre o cidadão político, o cidadão do Estado, e a sociedade civil, a sua própria realidade empírica, efectiva, pois, como idealista do Estado, ele é um ser totalmente diferente da sua realidade, um ser distinto, diverso, oposto. A sociedade civil realiza, aqui, dentro de si mesma, a relação entre Estado e sociedade civil, que, por outro lado, existe já como burocracia. No elemento estamental, o universal torna-se realmente para si o que ele é em si, a saber, o oposto do particular. O cidadão tem de abandonar o seu estamento, a sociedade civil, o estamento privado, para alcançar significado e eficácia políticos, pois é precisamente este estamento que se encontra entre o indivíduo e o Estado político …
Hegel refere-se antes de mais a uma “abstracta determinação de ser membro do Estado”, muito embora essa seja, segundo a Ideia, segundo a opinião do seu próprio desenvolvimento, a mais alta e a mais concreta determinação social da pessoa jurídica, do membro do Estado. Ater-se à “determinação de ser membro do Estado” e considerar o indivíduo nessa determinação, não parece precisamente “ser o pensamento artificial que se atém a abstracções”. Mas que a “determinação de ser membro do Estado” seja uma determinação “abstracta”, isso não é culpa deste pensamento, mas do desenvolvimento hegeliano e das relações reais modernas, que pressupõem a separação da vida real em relação à vida política e fazem da qualidade política uma “determinação abstracta” do membro real do Estado.
A participação directa de todos nas deliberações e decisões sobre os assuntos gerais do Estado admite, segundo Hegel, “o elemento democrático, sem qualquer forma racional, no organismo estatal, que é tal somente por meio da referida forma”; ou seja, o elemento democrático pode ser admitido apenas como elemento formal num organismo estatal que é somente formalismo estatal. O elemento democrático tem de ser, pelo contrário, o elemento real que dá a si mesmo, em todo o organismo estatal, a sua forma racional. Se, pelo contrário, ele entra no organismo ou formalismo estatal como um elemento “particular”, compreende-se pela “forma racional” da sua existência a domesticação, a acomodação, uma forma na qual ele não mostra a peculiaridade da sua essência, ou seja, que ele entra apenas como princípio formal.
Já esclarecemos que Hegel desenvolve apenas um formalismo de Estado. O verdadeiro princípio material é, para ele, a Ideia, a abstracta forma de pensamento do Estado como um Sujeito, a Ideia absoluta, que não guarda em si nenhum momento passivo, material. Diante da abstracção dessa Ideia, aparecem como conteúdo as determinações do real formalismo empírico do Estado e, por isso, o conteúdo real aparece como matéria inorgânica, desprovida de forma (aqui o homem real, a sociedade real etc.) …
Hegel coloca-se o dilema: ou a sociedade civil (os muitos, a massa) participa, por meio dos deputados, nas deliberações e resoluções sobre os assuntos gerais do Estado, ou todos o fazem enquanto indivíduos. Essa não é uma oposição da essência, como Hegel tenta apresentá-la depois, mas sim da existência e, na verdade, da existência exterior, do número, com o que o fundamento que o próprio Hegel designou como “exterior” — a multidão dos membros– permanece sempre como o fundamento último contra a participação directa de todos. A questão sobre como a sociedade civil deve tomar parte no poder legislativo, que ela ingresse nele por meio de deputados, ou que “todos singularmente” participem de forma directa, é ela mesma uma questão no interior da abstracção do Estado político, ou no interior do Estado político abstracto; é uma questão política abstracta.
Crítica do direito do Estado de Hegel, escrito em 1843
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A incompatibilidade entre religião e direitos humanos está tão pouco no conceito de direitos humanos que o direito de ser religioso, e de ser religioso da maneira que se achar melhor, de praticar o culto da sua religião particular tem de ser enumerado expressamente entre os direitos humanos. O privilégio da fé é um direito humano universal.
Os droits de l’homme, os direitos humanos, são diferenciados como tais dos droits du citoyen, dos direitos do cidadão. Quem é esse homme que é diferenciado do citoyen? Nem mais nem menos que o membro da sociedade civil. Por que o membro da sociedade civil é chamado de “homem”, pura e simplesmente, e por que os seus direitos são chamados de direitos humanos? A partir de que explicaremos esse facto? A partir da relação entre o Estado político e a sociedade civil, a partir da essência da emancipação política.
Antes de mais constatemos o facto de que os chamados direitos humanos, os droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os direitos do membro da sociedade civil, isto é, do ser humano egoísta, do ser humano separado do ser humano e da comunidade. A Constituição mais radical, a Constituição de 1793, chega a afirmar:
Déclaration des droits de l’homme et du citoyen.
Article 2: “Ces droits etc. [les droits naturels et imprescriptibles] sont l’égalité, la liberté, la sûreté et la propriété” [“Estes direitos etc. (os direitos naturais e imprescritíveis) são a: igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.”]
Em que consiste a liberté?
Article 6: “La liberté est le pouvoir qui appartient à l’homme de faire tout ce qui ne nuit pas aux droits d’autrui” [“A liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo quanto não prejudica os direitos de outrem.”], ou conforme a Declaração dos direitos humanos de 1791: “La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui” [“A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem.” ].
A liberdade equivale, portanto, ao direito de fazer e promover tudo que não prejudique a nenhuma outra pessoa. O limite dentro do qual cada um pode mover-se de maneira a não prejudicar o outro é determinado pela lei, do mesmo modo que o limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do ser humano como mónada isolada recolhida dentro de si mesma …
(O) direito humano à liberdade não se baseia na ligação do ser humano com os demais, mas sim na separação entre as pessoas. Trata-se do direito a essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo.
A aplicação prática do direito humano à liberdade é o direito humano à propriedade privada.
Em que consiste o direito humano à propriedade privada?
Article 16 (Constitution de 1793): “Le droit de propriété est celui qui appartient à tout citoyen de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenus, du fruit de son travail et de son industrie”[“O direito de propriedade é aquele que pertence a todo o cidadão de gozar e dispor à vontade de seus bens, rendas, do fruto do seu trabalho e da sua indústria.”]
O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar a seu belprazer (à son gré), sem levar os outros em consideração, independentemente da sociedade, do seu património e dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio. Aquela liberdade individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da sociedade civil. Ela faz com que cada um veja no outro não a realização, mas, pelo contrário, a restrição da sua liberdade. Acima de tudo, ela proclama o direito humano
“de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenus, du fruit de son travail et de son industrie”.
Restam ainda os outros direitos humanos, a égalité e a sûreté.
A égalité, aqui em seu significado não político, nada mais é que igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada ser humano é visto uniformemente como mónada que repousa em si mesma. A Constituição de 1795 define esse conceito de igualdade, fazendo justiça à sua relevância, nos seguintes termos:
Article 3 (Constitution de 1795): “L’égalité consiste en ce que la loi est la même pour tous, soit qu’elle protège, soit qu’elle punisse”[“A igualdade consiste em que a lei é a mesma para todos, quer a proteger, quer a punir.”)
E a sûreté?
Article 8 (Constitution de 1793): “La sûreté consiste dans la protection accordée par la société à chacun de ses membres pour la conservation de sa personne, de ses droits et de ses propriétés” [“A segurança consiste na proteção concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades.” ]
A segurança é o conceito social supremo da sociedade civil, o conceito de polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um dos seus membros a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade. Nesses termos, Hegel chama a sociedade civil de “Estado da necessidade e do entendimento”.
Através do conceito de segurança, a sociedade civil não se eleva acima do seu egoísmo. A segurança é, antes, a garantia do seu egoísmo.
Portanto, nenhum dos chamados direitos humanos transcende o ser humano egoísta, como membro da sociedade civil, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o ser humano como um ser-género, esses direitos deixam transparecer a vida do género, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação à sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação da sua propriedade e da sua pessoa egoísta.
É deveras enigmático ver um povo que mal começa a libertar-se, a derrubar todas as barreiras que separam os diversos membros do povo, a fundar uma comunidade política, ver esse povo proclamar solenemente a legitimidade do homem egoísta, separado do semelhante e da comunidade (Déclaration de 1791), e até repetir essa proclamação no momento em que a única coisa que pode salvar a nação é a entrega mais heróica possível, a qual, por isso mesmo, é exigida imperativamente, no momento em que se faz constar na ordem do dia o sacrifício de todos os interesses da sociedade civil e em que o egoísmo precisa ser punido como crime (Déclaration des droits de l’homme etc. de 1793). Esse facto torna-se ainda mais enigmático quando vemos que a cidadania, a comunidade política é rebaixada pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação desses chamados direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como servidor do homme egoísta; quando vemos que a esfera em que o ser humano se comporta como ente comunitário é inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como ente parcial; quando vemos, por fim, que não o citoyen, mas o bourgeois é assumido como o ser humano propriamente dito e verdadeiro.
“Le but de toute association politique est le conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’homme” (Déclaration des droits etc. de 1791, Article 2). [“O objectivo de toda associação política é a conservação dos direitos humanos naturais e imprescritíveis.” ] “Le gouvernement est institué pour garantir à l’homme la jouissance de ses droits naturels et imprescriptibles” (Déclaration etc. de 1793, Article 1) [“O governo é instituído para garantir ao homem o gozo destes direitos naturais e imprescritíveis.”]
Portanto, até mesmo nos momentos do seu entusiasmo juvenil levado ao extremo pela pressão das circunstâncias, a vida política se declara como um simples meio, cujo fim é a vida da sociedade civil. É verdade que a sua práxis revolucionária se encontra em flagrante contradição com a sua teoria. No mesmo momento em que, por exemplo, a segurança é declarada como um direito humano, põe-se a violação do sigilo da correspondência publicamente na ordem do dia. No mesmo momento em que a “liberté indéfinie de la presse” [liberdade irrestrita de imprensa] (Constitution de 1793, Article 122) é garantida como consequência do direito humano à liberdade individual, a liberdade de imprensa é totalmente anulada, pois “la liberté de la presse ne doit pas être permise lorsqu’elle compromet la liberté publique” (Robespierre jeune, “Histoire parlementaire de la Révolution Française”, Buchez et Roux, v. 28, p. 159); isto quer dizer, portanto, que o direito humano à liberdade deixa de ser um direito assim que entra em conflito com a vida política, ao passo que pela teoria a vida política é tão somente a garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem individual e, portanto, deve ser abandonada assim que começa a entrar em contradição com os seus fins, com esses direitos humanos. Porém, a práxis é apenas a excepção, a teoria é a regra. Mas mesmo que encarássemos a própria práxis revolucionária como o posicionamento correcto frente à questão, ainda restaria resolver este enigma: por que na consciência dos emancipadores políticos a relação está posta de pernas para o ar, de modo que o fim aparece como meio e o meio como fim? Essa ilusão de óptica da sua consciência ainda seria o mesmo enigma, ainda que nesse caso um enigma teórico, psicológico.
A solução desse enigma é simples.
A emancipação política representa simultaneamente a dissolução da sociedade antiga, sobre a qual está baseado o sistema estatal alienado do povo, o poder do soberano. A revolução política é a revolução da sociedade burguesa. Qual era o carácter da sociedade antiga? Uma palavra basta para caracterizá-la: a feudalidade. A sociedade civil antiga possuía um carácter político imediato, isto é, os elementos da vida civil, como, por exemplo, a posse ou a família ou o modo do trabalho, foram elevados à condição de elementos da vida estatal nas formas da suserania, do estamento e da corporação. Nessas formas, eles determinavam a relação de cada indivíduo com a totalidade do Estado, ou seja, a sua relação política, ou seja, a sua relação de separação e exclusão dos demais componentes da sociedade. Aquela organização da vida do povo de facto não elevou a posse ou o trabalho à condição de elementos sociais, mas, pelo contrário, completou a sua separação da totalidade do Estado e os constituiu em sociedades particulares dentro da sociedade. Entretanto, as funções vitais e as condições de vida da sociedade civil permaneciam sendo políticas, ainda que no sentido da feudalidade, isto é, elas excluíam o indivíduo da totalidade do Estado, transformavam a relação particular da sua corporação com a totalidade do Estado em sua própria relação universal com a vida nacional, assim como transformava a sua actividade e situação civil específica na sua actividade e situação universal. Como consequência necessária dessa organização, a unidade do Estado, assim como o poder universal do Estado, que constitui a consciência, a vontade e a actividade da unidade do Estado, manifestam-se como assunto particular de um soberano e de seus servidores, separados do povo.
A revolução política que derrubou esse poder do soberano e alçou os assuntos de Estado à condição de assuntos de toda a nação, que constituiu o Estado político como assunto universal, isto é, como Estado real, desmantelou forçosamente o conjunto dos estamentos, corporações, guildas, privilégios, que eram outras tantas expressões da separação entre o povo e o seu sistema comunitário. Desse modo, a revolução política suprimiu o carácter político da sociedade civil. Ela decompôs a sociedade civil em seus componentes mais simples, ou seja, nos indivíduos, por um lado, e, por outro, nos elementos materiais e espirituais que constituem o conteúdo vital, a situação civil desses indivíduos. Ela desencadeou o espírito político que estava como que fragmentado, decomposto, disperso nos diversos becos sem saída da sociedade feudal; ela o congregou a partir dessa dispersão, depurou-o da sua mistura com a vida civil e o constituiu como a esfera do sistema comunitário, da questão universal do povo, com independência ideal em relação àqueles elementos particulares da vida civil. A actividade vital específica e a situação vital específica foram reduzidas a uma importância apenas individual. Elas não mais constituíam a relação universal do indivíduo com a totalidade do Estado. A questão pública como tal, pelo contrário, tornou-se a questão universal de cada indivíduo e a função política tornou-se a sua função universal.
Só que a realização plena do idealismo do Estado representou simultaneamente a realização plena do materialismo da sociedade civil. O acto de sacudir de si o jugo político representou simultaneamente sacudir de si as amarras que prendiam o espírito egoísta da sociedade civil. A emancipação política representou simultaneamente a emancipação da sociedade civil em relação à política, até em relação à aparência de um conteúdo universal.
A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no ser humano, só que no tipo de homem que realmente constituía esse fundamento, no ser humano egoísta.
Esse ser humano, o membro da sociedade civil, passa a ser a base, o pressuposto do Estado político. Este reconhece-o como tal nos direitos humanos.
No entanto, a liberdade do ser humano egoísta e o reconhecimento dessa liberdade constituem, antes, o reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que constituem o seu conteúdo vital. Consequentemente o ser humano não foi libertado da religião. Ganhou a liberdade de religião. Não foi libertado da propriedade. Ganhou a liberdade de propriedade. Não foi libertado do egoísmo do comércio. Ganhou a liberdade de comércio.
A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade civil nos indivíduos independentes – cuja relação é baseada no direito, assim como a relação do ser humano que vivia no estamento e na guilda era baseada no privilégio – efectiva-se em um só e mesmo acto. O ser humano, na qualidade de membro da sociedade civil, o ser humano apolítico, necessariamente se apresenta então como o ser humano natural. Os droits de l’homme apresentam-se como droits naturels, pois a actividade conscienteconcentra-se no acto político. O ser humano egoísta é o resultado passivo, simplesmente dado, da sociedade dissolvida, objecto da certeza imediata, portanto, objecto natural. A revolução política decompõe a vida civil em seus componentes sem revolucionar esses mesmos componentes nem submetê-los à crítica. Ela encara a sociedade civil, o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do direito privado, como o fundamento da sua subsistência, como um pressuposto sem qualquer fundamentação adicional, e, em consequência, como sua base natural. Por fim, o ser humano na qualidade de membro da sociedade civil é o que vale como o ser humano propriamente dito, como o homme em distinção do citoyen, porque ele é o ser humano que está mais próximo da sua existência sensível individual, ao passo que o ser humano político constitui apenas o ser humano abstraído, artificial, o ser humano como pessoa alegórica, moral. O ser humano real só chega a ser reconhecido na forma do indivíduo egoísta, o ser humano verdadeiro, só na forma do citoyen abstracto.
A abstracção do ser humano político é descrita acertadamente por Rousseau da seguinte maneira:
“Celui qui ose entreprendre d’instituer un peuple doit se sentir en état de changer pour ainsi dire la nature humaine, de transformer chaque individu, qui par lui-même est un tout parfait et solitaire, en partie d’un plus grand tout dont cet individu reçoive en quelque sorte sa vie et son être, [...] de substituer une existence partielle morale à l’existence physique et indépendante. Il faut qu’il ôte à l’homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères et dont il ne puisse faire usage sans le secours d’autrui”26 (“Contrat Social”, livre II, Londres, 1782, p. 67). [“Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser, [...] substituir a existência física e independente por uma existência parcial e moral. Numa palavra, é preciso que destitua o ser humano de suas próprias forças para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais não possa fazer uso sem socorro alheio”]
A questão judaica, 1844
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Admitir-se-á que a Inglaterra é um país político. Admitir-se-á ainda que a Inglaterra é o país do pauperismo; a própria palavra é de origem inglesa. Por isso, o exame da Inglaterra é a experiência mais segura para se conhecer a relação de um país políticocom o pauperismo. Na Inglaterra, a miséria dos trabalhadores não é parcial, mas universal; não se limita aos distritos industriais, mas estende-se aos agrícolas. Aqui, os movimentos não estão numa fase inicial, mas acontecem periodicamente há quase um século.
Como concebem o pauperismo a burguesia inglesa e o governo e a imprensa a ela ligados?
Na medida em que a burguesia inglesa admite que o pauperismo é culpa da política, o whig considera o tory e o tory o whig como a causa do pauperismo. Segundo o whig, o monopólio da grande propriedade fundiária e a legislação proteccionista contra a importação de cereais são a fonte principal do pauperismo. Segundo o tory, todo o mal reside no liberalismo, na concorrência, no exagerado desenvolvimento industrial. Nenhum dos partidos encontra a causa na política em geral, pelo contrário, cada um deles a encontra na política do partido adversário…
A expressão mais clara da interpretação inglesa do pauperismo — referimo-nos sempre às opiniões da burguesia inglesa e do governo inglês — é a economia política inglesa, isto é, o reflexo científico da situação da economia nacional inglesa.
Um dos melhores e mais famosos economistas ingleses, que conhece a situação actual e deve ter uma visão de conjunto do movimento da sociedade civil, um discípulo do cínico Ricardo, Mac Culloch, ousa ainda aplicar à economia política, numa prelecção pública, no meio de manifestações de aplauso, aquilo que Bacon diz da filosofia:
"O homem que, com verdadeira e infatigável sabedoria, suspenda o seu juízo, progrida pouco a pouco e supere um depois do outro os obstáculos que como montanhas impedem o curso dos estudos, atingirá com o tempo o cume da ciência, onde se goza a paz e o ar puro, onde a natureza se expõe diante dos olhos em toda a sua beleza e de onde, através de uma senda em cómodo declive, se pode descer até aos últimos detalhes da prática".
Bom ar puro a atmosfera pestilencial das habitações inglesas nas caves! Grande beleza da natureza os fantasiosos trapos com que se vestem os pobres ingleses, e a carne mirrada e enrugada das mulheres roídas pelo trabalho e pela miséria; as crianças que jazem no esterco; os abortos provocados pelo excesso de trabalho no uniforme mecanismo das fábricas! E os graciosíssimos últimos detalhes da prática: a prostituição, o crime e a forca!
Até mesmo aquela parte da burguesia inglesa que está consciente do perigo do pauperismo concebe este perigo, como também os meios para repará-lo, não apenas de forma particular, mas, para dizê-lo sem rodeios, de forma infantil e disparatada.
Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo Recent measures for he promotion of education in England, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo! Com efeito, por falta de educação o trabalhador não vê nomeadamente as “leis naturais do comércio”, leis que o reduzem necessariamente ao pauperismo. Daí a sua rebelião. Isto pode "perturbar a prosperidade das manufaturas inglesas e do comércio inglês, abalar a confiança recíproca dos homens de negócios, diminuir a estabilidade das instituições políticas e sociais".
A tal ponto chega a desconsideração da burguesia inglesa e da sua imprensa pelo pauperismo, por esta epidemia nacional da Inglaterra…
Na medida em que os Estados ... se ocuparam do pauperismo, sempre se ativeram a medidas de administração e de assistência, ou ficaram mesmo abaixo da administração e da assistência.
Pode o Estado comportar-se de outra maneira?
O Estado jamais encontrará no "Estado e na organização da sociedade" o fundamento dos males sociais … Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no facto de não ser ele, mas o partido seu adversário, que se encontra ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado.
O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por um outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, da suspeita disposição contra-revolucionária dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os pobres, o rei da Prússia admoesta os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários.
Afinal, todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais ou intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas. Por que? Exactamente porque a administração é a actividade organizadora do Estado.
O Estado não pode eliminar a contradição entre a definição e a boa vontade da administração, por um lado, e os seus meios e possibilidades, por outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração tem de limitar-se a uma actividade formal e negativa, uma vez que exactamente onde começa a vida civil e o seu trabalho cessa o seu poder. Mais ainda, frente à consequências que brotam da natureza associal desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, desta rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas consequências, a impotênciaé a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde assenta o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga — francas antíteses clássicas – não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo do regateio — hipócritas antíteses cristãs. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a actual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar-se a si mesmo, uma vez que ele sóexiste como antítese dela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos da sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, pelo contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade gente privada é por demais corrupta para corresponder aos bons objectivos da administração. E quem é essa perversa gente privada? São os que murmuram contra o governo sempre que ele limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as consequências necessárias dessa liberdade!
Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no actual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão activa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O entendimento político é político porque pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto mais é incapaz de compreender os males sociais. O período clássico do entendimento político é a Revolução Francesa. Bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais, os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das más condições políticas. Deste modo, Robespierre vê na grande miséria e na grande riqueza um obstáculo à democracia pura. Por isso, ele quer estabelecer uma frugalidade espartana geral. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o entendimento político, tanto mais ele crê na omnipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais ...
É falso que a miséria social gere o entendimento político, pelo contrário, é o bem-estar social que gera o entendimento político. O entendimento político é um entendimento espiritualista e é concedido a quem já tem, a quem está comodamente instalado …
Quanto mais evoluído e geral é o entendimento político de um povo tanto mais o proletariado – pelo menos no início do movimento — gasta as suas forças em insensatas e inúteis revoltas sufocadas em sangue. Uma vez que ele pensa na forma da política, vê o fundamento de todos os males na vontade e todos os meios para remediá-los na violência e na derrocada de uma determinada forma de Estado. Prova: as primeiras revoltas do proletariado francês. Os operários de Lyon julgavam perseguir apenas fins políticos, ser apenas soldados da república, enquanto de facto eram soldados do socialismo. Deste modo, o seu entendimento político lhes tornou obscuras as raízes da miséria social, falseou o conhecimento dos seus objectivos reais e, deste modo, o seu entendimento político enganou o seu instinto social …
A natureza humana é a verdadeira comunidade dos seres humanos. E assim como o desesperado isolamento dela é incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório do que o isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e até uma reacção parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais ilimitada quanto mais ilimitado é o ser humano em relação ao cidadão e a vida humana em relação à vida política. Deste modo, por mais parcial que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela esconde, sob as formas mais colossais, um espírito estreito …
Uma revolução social situa-se do ponto de vista da totalidade porque — mesmo que aconteça apenas em um distrito industrial — ela é um protesto do ser humano contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista do indivíduo singular real, porque a comunidade, contra cuja separação o indivíduo reage, é a verdadeira comunidade do homem, é a natureza humana. Pelo contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes politicamente privadas de influência a superar o seu isolamento do Estado e do poder. O seu ponto de vista é o do Estado, de uma totalidade abstracta, que subsiste apenas através da separação da vida real, que é impensável sem o antagonismo organizado entre a ideia geral e a existência individual do ser humano. Por isso, uma revolução com alma política organiza também, de acordo com a natureza limitada e contraditória dessa alma, um círculo dirigente na sociedade à custa da sociedade …
A revolução em geral — a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações — é um acto político. Por isso, o socialismo não pode realizar-se sem revolução. Ele tem necessidade desse acto político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua actividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objectivo, a sua alma, aí o socialismo desembaraça-se do seu invólucro político.
Glosas críticas à margem do artigo dum prussiano, 1844
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As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se. Temos, portanto, de olhar para os seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e consequentemente não opõem resistência à pessoa. Se não se lhe submetem de boa vontade, ela pode usar de violência, por outras palavras, pode tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um somente se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um acto de vontade comum a ambos. Para isso têm de reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade em que se reflecte a relação económica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação económica mesma. As pessoas aqui só existem umas para as outras como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias. Veremos no decurso do desenvolvimento, em geral, que as máscaras de personagens económicos das pessoas nada mais são que personificações das relações económicas, como portadoras das quais elas se defrontam.
O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
Proudhon cria primeiro o seu ideal de justiça, da justice éternelle, a partir das relações jurídicas correspondentes à produção de mercadorias, com o que, diga-se de passagem, se apresenta a prova, tão consoladora para todos os filisteus, de que a forma de produção de mercadorias é algo tão eterno como a justiça. Depois, inversamente, ele pretende remodelar a produção real de mercadorias e o direito real correspondente segundo esse ideal. Que pensaríamos de um químico que, em vez de estudar as verdadeiras leis do metabolismo e com base nelas resolver determinados problemas, pretendesse remodelar o metabolismo por meio de “ideias eternas” de naturalité e de affinité?
O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, dentro de cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho, era de facto um verdadeiro éden dos direitos humanos inatos. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo da força de trabalho, são determinados apenas pela sua vontade livre. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final em que as suas vontades se dão uma expressão jurídica comum. Igualdade! Pois relacionam-se um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. E, justamente porque cada um só cuida de si e nenhum do outro, todos realizam, graças a uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma Previdência em tudo esperta, apenas a obra da sua vantagem mútua, do bem comum, do interesse geral.
Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, da qual o defensor do comércio livre vulgaris extrai concepções, conceitos e critérios para o seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já se transforma em certa medida, ao que parece, a fisionomia das nossas dramatis personae. O antigo possuidor do dinheiro caminha à frente como capitalista, segue-o o possuidor da força de trabalho como seu trabalhador; um, cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido de negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele ao mercado e agora não tem mais nada a esperar senão o — curtume.
O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
Falar aqui de justiça natural ... como faz Gilbart (The History and Principles of Banking, Londres, 1834), é absurdo. A justiça das transacções que se efectuam entre os agentes da produção baseia-se na circunstância de estas transacções se originarem das relações de produção, como consequência natural. As formas jurídicas em que estas transacções económicas aparecem como actos de vontade dos participantes, como expressões da sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta a cada parte pelo Estado não podem, como meras formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo na medida em que corresponde ao modo de produção, é adequado para ele.
O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894
É moda fazer preceder a Economia de uma parte geral — e justamente a que figura sob o título “Produção” … — na qual são tratadas as condições gerais de toda a produção … Os dois pontos fundamentais que os economistas colocam sob essa rubrica são: 1) Propriedade; 2) Sua protecção pela justiça, polícia etc. Ao que se deve responder muito brevemente:
ad 1. Toda a produção é apropriação da natureza pelo indivíduo no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade. Nesse sentido, é uma tautologia afirmar que propriedade (apropriação) é uma condição da produção. É risível, entretanto, dar um salto daí para uma forma determinada de propriedade, por exemplo, para a propriedade privada. (O que, além disso, presumiria da mesma maneira uma forma antitética, a não propriedade, como condição.) A história mostra, pelo contrário, a propriedade comunal (por exemplo, entre os hindus, os eslavos, os antigos celtas etc.) como a forma original, uma forma que cumpre por um longo período um papel significativo sob a figura de propriedade comunal …
ad 2. Segurança dos bens adquiridos etc. Quando tais trivialidades são reduzidas ao seu efectivo conteúdo, expressam mais do que sabem os seus pregadores. A saber, que toda forma de produção forja as suas próprias relações jurídicas, forma de governo etc. A rudeza e a falta de perspicácia consistem precisamente em relacionar casualmente o que é organicamente conectado, em trazê-lo para um mero contexto de reflexão. Os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a polícia moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só esquecem que o direito do mais forte também é um direito, e que o direito do mais forte subsiste sob outra forma em seu “Estado de direito”.
Linhas gerais da crítica da economia política [Grundrisse], escrito em 1857-1858
Hegel qualifica o direito privado como o direito da personalidade abstracta ou como o direito abstracto. E, na verdade, ele tem que ser desenvolvido como a abstracção do direito e, com isso, como o direito ilusório da personalidade abstracta, assim como a moralidade desenvolvida por Hegel é a existência ilusória da subjectividade abstracta. Hegel desenvolve o direito privado e a moralidade como tais abstracções, contudo disso não se segue que o Estado, a eticidade, que os tem como pressupostos, não possa ser senão a sociedade (a vida social) dessas ilusões, mas conclui-se, pelo contrário, que elas são momentos subalternos dessa vida ética. No entanto, o que é o direito privado senão o direito, e o que é a moral senão a moral desses sujeitos do Estado?
Crítica do direito do Estado de Hegel, escrito em 1843
O quanto as condições jurídicas estão associadas ao desenvolvimento desses poderes efectivos derivados da divisão do trabalho, é facto que pode ser reconhecido já a partir da evolução histórica do poder dos tribunais e da lamúria dos feudais em relação à evolução do direito … Exactamente … quando as relações comerciais entre as nações europeias começou a ganhar importância e, em consequência, a própria relação internacional assumiu um carácter burguês, o poder dos tribunais começou a ter mais relevância, chegando ao seu ápice sob o domínio burguês, para o qual essa divisão consumada do trabalho é incontornavelmente necessária. É totalmente indiferente o que os servos da divisão do trabalho, os juízes, e até mesmo os professores juris imaginam sobre isso.
As relações de produção dos indivíduos até aqui estabelecidas ... têm de se exprimir em relações políticas e jurídicas ... No âmbito da divisão do trabalho, essas relações tornam-se obrigatoriamente independentes dos indivíduos. Todas as relações só podem ser expressas em termos de linguagem na forma de conceitos. O facto de essas generalidades e conceitos serem considerados como forças misteriosas é uma consequência necessária da autonomização das relações reais, de que são a expressão. Além dessa validade para a consciência comum, essas generalidades ainda adquirem uma validade e uma conformação especial dos políticos e juristas, os quais, em virtude da divisão do trabalho, dependem do cultivo desses conceitos e vêem neles, e não nas relações de produção, o verdadeiro fundamento de todas as reais relações de propriedade.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
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Chego agora à secção democrática … Antes de mais … o Partido Operário Alemão aspira «ao Estado livre».
Estado livre — que é isso?
Não é de modo nenhum objectivo dos operários que se livraram do entendimento limitado dos submetidos tornar o Estado «livre». No Império alemão, o «Estado» é quase tão «livre» como na Rússia. A liberdade consiste em transformar o Estado de órgão superior à sociedade em órgão a ela inteiramente subordinado, e hoje em dia também as formas de Estado são mais livres ou menos livres na medida em que elas limitam a «liberdade do Estado» …
As suas reivindicações políticas não contêm senão a velha ladainha democrática, conhecida de toda a gente: sufrágio universal, legislação directa, direito do povo, exército do povo, etc. São um simples eco do Partido Popular burguês, da Liga da Paz e da Liberdade. São reivindicações altissonantes que, uma vez que não sejam exageradas em representação fantástica, estão já realizadas. Só que o Estado ao qual elas pertencem não está dentro das fronteiras do Império alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos, etc. Esta espécie de «Estado do futuro» é Estado actual, se bem que existindo fora «do quadro» do Império alemão …
Que, de facto, por «Estado» se entende a máquina do governo, ou o Estado na medida em que ele forma um organismo separado da sociedade pela divisão do trabalho, mostram-no já estas palavras: «O Partido Operário Alemão reclama como base económica do Estado: um imposto único e progressivo sobre o rendimento, etc.» Os impostos são a base económica da máquina do governo e de nada mais. No Estado do futuro que existe na Suíça esta reivindicação está consideravelmente satisfeita. O imposto sobre o rendimento pressupõe as diversas fontes de rendimento das diversas classes sociais, ou seja, a sociedade capitalista. Não é, pois, nada de extravagante que os financial reformers de Liverpool — burgueses com o irmão de Gladstone à cabeça — apresentem a mesma reivindicação que o programa …
Uma «educação popular pelo Estado» é totalmente condenável. Determinar por uma lei geral os meios das escolas primárias, a qualificação do pessoal docente, os ramos de ensino, etc, e, como acontece nos Estados Unidos, supervisionar por inspectores do Estado o cumprimento destas prescrições legais, é algo totalmente diferente de nomear o Estado educador do povo! Pelo contrário, tanto o governo como a Igreja devem ser excluídos de qualquer influência sobre a escola. Ora, no Império prussiano-alemão (e que não se recorra ao subterfúgio duvidoso de que se está a falar de um «Estado do futuro»: já vimos o que ele é), inversamente, é o Estado que precisa de uma muito rude educação pelo povo.
O programa todo, aliás, apesar de todo o tinido democrático, está de uma ponta à outra empestado pela crença servil da seita de Lassalle no Estado ou, o que não é melhor, pela crença democrática em milagres, ou antes, ele é um compromisso entre estas duas espécies de crenças em milagres, igualmente distantes do socialismo.
Crítica do Programa de Gotha. Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão, escrito em 1875
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O que Hegel diz sobre o “poder governamental” não merece o nome de desenvolvimento filosófico. A maior parte dos parágrafos poderia figurar, literalmente, no código civil prussiano, e no entanto a administração propriamente dita é o ponto mais difícil do desenvolvimento.
Como Hegel já reivindicou para a esfera da sociedade civil o poder “policial” e o poder “judicial”, então o poder governamental não é senão a administração, que ele desenvolve como burocracia.
Na burocracia está pressuposta, primeiramente, a “auto-administração” da sociedade civil em “corporações”. A única determinação que a ela se acrescenta é de que a eleição dos administradores, das suas autoridades etc. é uma eleição mista, da iniciativa dos cidadãos e confirmada pelo poder governamental propriamente dito (“confirmação superior”, como diz Hegel) …
Hegel parte da separação entre “Estado” e sociedade “civil”, entre os “interesses particulares” e o “universal que é em si e para si”, e a burocracia está, de facto, baseada nessa separação. Hegel parte do pressuposto das “corporações” e, de facto, a burocracia pressupõe as corporações, pelo menos o “espírito corporativo”. Hegel não desenvolve nenhum conteúdo da burocracia, mas apenas algumas determinações gerais da sua organização “formal” e, de facto, a burocracia é apenas o “formalismo” de um conteúdo que está fora dela.
As corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a burocracia é a corporação do Estado. Por isso, na realidade, ela se defronta, na condição de “sociedade civil do Estado”, com o “Estado da sociedade civil”, com as corporações. Lá onde a “burocracia” é um novo princípio, onde o interesse universal do Estado começa a tornar-se para si um interesse “à parte” e, com isso, “real”, ela luta contra as corporações, como toda a consequência luta contra a existência dos seus pressupostos …
O mesmo espírito que cria, na sociedade, a corporação, cria, no Estado, a burocracia. Portanto, logo que o espírito corporativo é atacado, é atacado o espírito da burocracia; e se, antes, a burocracia combateu a existência das corporações para criar espaço para sua própria existência, agora ela busca manter à força a existência das corporações para salvar o espírito corporativo, o seu próprio espírito.
A “burocracia” é o “formalismo de Estado” da sociedade civil. Ela é a “consciência do Estado”, a “vontade do Estado”, o “poder do Estado” como uma corporação (em contraposição ao particular, o “interesse universal” pode manter-se apenas como um “particular”, tanto quanto o particular, contraposto ao universal, se mantém como um “universal”. A burocracia, portanto, tem de proteger a universalidade imaginária do interesse particular, o espírito corporativo, a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse universal, o seu próprio espírito. O Estado deve ser corporação tanto quanto a corporação quer ser Estado), como uma sociedade particularfechada, no Estado. Mas a burocracia quer a corporação como um poder imaginário. De facto, também cada corporação tem, como seu interesse particular, esta vontade contra a burocracia, mas ela quer a burocracia contra a outra corporação, contra o outro interesse particular. Portanto, a burocracia traz consigo, como corporação acabada, a vitória sobre a corporação, como burocracia inacabada. Ela rebaixa a corporação a uma aparência e quer rebaixá-la a esta condição, ao mesmo tempo que pretende que esta aparência exista e creia na sua própria existência. A corporação é a tentativa da sociedade civil de se tornar Estado; mas a burocracia é o Estado que se fez realmente sociedade civil.
O “formalismo de Estado”, que é a burocracia, é o “Estado como formalismo”, e como tal formalismo Hegel a descreveu. Que este “formalismo de Estado” se constitua em potência real e que ele mesmo se torne o seu próprio conteúdo material, isto é evidente na medida em que a “burocracia” é uma rede de ilusões práticas, ou seja, a “ilusão do Estado”. O espírito burocrático é um espírito profundamente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas do Estado, os teólogos do Estado. A burocracia é a république prêtre. Visto que a burocracia é, segundo a sua essência, o “Estado como formalismo”, então também o é segundo a sua finalidade. A finalidade real do Estado aparece à burocracia, portanto, como uma finalidade contra o Estado. O espírito da burocracia é o “espírito formal do Estado”. Por isso ela transforma o “espírito formal do Estado”, ou a real falta de espírito do Estado, em imperativo categórico. A burocracia considera-se o fim último do Estado. Como a burocracia faz dos seus fins “formais” o seu conteúdo, ela entra em conflito, em toda parte, com os fins “reais”. Ela é forçada, por conseguinte, a fazer passar o formal pelo conteúdo e o conteúdo pelo formal. Os fins do Estado transformam-se em fins da burocracia ou os fins da burocracia em fins do Estado. A burocracia é um círculo do qual ninguém pode escapar. A sua hierarquia é uma hierarquia do saber. A cúpula confia aos círculos inferiores o conhecimento do particular, os círculos inferiores confiam à cúpula o conhecimento do universal, e assim se enganam mutuamente.
A burocracia é o Estado imaginário ao lado do Estado real, o espiritualismo do Estado. Cada coisa tem, por isso, um duplo significado, um real e um burocrático, do mesmo modo que o saber é duplo, um saber real e um burocrático (assim também a vontade). Mas o ser real é tratado segundo a sua essência burocrática, segundo a sua essência transcendente, espiritual. A burocracia tem a posse da essência do Estado, da essência espiritual da sociedade; esta é sua propriedade privada. O espírito universal da burocracia é o segredo, o mistério; guardado em seu interior por meio da hierarquia, como corporação fechada em relação ao exterior …
A autoridade é, portanto, o princípio do seu saber e o culto da autoridade é a sua disposição. No seu interior, porém, o espiritualismo torna-se um materialismo crasso, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma actividade formal fixa, de princípios, ideias e tradições fixos. Quanto ao burocrata tomado individualmente, o fim do Estado torna-se o seu fim privado, uma corrida aos postos mais altos, um carreirismo. Primeiramente, ele considera a vida real como uma vida material, já que o espírito desta vida tem a sua existência separada para sina burocracia. A burocracia, assim, tem de tornar a vida tão material quanto possível. Em segundo lugar, a vida é material para o burocrata — quer dizer, uma vez que ela se torna objecto da actividade burocrática — na medida em que o seu espírito lhe é prescrito, a sua finalidade existe fora dele, a sua existência é a existência da repartição. O Estado existe apenas como diferentes espíritos de repartição, imóveis, cuja coesão consiste na subordinação e na obediência passiva. A ciência real aparece como desprovida de conteúdo, assim como a vida real aparece como morta, uma vez que este saber imaginário e essa vida imaginária valem pela essência. O burocrata, por isso, tem de proceder de maneira jesuítica para com o Estado real, seja este jesuitismo consciente ou inconsciente. Mas é necessário que este jesuitismo, tendo a ciência como seu oposto, chegue também à autoconsciência e se torne então um jesuitismo deliberado.
Enquanto, por um lado, a burocracia é este materialismo crasso, o seu espiritualismo crasso mostra-se, por outro lado, no facto de ela querer fazer tudo, isto é, de ela fazer da vontade a causa prima, pois ela é mera existência activa e recebe o seu conteúdo do exterior e, portanto, só pode demonstrar a própria existência ao formar e limitar este conteúdo. Para o burocrata, o mundo é um mero objecto da sua manipulação ...
Na burocracia, a identidade do interesse estatal e do fim particular privado está colocada de modo que o interesse estatal se torna um fim privado particular, contraposto aos demais fins privados.
A supressão da burocracia só pode consistir em que o interesse universal se torne realmente – e não, como em Hegel, penas no pensamento, na abstracção– interesse particular, o que é possível apenas contanto que o interesse particular se torne realmente universal. Hegel parte de uma oposição irreal e a conduz somente a uma identidade imaginária, ela mesma, na verdade, uma identidade contraditória. Uma tal identidade é a burocracia.
Crítica do direito do Estado de Hegel, escrito em 1843
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Torna-se imediatamente óbvio que num país como a França, onde o poder executivo controla um exército de funcionários com mais de meio milhão de indivíduos e portanto mantém uma imensa massa de interesses e de existências na mais absoluta dependência; onde o Estado enfeixa, controla, regula, superintende e mantém sob tutela a sociedade civil, desde as suas mais amplas manifestações de vida até às suas vibrações mais insignificantes, desde as suas formas mais gerais de comportamento até à vida privada dos indivíduos; onde, através da mais extraordinária centralização, esse corpo de parasitas adquire uma ubiquidade, uma omnisciência, uma capacidade de acelerada mobilidade e uma elasticidade que só encontra paralelo na dependência desamparada, no carácter caoticamente informe do próprio corpo social — compreende-se que em tal país a Assembleia Nacional perca toda a influência real quando perde o controlo das pastas ministeriais, se não simplifica ao mesmo tempo a administração do Estado, reduz o corpo de oficiais do exército ao mínimo possível e, finalmente, deixa a sociedade civil e a opinião pública criarem órgãos próprios, independentes do poder governamental. Mas é precisamente com a manutenção dessa dispendiosa máquina estatal em suas numerosas ramificações que os interesses materiais da burguesia francesa estão entrelaçados da maneira mais íntima. Aqui encontra postos para a sua população excedente e compensa sob a forma de vencimentos o que não pode embolsar sob a forma de lucros, juros, rendas e honorários. Por outro lado, os seus interesses políticos forçaram-na a aumentar diariamente a repressão e, portanto, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto ao mesmo tempo teve de empenhar-se numa guerra ininterrupta contra a opinião pública, mutilando e paralisando preventivamente os órgãos independentes do movimento social, onde não conseguiu amputá-los completamente …
O Poder Executivo, com a sua imensa organização burocrática e militar, com a sua engenhosa máquina do Estado, abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio milhão, além de mais meio milhão de tropas regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o corpo da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu no tempo da monarquia absoluta, com o declínio do sistema feudal, que contribuiu para apressar. Os privilégios senhoriais dos senhores de terras e das cidades transformaram-se em outros tantos atributos do poder do Estado, os dignitários feudais em funcionários pagos e o variegado mapa dos poderes absolutos medievais em conflito entre si, no plano regular de um poder estatal cuja tarefa está dividida e centralizada como numa fábrica. A primeira Revolução Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes — locais, territoriais, urbanos e provinciais — a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoou essa máquina estatal. A monarquia legitimista e a monarquia de Julho nada mais fizeram do que acrescentar maior divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho dentro da sociedade civil criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administração do Estado. Todo o interesse comum foi imediatamente cortado da sociedade, contraposto a ela como um interesse superior, geral, retirado da actividade dos próprios membros da sociedade e transformado em objecto da actividade do governo, desde a ponte, o edifício da escola e a propriedade comunal de uma aldeia, até aos caminhos de ferro, aos bens nacionais e às universidades da França. Finalmente, em sua luta contra a revolução, a república parlamentar viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas repressivas, os recursos e a centralização do poder governamental. Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a destruir. Os partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa imensa estrutura do Estado como o principal espólio do vencedor …
Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital, a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de impostos. Os impostos são a fonte de vida da burocracia, do exército, dos padres e da corte, em suma, de toda a máquina do poder executivo. Governo forte e impostos fortes são coisas idênticas … E uma vasta burocracia, bem engalanada e bem alimentada, é a idée napoleoniénne mais do agrado do segundo Bonaparte. Como poderia ser de outra maneira, visto que ao lado das classes existentes na sociedade ele é forçado a criar uma casta artificial, para a qual a manutenção do seu regime se transforma numa questão de subsistência? Uma das suas primeiras operações financeiras, portanto, foi elevar os salários dos funcionários ao nível anterior e criar novas sinecuras.
O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 1869