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Primeira Edição: Original Postmarxismus und Arbeitsfetisch. Zum historischen Widerspruch in der Marxschen Theorie em www.exit-online.org. Publicado na Revista KRISIS, nº 15, 1995. Versão portuguesa em http://obeco-online.org/, Setembro de 2003.
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Se o marxismo como forma histórica (e a ser historiada) da reflexão teórico-social não há-de ser hoje nem levado adiante integral nem simplesmente descartado como "erro", mas antes superado (aufzuheben), então resta saber naturalmente com auxilio de que conteúdos e critérios deve proceder essa aguardada superação. Pois é sabido que um marxismo integral, unitário e incontroverso jamais existiu como tal, nem mesmo na história interna da época da "modernização" que agora chega ao fim. Hoje tal facto torna de novo aparentemente possível uma reacção à crise (ou na verdade já à decadência) do marxismo, reacção esta essencialmente vinculada ao passado e que gostaria de desenterrar alguns antigos ossos daquelas muitas variedades e ramificações que já no passado tiveram um destino ideológico de Neandertal. O problema da superação não pode contudo ser arqueológico: está disponível toda a história da modernização dos últimos cem anos, com todos os seus marxismos. Para fixar um ponto de partida, pode ser útil um breve relance nas rupturas da própria história ideológica interna do marxismo do movimento operário ou da modernização até aos dias de hoje.
Repetidas vezes a teoria de Marx já foi declarada morta, e reiteradamente ela provou a sua força de sobrevivência ante relações insuperadas, nas quais o homem permanece em boa parte um ser escravizado por mudas coerções. Na história da modernização, esse estado nunca pôde ser ultrapassado, e no momento estamos aparentemente mais afastados do que nunca do cumprimento da promessa de superação. Porém não se deve esperar com demasiado fervor uma ressurreição quase-automática dos princípios marxianos e do seu conteúdo emancipatório, mais ou menos como os neoliberais aguardam os poderes autocurativos do mercado, alguns marxistas tardios o próximo "modelo de acumulação" capitalista e as seitas escatológicas o regresso de Cristo. Já no passado, o enterro e a ressurreição de Karl Marx sempre foram acompanhados por rupturas e rejeições teóricas e sociais, nas quais o processo de modernização ainda inesgotado se impunha aos solavancos e se revelava em novas e surpreendentes formas. Assim, as diversas "crises do marxismo" conduziram de cada vez a uma forçosa reinterpretação e controversa reformulação da teoria de Marx no contexto social modificado.
A primeira "crise do marxismo" eclodiu quando, ao fim da longa estagnação da unificação alemã, se revelou a ulterior capacidade de acumulação a longo prazo do capitalismo e o movimento operário ocidental por toda parte se voltou para uma "Realpolitik" reformista e imanente ao capital. Enquanto os marxistas reformistas, dos quais Eduard Bernstein era um dos representes na Alemanha, reformulavam nesse sentido a teoria de Marx e descartavam alguns de seus momentos como falsos ou "metafísicos", os guardiães do Graal da herança não adulterada de Marx, com Karl Kautsky à cabeça, teimavam numa ortodoxia cada vez mais estéril, que não podia ser concretizada na realidade social do momento. Essa ortodoxia permaneceu em todo caso, ao menos na Alemanha, a doutrina teórica oficial da social-democracia, ainda que a efectiva praxis política cada vez menos tivesse a ver com ela.
A segunda "crise do marxismo", na Primeira Guerra Mundial, trouxe o grande cisma entre a social-democracia e o comunismo. Desta vez, a reinterpretação da teoria de Marx veio da "esquerda", ao contrario da época anterior. Com a Revolução de Outubro às costas, Lenine rompeu tanto com o reformismo ocidental quanto com a chata ortodoxia kautskyana. Em resposta aos problemas da revolução numa Rússia atrasada em termos capitalistas, a teoria de Marx foi reformulada contudo menos pela crítica da economia política ou por seu conteúdo filosófico, que no aspecto "politicista", no sentido de uma imposição revolucionaria do poder e como modelo das relações em boa parte agrarias e pré-modernas. A "radicalidade" referia-se sobretudo a procedimentos e formas do movimento político, pouco ao conteúdo histórico e quase nada à determinação económica da forma da própria sociedade, uma vez que a postulada alternativa da planificação económica jamais abandonou as categorias económicas fundamentais da modernidade produtora de mercadorias, cuja forma ocidental permaneceu modelo expresso em vários aspectos. Tudo corria sob a "economia planificada" e a "eliminação da propriedade privada", não passando de um derivado económico-estatal da relação capitalista.
A reinterpretação comunista ou bolchevique da teoria de Marx transformou-se assim no programa teórico de uma modernização retardatária das regiões atrasadas em termos capitalistas no leste e no sul do planeta. Ela encontrou sua eficácia histórica na industrialização soviética, na revolução chinesa e nos movimentos de libertação nacional anticolonialistas. No ocidente, pelo contrário, o comunismo e os ramos da esquerda radical permaneceram minoria ou simples fenómenos marginais. Apesar de a sua teoria não corresponder às relações ocidentais desenvolvidas, o assim chamado "primado da política", na verdade germinado no terreno de uma modernização retardatária, tornou-se ainda assim o legado teórico e a marca da fábrica também do comunismo ocidental até hoje, muitas vezes ainda ampliado de forma voluntarista, ao passo que a crítica da economia política não foi substancialmente além do estágio atingido por Kautsky/Hilferding (ou, na sua esteira, Lenine).
O choque da crise capitalista do mercado mundial, o grande êxito temporário da industrialização soviética, a revolução chinesa e os resultados da Segunda Guerra Mundial estabilizaram, num primeiro momento, a reformulação comunista da teoria de Marx e pareceram sugerir o advento de um sistema comunista mundial (fosse capitalista de estado ou socialista de estado). A terceira "crise do marxismo" tornou-se porém inevitável quando o "milagre económico" ocidental do pós-guerra, com taxas inusitadas de crescimento, fez empalidecer e rebaixou a ritual distributivo a crítica do capitalismo nos países ocidentais desenvolvidos, ao mesmo tempo que as economias orientais (e meridionais) da modernização retardatária decaíam relativamente ainda mais e começavam a petrificar-se tanto no aspecto económico quanto no social, cultural e teórico. O "marxismo-leninismo" fixou-se num esquema dogmático e a social-democracia ocidental desembaraçou-se da teoria de Marx em geral como doutrina ("Godesberg")(1).
A reconstrução e reformulação da teoria de Marx também nesta situação veio novamente da "esquerda", desta vez numa peculiar amálgama de teorias ocidentais do sujeito, representadas sobretudo pelo movimento jovem e estudantil de 68, por um lado, e, por outro, da última onda dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo (Vietname, entre outros), flanqueada pela interpretação especificamente chinesa de Marx por Mao Tse- tung. O denominador comum dessas reinterpretações era a apoteose teórica do voluntarismo "politicista". Assim, tal reformulação da "Nova Esquerda" era a mais fraca até então, pois não fazia senão reproduzir de forma ampliada no novo contexto o antigo "politicismo" das esquerdas radicais e do seu prolongamento voluntarista nas respectivas correntes dos anos 20 ou 30. A única fonte realmente original dentro da "Nova Esquerda" (ao lado de Ernst Bloch, cuja recepção foi contudo periférica) era a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que já fora formulada muito antes e que em geral ficou à margem das coisas marxistas. Tal projecto, cujas implicações "sombrias" e por vezes cripticamente formuladas permaneceram inexploradas, foi entretanto assimilado quase que exclusivamente na sua leitura voluntarista e compatibilizado até mesmo com a tosca doutrina utilitarista das "ideias de Mao Tse-tung". A reformulação da teoria de Marx pela "Nova Esquerda" aparece assim como o produto do ocaso do marxismo, no qual nenhum projecto realmente autónomo foi elaborado, sendo antes todas as concepções do passado mais uma vez repisadas eclecticamente.
A crítica ao capitalismo desse fogoso radicalismo de esquerda foi sempre fraca, na medida em que deixava intactas as formas básicas do sistema capitalista e produtor de mercadorias, percebidas apenas no seu aspecto externo. As sociedades em desenvolvimento do leste e do sul, baseadas na economia estatal de recuperação tardia, foram criticadas no plano político e cultural (inadequada e inconsequentemente) devido a certos fenómenos "não-democráticos", ao passo que a sua verdadeira forma de reprodução burguesa continuou por equívoco a ser tomada como "bases económicas do socialismo". Tornou-se inevitável a quarta "crise do marxismo". Sob as condições de produtividade e de desenvolvimento do mercado mundial dos anos 80, ruíram primeiro grande parte do chamado Terceiro Mundo e depois também as economias do chamado "socialismo real". As concepções politicistas da esquerda ocidental revelaram-se enfim como conformes ao capital e transmutaram-se numa nova "Realpolitik". A Nova Esquerda experimentou assim o seu "Godesberg" específico. A teoria de Marx, desigual pela própria história de recepção contraditória nos surtos globais de modernização desde inícios do século XX, foi mais uma vez (apressadamente) baixada à cova.
Se agora se levanta a questão do reiterado revival de uma teoria crítica, que de facto só pode morrer juntamente com o seu objecto, o capital, isso não se dá decerto por razões de fidelidade ideológica duma crédula paróquia marxista, agarrada à sua bíblia e solidamente firme na fé. Tal como no passado, também hoje em dia só uma constelação social do próprio tempo será capaz de inalar vida nova à teoria marxista considerada morta. A realidade contemporânea da sociedade mundial, meia década após o colapso do socialismo real, é no entanto a de uma crise global nunca vista em suas dimensões. Muito mais provável que a transformação das sociedades em ruínas do leste e do sul em economias de mercado e democracias funcionais, com um novo surto subsequente de acumulação capitalista mundial, é o fim comum da modernidade produtora de mercadorias numa barbárie global. Também dificilmente será uma solução, se as diversas pretensões renovadoras oriundas do actual marxismo desembocarem de certo modo numa bernsteiniada à segunda potência. No entanto parece ser mais ou menos justamente esse o caso na maioria dos envelhecidos projectos do que restou do marxismo académico
A razão mais profunda para esta elaboração da última crise do marxismo ser notavelmente superficial, indigna de fé e não levar a nada de novo reside no facto de todos os marxismos até hoje terem permanecido imanentes à história da modernização, ou seja, terem estado mais fortemente comprometidos com a dinâmica da modernidade contra a sociedade agrária pré-moderna e suas sequelas do que com a crítica ainda não claramente formulável do sistema produtor de mercadorias da própria modernidade. Isso não se aplicou apenas aos marxismos das sociedades em modernização retardatária no leste e no sul, mas também aos marxismos do velho movimento operário no ocidente. O marxismo como um todo desenvolveu assim a sua polémica principalmente contra as relações e parâmetros pré-modernos, em cujos conceitos a própria relação capitalista era ainda entendida e criticada.
Isso não e de espantar, na medida em que o capital e as formas e esferas secundárias que lhe correspondem de maneira alguma ingressaram na história em estado puro e tipicamente ideal, mas múltipla e inextricavelmente vinculados e misturados a estruturas, padrões de conduta e formas de pensamento tradicionais. Século XX adentro, "o capital" foi por assim dizer idêntico à sua história de consolidação (mesmo no ocidente), ou seja, "foi" uma miscelânea em e com um mundo ainda de modo algum plenamente capitalizado, "foi" o abraço de momentos capitalistas e pré-capitalistas, modernos e pré-modernos. Sob tais condições, não se podia na verdade criticar o capitalismo como tal (isto é, em suas formas-fetiches básicas), mas somente uma amálgama social com que a cada momento se deparava, de certo modo do ponto de vista virtual do "degrau seguinte" (sempre capitalista) no estágio de desenvolvimento
Por outras palavras: o que os marxistas criticavam era o capital empírico de um empírico estado de transição histórico (o passado, visto de hoje), e essa crítica imanente necessariamente limitada era incapaz de diferenciar-se de uma crítica consagrada ao fundamento da modernidade capitalista em geral. Como os conceitos desse marxismo em seu todo sempre estiveram embebidos na problemática ainda inexplorada da modernização, e como a sua ênfase revolucionária, se é que a possuíam, era tomada de empréstimo aos momentos jacobinos da revolução burguesa (ou a suas repetições em ditaduras de modernização do leste e do sul), as ideias de transformação e "socialismo" de todo este longo período também jamais atingiram as categorias básicas do moderno sistema produtor de mercadorias.
O grosso do marxismo académico já não é capaz de se livrar do fardo dessa herança, embora a era como um todo tenha chegado ao fim em 1989. A queda do socialismo real não é concebida como parte de uma crise histórica generalizada da modernidade, mas somente como a catástrofe de um suposto distanciamento radical das "leis da economia de mercado". Os falsos inovadores querem portanto descartar de Marx precisamente o que não é compatível com as categorias fundadoras da ciência económica (valor, preço, rentabilidade, etc.), para então deixar apenas um espantalho teórico sem sentido, cujos farrapos de crítica se encontram também noutros lugares, e melhores. Eles não percebem que com isso se tornam a si próprios supérfluos como marxistas (eis, talvez, o sentido oculto da sua "renovação"), pois eles não têm nenhuma contribuição original a dar para a análise da economia de mercado existente na realidade e da Realpolitik a ela vinculada. Uma pseudo-renovação marxológica que assim procede só pode entrar em declínio, juntamente com o marxismo que perdeu o seu objecto.
Para uma verdadeira renovação da teoria de Marx, não se pode mais colocar o problema de uma simples interpretação (como continuação da longa série de interpretações), mas apenas, hoje em dia, no final da modernidade, justamente o problema da superação dessa teoria e, com ela, das suas interpretações. Que a teoria de Marx se tenha convertido, contra a vontade expressa do seu autor, em "marxismo", perdendo assim o seu status como teoria social absolutamente comum, com limites humanos e históricos de conhecimento absolutamente comuns, e se tenha transmutado de facto numa espécie de doutrina salvífica, que até mesmo nas variantes mais críticas do "marxismo ocidental" se furtou a uma diferenciação de seus conteúdos, a uma revisão e portanto historização superadoras — todo esse notável processo tem a ver decerto com o facto de que o próprio projecto de Marx foi além da capacidade de compreensão (e desse modo, por assim dizer, além de si mesmo) que a praxis social ainda impunha no interior da história da modernização capitalista.
Portanto não é possível dissociar Marx do marxismo e da história da modernização e incriminar os marxistas de simples "erro" (interpretativo). Antes, impõe-se primeiro indagar o que ainda é afinal "teórico da modernização" nessa própria teoria de Marx e assim se torna obsoleto no nível de desenvolvimento agora alcançado e na maturidade da crise da era moderna. E como um retorno à pré-modernidade não é obviamente possível nem desejável, caberia ao mesmo tempo indagar quais momentos da teoria de Marx, por outro lado, remetem à constelação só agora alcançada e eram tão avançados no seu tempo que ainda hoje nos atingem e aliás só hoje podem tornar-se eficazes.
Deste ponto de vista, pode-se proceder a uma historização e diferenciação da teoria de Marx que distingue duas vias teóricas em última instância incompatíveis, não como uma relação entre "erro" e "verdade", mas como um problema da extemporaneidade histórica dentro da própria teoria de Marx, e assim reconhecer um "duplo Marx". A primeira linha argumentativa, "exotérica", teórica da modernização e imanente ao fetiche, refere-se à forma interna do movimento e à história da imposição do capital como juridificação e reificação de todas as relações, cujo horizonte de desenvolvimento ainda era preeenchido positivamente. E este é, na verdade, o Marx corrente e mundialmente conhecido: "ponto de vista do trabalhador" e luta de classes são os conceitos centrais desta linha que conduziram ao marxismo histórico
A segunda linha argumentativa de Marx, "esotérica" e em sentido estrito "radical" (isto é, que desce às raízes) refere-se à real mistificação da forma como tal da mercadoria e do dinheiro, "na" qual a modernidade, a par de seus conflitos imanentes, se expõe, impõe e desenvolve. Por um lado, portanto, uma mobilização e intervenção teórica e ao mesmo tempo política no interior do movimento de modernização (em última instância preenchido positivamente); por outro lado, uma metacrítica "sombria" do sistema de referências específico da própria modernidade produtora de mercadorias.
Por outras palavras, trata-se agora inapelavelmente de libertar a obra de Marx dos modos de interpretação oblíquos e impregnados de incenso, cujo momento quase-religioso remete a uma sombria faceta não redimida (e até hoje irredimível) dessa teoria. O momento quase-religioso do marxismo procede certamente também do conteúdo religioso secularizado do próprio movimento da modernização, que nada mais é que a libertação de uma forma de fetiche (valor e dinheiro). Dentro deste movimento histórico como um todo, no entanto, a forma fenoménica especifica da adoração marxista do fetiche nutre-se do temor ante o impossível e irredimível em geral na teoria de Marx, a saber, ante o principio de uma crítica radical dessa própria forma de fetiche objectivada e interiorizada.
O tabu absoluto da modernidade, a forma da mercadoria/forma do valor como tais, o dinheiro e com isso a própria forma do sujeito, esta correlação presta-se tão pouco a tema de crítica e superação para a consciência constituída de modo fetichista quanto o mistério para os religiosos. O "modo de produção baseado no valor" (Marx), que traça a sua órbita como um cometa de candência afinal catastrófica, pressupõe cegamente o valor como categoria-fetiche e inflecte toda a reflexão como por si mesma para essa forma, na qual não apenas se age, mas também se pensa. Só o fim catastrófico torna socialmente tematizável a "segunda pele" dessa forma do fetiche da modernidade (coisa que não garante ainda o êxito da descamação dessa pele); o carácter teoricamente errático da teoria de Marx está justamente no facto de ela ter esse problema como o seu centro oculto. O temor dos marxistas praticantes perante este núcleo duro e (para eles) ao mesmo tempo dúbio, que em épocas passadas não pôde ser rompido, mergulha a teoria marxista e a história da sua recepção naquele característico lusco-fusco quase-religioso.
Ora, a crítica do fetiche na teoria de Marx em boa parte ainda não foi formulada e muito menos concretizada no sentido de um "movimento de superação", contando aliás com o gigantesco volume de fragmentos legado por Marx (embora, ou até mesmo porque quisesse ser extremamente "sistemático", um facto teórico-científico e histórico-teórico não sem interesse). Um tal aguçamento da crítica social concreta à constituição fetichista do capital, ou seja, do dinheiro erigido em auto-referência paradoxal como movimento de valorização, seria além do mais uma exigência excessiva para uma teoria pouco posterior a meados do século XIX. Num tempo em que a relação capitalista ainda tinha pela frente mais de um século de desenvolvimento estrutural e de história de imposição social (mundial), a crítica radical das categorias básicas da socialização pela forma da mercadoria teria de ficar absolutamente isolada.
Que Marx pressentiu a contradição na sua teoria depreende-se de inúmeras asserções. Na Alemanha, escreveu ele no prefácio da sua principal obra, "aflige-nos, como no resto de todo o continente da Europa ocidental, não só o desenvolvimento da produção capitalista, mas também a falta de seu desenvolvimento" (Kapital, vol. I, p. 12). Marx visava aqui apenas a uma comparação directa entre a Alemanha subdesenvolvida de então e a Grã-Bretanha já industrialmente avançada, mas com isso captou involuntariamente numa única fórmula todo o programa histórico do movimento operário. Não somente os países continentais da Europa eram subdesenvolvidos em relação a Grã-Bretanha, mas o capitalismo como tal ainda o era por assim dizer em relação a si mesmo e tinha à sua frente (ao contrário das expectativas de Marx) um campo secular de desenvolvimento histórico, no qual o movimento operário e o marxismo começaram a actuar como pontas-de-lança do próprio avanço do sistema capitalista.
Marx envidou naturalmente todos os esforços não apenas para reconciliar e mediar ambos os princípios incompatíveis da sua teoria, mas também para expô-los como de origem lógica diversa. Quanto mais o movimento operário se apropriava da sua teoria sob a variante "exotérica", tanto maiores eram suas ilusões sobre essa capacidade de mediação e mais raivosas se tornavam as suas investidas contra a interpretação da sua teoria excessivamente imanente ao sistema, interpretação esta que lhe havia de parecer mero "equivoco". Seu acólito Friedrich Engels, que de resto pensava bem mais limitadamente em termos "positivos", perdeu em definitivo o contacto com o conteúdo "esotérico" positivistamente sepultado da teoria de Marx e sagrou-se o primeiro Padre da Igreja do marxismo ascendente. Hoje estamos às voltas com a peculiar problemática de que o "outro Marx", sepultado desde o berço pelo próprio marxismo, se pode erguer pela primeira vez à luz de uma nova história de crise, enquanto inversamente o Marx "marxista", nosso velho conhecido, tem de ser por sua vez finalmente sepultado, já que seu conteúdo se esgotou por completo, juntamente com o movimento de modernização.
Em principio, o "duplo Marx" pode ser "destrinçado" e exposto em todos os níveis de sua teoria. Comojá sugeri, a argumentação "dupla" de Marx remete em primeiro lugar ao problema da forma da relação fetichista "valor" (este é o cerne da constituição do fetiche) em sua divisão social das categorias capitalistas. O Marx "exotérico" critica de modo redutor a subordinação da "classe operária" ao capital na forma fenoménica imediata da mais valia como "trabalho não pago" (e já por isso compatibiliza-se com a ideologia de legitimação do movimento operário, representada de maneira tanto mais tosca e eficaz por teóricos ideológicos como os ricardianos de esquerda ou Lassalle). O outro Marx, o "esotérico", critica pelo contrário a categoria de fetiche básica valor como tal, e, a partir dessa perspectiva, a mais-valia aparece então como a própria forma consumada do valor num sistema dinâmico e autodestrutivo; isto é, não se pode superar a mais-valia em nome da emancipação social do proletariado, de sorte que o valor permaneça como base ontológica; antes, a superação da emancipação negativa nas leis objectivadas da valorização do valor é idêntica à superação da própria forma do valor como tal. A "simples" forma do valor é de facto apenas um fantasma histórico da ideologia; ela estaria realmente vinculada à mera existência em nichos de produção de mercadorias a baixos níveis de força produtiva e necessidade, ao passo que uma libertação da lei compulsória da valorização, que deve ocorrer ao nível elevado da socialização alcançada, só é de algum modo possível através de um rompimento da forma do valor fetichista (ou seja, por intermédio da superação da mercadoria e do dinheiro).
Ante um tal pano de fundo, surge também uma compreensão dupla do próprio conceito de capital. O Marx "exotérico" permite ao conceito monista de capital dissociar-se dualisticamente em classes sociais existentes "em si"; ele argumenta "sociologisticamente" de cabo a rabo. "O capital" aparece assim como uma "relação social", embora em sentido sociologisticamente redutor: como a relação de uma parte socialmente dominante da sociedade que, dando pelo nome de burguesia ("classe dominante"), "é" ou representa o capital, ante a parcela socialmente oprimida da sociedade, que como proletariado nem "é" nem representa em si o capital. Segundo esse jargão, caberia adoptar o "ponto de vista da classe operária", que (desde Engels e sobretudo depois de Lenine) tornou-se o meta-sujeito mistificado e o objecto de um ardor e devoção quase-religiosos (e popularuchos). O Marx "esotérico", ao contrário, prende-se ao conceito monista de capital, e a "relação social" neste sentido é total, incluindo todos os membros sociais na mesma forma de fetiche. Aqui, as "classes" já não são sujeitos de conflito existentes em si, sem pressupostos, mas nada mais que diferentes portadores funcionais da sua forma básica e histórica comum; e também a chamada classe operária "é" nesta acepção inapelavelmente parte integrante e momento da relação capitalista, mas não o seu opositor predestinado.
Até este ponto de uma focalização teórica do "duplo Marx", ainda não se alcançou o limite de dor marxista (e o limite de dor moderno e burguês em geral). A problemática de uma superação da mercadoria e do dinheiro talvez seja tida como "maluca", mas ainda é pensável ocasionalmente em algumas formas tecnocráticas e de economia estatal (mesmo que numa definição pejorativa). O problema "pode" ser perfeitamente pensado como ideia socialista do futuro nesse sentido redutor, ainda que a maioria das vezes fosse escamoteado num futuro bem distante. O verdadeiro limite de dor ideológico da consciência fetichista moderna só será ultrapassado se a crítica começar a destruir o Todo-Poderoso, isto é, o "trabalho" e seu conceito ontologizado. Neste ponto, os espíritos apartam-se definitivamente. É por isso que só aqui tem inicio a verdadeira superação do marxismo e da teoria de Marx. Em termos apodícticos, quem é incapaz de transpor esse limiar tem forçosamente de recair no universo do velho marxismo e, desse modo, na história burguesa da modernidade que se tornou obsoleta.
Correspondentemente, neste ponto será tanto mais difícil distinguir o "duplo Marx". Não apenas se tornam maiores as resistências externas dos marxistas, que nessa questão beiram francamente o ataque de nervos, mas também as resistências internas da própria teoria de Marx. Ao que tudo indica, Marx utiliza à primeira vista um conceito ontológico de trabalho de forma corrente e sem lacunas. Mas, de novo, é apenas na variante "exotérica" que parece que o trabalho se torna o conceito de uma eterna condição existencial supra-histórica da humanidade, aparentemente apenas plasmada de modo usurpador pela forma e pela moderação legal do capital — uma argumentação que calou fundo no "marxismo ocidental", com a máxima nitidez, é claro, em Georg Lukacs, e que é aguçada particularmente por Alfred Sohn-Rethel, apesar de sua crítica abrangente em outros aspectos. O trabalho interpretado dessa maneira torna-se uma alavanca ontológica de uma pretensa superação do capital, e o sujeito portador desse trabalho torna-se idêntico ao sujeito portador dessa superação (de maneira correspondente à concepção redutora e dualista ou sociologista da relação do capital). Mas nesse muro aparentemente liso da ontologia marxista do trabalho (e da "utopia do trabalho", a seguir) revelam-se ao olhar mais próximo brechas decisivas, nas quais a actividade febril do Marx "esotérico" irrompe mais uma vez.
Se quanto ao conceito de trabalho ambas as almas se mesclam de maneira particularmente íntima e quase indiferenciável no seio da teoria de Marx, isto ocorre por uma razão absolutamente histórico-dialéctica. Mesmo o Marx "esotérico", tivesse ele podido reflectir-se como tal, teria motivos não para uma afirmação ontológica, mas inteiramente histórica do "trabalho" — e isso justamente por guiar-se tão bem entre os meandros do fenómeno empírico. Como se sabe, ninguém se ergueu de modo tão inequívoco quanto Marx contra os enormes sofrimentos da história da consolidação do "trabalho" abstracto. Mas ele tentou fixar acidentalmente tais sofrimentos ao conceito de "trabalho", pois não queria renunciar ao outro lado do mesmo processo, o momento emancipatório e libertador perante a menoridade e carência pré-modernas (ao contrário dos críticos meramente reaccionários do capitalismo).
O conceito sistemático de "trabalho", a cuja estrutura sem sujeito se prendem os tormentos da modernização, expande-se de certo modo a contragosto em Marx rumo a seu duplo "exotérico", isto é, a um conceito sociologicamente redutor de sujeito que, em falsa imediatidade, identifica o todo do modo de produção com o portador funcional particular "burguesia", que é responsabilizada subjectivamente pelos tormentos do sistema ("ódio de classe"). Se o marxismo cai nesta redução, o próprio Marx deixa-se várias vezes arrebatar por declarações relativizadoras, que por assim dizer desculpam o sujeito funcional antagónico, dependente e particular: "Menos do que qualquer outro pode o meu ponto de vista, que concebe o desenvolvimento da formação económica da sociedade como um processo histórico-natural, responsabilizar o indivíduo por relações de que ele é, socialmente, criatura, por mais que se erga subjectivamente acima delas" (Kapital, vol I, p. 16).
Este acento relativizador já se revela no Manifesto Comunista, onde a mesma "burguesia" aparentemente antagónica (e com ela, indirectamente, todo o sistema de referências do "progresso" social pelo trabalho) é por assim dizer entusiasticamente festejada. "A burguesia revelou como a brutal expressão de força, que a reacção tanto admira na Idade Média, encontrava seu complemento adequado na mais indolente madraçaria. Foi ela a primeira a dar provas do que é capaz de realizar a actividade dos homens. Ela erigiu colossos inteiramente diversos de pirâmides egípcias, aquedutos romanos e catedrais góticas, ela empreendeu viagens inteiramente diversas de diásporas e cruzadas. [...] A burguesia, por meio da vertiginosa melhoria de todos os instrumentos de produção, por meio das comunicações infinitamente mais fáceis, atrai à civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras." (Manifest der kommunistischen Partei, p. 46 s.). O discurso da "missão civilizatória" do capitalismo encontra-se à farta em Marx, e a pretensão pedagógica que nele ecoa refere-se não somente às culturas não-europeias "menores de idade", mas também às estruturas pré-modernas no próprio ocidente.
A modelagem do sujeito humano por meio desse "processo civilizatório" está porém forçosamente ligada a uma imposição do "trabalho", cujos sofrimentos têm de ser transformados com falsos adjectivos. A própria referência desdenhosa a uma pretensa "madraçaria da Idade Media" revela o apego ao "ethosprotestante" do moderno fetichismo do trabalho. Sem dúvida, este apego em Marx não é absoluto nem integral: ele o vê antes em seu próprio condicionamento histórico, quando diz a respeito do capitalismo (novamente de modo positivo): "o dinheiro como fim torna-se aqui meio do trabalho universal, [...] Abrem-se, assim as reais fontes de riqueza" (Grundrisse,.p 135). De certo modo, Marx afirma aqui o "dinheiro como fim" e, com isso, também o "trabalho", embora não em seu aparente fim em si mesmo, mas antes como inconsciente "pedagogia da historia": num sentido hierarquicamente superior e não mais percebido conscientemente (sem sujeito), o "dinheiro como fim" torna-se um "meio" para libertar um "trabalho" que supera a rude carência, o qual por sua vez é igualmente um "meio" histórico inconsciente para abrir ''as verdadeiras fontes de riqueza" — para produzir, em toda sua inconsciência fetichista, um mundo de recursos, necessidades e possibilidades (incluindo a própria individualidade).
Compreendido assim o "trabalho", isto é, tomado não no sentido protestante rasteiro como coercitivo fim em si mesmo, a consequência lógica seria na verdade que o "trabalho" e a sua forma de representação "valor" ou "dinheiro" podem ser repudiados após o cumprimento ("execução") de sua restrita tarefa histórica, na condição de "meios" decadentes cujo verdadeiro objectivo — franquear as "reais fontes de riqueza" — foi alcançado, tornando-os assim positivamente supérfluos e absurdos. De facto, essa consequência já fora surpreendentemente sugerida na Ideologia alemã, uma obra em parceria de Marx e Engels publicada pela primeira vez em 1932, após longo período arquivada. Aí se lê com bastante clareza "que em todas as revoluções até hoje a espécie de actividade permaneceu sempre intocada e tratou-se exclusivamente de uma outra distribuição desta actividade, de uma nova repartição do trabalho a outras pessoas, ao passo que a revolução comunista dirige-se contra a espécie de actividade actual, elimina o trabalho (!) […]" (Deutsche ideologie, p. 71: grifos de Marx/Engels).
Dessa concepção aparentemente monstruosa resulta uma exigência não menos monstruosa ao "proletariado": "Portanto, enquanto os servos fugitivos queriam apenas desenvolver livremente e fazer valer suas condições de existência já presentes, chegando assim, em última instância, somente ao trabalho livre, os proletários, para se fazer valer como pessoas, têm de superar a sua condição de existência actual, que é ao mesmo tempo a de toda a sociedade: o trabalho" (op; cit.. p. 79). Como e óbvio, os proletários de modo algum prestaram esse favor a Marx. O horizonte do anseio deles de "se fazer valer como pessoas" era o horizonte histórico do desenvolvimento do próprio "trabalho". Marx cai numa ilusão óptica que aqui e acolá foi fatal também a outros teóricos da modernidade (a Kant por exemplo) e que sempre turvou os olhos da ideologia marxista: o historicamente novo, manifestado justamente apenas em estado embrionário e que em sua manifestação precoce pode ser apreendido logicamente, é tomado como já "pronto", sem se notar que a exposição e extrapolação lógicas antecipam em curto-circuito um desenvolvimento histórico geral, cuja efectiva marcha social percorre vários estágios, obviamente com muito mais vagar e sinuosidades do que a carreira rápida e directa do pensamento teórico. De facto, as condições de existência do "proletariado" ainda se baseavam profundamente em estruturas pré-modernas só superficialmente desagregadas, e foram necessárias as lutas de mais de um século para que o sistema do "trabalho" atingisse o seu estágio maduro.
Superar o "trabalho", querer de facto "eliminá-lo", tal tema suspeito do sempre surpreendente patriarca teórico tinha portanto de contrariar os epígonos marxistas profundamente arraigados ao fetichismo do trabalho. Desde a publicação da Ideologia alemã os ideólogos dos mais diversos marxismos tentaram torcer a interpretação destes "trechos" escandalosos: Marx há-de ter esquecido algum adjectivo, talvez quisesse dizer "trabalho assalariado" ou trabalho definido pelo capitalismo, etc. Por outras palavras: ele não podia ter querido dizer o que disse. E, de facto, essas declarações suspeitas estão incidentalmente entremeadas, mas não ofensivamentc elaboradas, pois a polémica com o idealismo alemão e as ideologias dos primeiros socialistas que o seguiram tem como objectivo algo inteiramente diverso. Na contraditória teoria de Marx, o marxismo preferiu assim agarrar-se àquelas asserções que soam inequivocamente fundadas na ontologia do trabalho: "Como formador de valores de uso — como trabalho útil — o trabalho é[. ..] uma condição de existência do homem independente de todas as formas sociais, uma eterna necessidade natural para mediar o metabolismo entre o homem e a natureza e portanto a vida humana" (Kapital, vol. I. p 57)
Todavia, nem mesmo tal declaração é plenamente compatível com a ontologia marxista do trabalho. Embora aqui, vinte anos após a Ideologia alemã, Marx não fale mais de uma superação e eliminação do "trabalho" e de facto ontologize essa categoria como a reiteradamente citada "eterna necessidade natural" ele, diferentemente do marxismo, não a equipara directamente, ao "processo de metabolismo com a natureza". Antes cabe a ela somente "mediá-lo". Talvez, pode-se depreender, esta eterna necessidade antropológica seja então meramente o "processo de metabolismo com a natureza", ao passo que a "mediação" desse processo está submetida às mudanças históricas, e o "trabalho" representa com isso apenas uma determinada forma de mediação histórica que não é compulsória nem para todo passado nem para todo futuro. Marx não tira essa conclusão: ele sente perfeitamente que uma ruptura com a ontologia do trabalho não está madura e que o grande movimento histórico ao qual se sente obrigado — o movimento operário — ainda é incapaz de saltar por sobre estas sombras.
Numa outra perspectiva, o Marx "esotérico" permanece sem dúvida rigoroso face ao marxismo. Jamais ele pôde livrar-se da ideia de que a superação do modo de produção capitalista tinha de ser idêntica a uma superação da forma da mercadoria social, ou seja, a uma suplantação da relação monetária fetichista. O marxismo sempre considerou essa demarche de seu grande mestre com desconfiança e repúdio, subterfúgios e paliativos. Embora a superação da relação mercadoria-dinheiro (mas não a superação do "trabalho") pudesse, como disse, ser perfeitamente "pensada"; precisamente por isso ela não o era como um problema sério ou mesmo prático, mas no máximo, como um alvo abstracto e filosófico muito além da revolução "socialista" ou "proletária". É mesmo de se notar que a tematização desse problema coube antes aos primórdios do marxismo, ao passo que, com a crescente experiência histórica do movimento operário, empalideceu cada vez mais até desaparecer por completo, culminando num aberto repúdio à ideia. As débeis concepções actuais de uma "economia de mercado socialista" são pouco mais que os resíduos desse processo ideológico de enfraquecimento e diluição.
Aqui fica patente uma peculiar limitação do problema histórico do desenvolvimento. Marx queria, contra o marxismo, irmanar uma (hesitante) ontologia do trabalho com uma superação da forma da mercadoria, isto é, do dinheiro. Naquela forma esotérica, que indica um futuro ainda por vir, ele tinha mais razão que o marxismo. Mas sua argumentação é paradoxal, pois "trabalho" e forma da mercadoria/dinheiro são apenas modos de representação ou formas de expressão sociais diversas de algo idêntico. O marxismo tinha entretanto mais razão que Marx, sob uma forma historicamente limitada e "realista", por levar em conta essa identidade, embora com isso tenha demonstrado sua imanência capitalista.
Nas formas tanto do movimento operário ocidental quanto do socialismo estatal do leste e dos nacionalismos libertadores do sul, além da imposição do "trabalho", como consequência lógica, o marxismo insistiu portanto na continuação da forma do dinheiro e do salário em dinheiro. Ora, desse modo a própria forma do capital da reprodução da sociedade como tal permaneceu fora da crítica teórica e prática. No fundo, o capitalismo não devia ser substituído por meio de uma suplantação da própria forma do capital, o que seria idêntico a uma superação do "trabalho" e da mediação total do dinheiro, mas unicamente por meio da sua estatização. Mas a tentativa de submeter as categorias funcionais insuperadas do "trabalho" ao comando estatal podia somente ganhar uma racionalidade temporária e sempre precária, sob as condições da "modernização retardatária", para afinal despedaçar-se no contacto com o mercado mundial.
Para Marx, o dilema imanente de sua "dupla" argumentação, justamente no que respeita ao conceito de trabalho, há-de ter estado sempre presente como um espinho a verrumar, ainda que ele (patriarca e irascível que era) jamais o tenha querido confessar. A uma consideração mais próxima de seu trato com esse problema quase inapreensivelmente cambiante, revela-se que ele por assim dizer defraudou a si mesmo com um truque conceptual para remediar o dilema. Pois, na verdade, o conceito de "trabalho" sem qualquer atributo (e portanto a abstracção "trabalho") já é o conceito da actividade produtiva produtora de mercadorias. A parte do chamado valor de uso dessa actividade só pode ser o reverso da mesma abstracção social da realidade, isto é, o modo pelo qual essa abstracção social se apodera da matéria sensível e a submete à sua forma. O "duplo carácter do trabalho" (Marx) não tem ancora ontológica: ele é, de acordo com sua essência, o duplo caracter das relações produtoras de mercadorias. Ora, Marx faz da parte sensível e material do "trabalho" (e com isso do "valor de uso", que representa apenas a parte sensível e material da mesma abstracção do valor) um conceito ontológico que deve ser justamente aquela "eterna necessidade natural". Com isso ele se compatibiliza com a imagem necessária e imanente que o movimento operário faz de si mesmo.
A fim porém de salvar seu projecto transcendente, Marx duplica mais uma vez de maneira atributiva o conceito em si abstracto do trabalho, ao delimitar o "trabalho" produtor de mercadorias especificamente histórico do "trabalho" ontológico. O famoso conceito de trabalho abstracto que daí surge é na verdade uma expressão estranha, uma duplicação retórica, como se falássemos de um "verde abstracto", visto que a definição de algo como "verde" já é em si uma abstracção. Marx por assim dizer rasga em dois a abstracção real: sua forma seria historicamente limitada, sua substância ou seu conteúdo seria ontológico. Assim temos, portanto, o "trabalho" como eterna necessidade natural e o "trabalho abstracto" como determinação histórica do sistema produtor de mercadorias. Marx prolonga por um lado a abstracção real decalcada na forma da mercadoria rumo ao ontológico e, de outro, tenciona salvar-lhe o carácter histórico e, desse modo, a sua superação. O marxismo do movimento operário teve pouco a fazer com o conceito de "trabalho abstracto" e não o mobilizou criticamente; em vez disso, preferiu prender-se ao conceito ontológico de trabalho (enobrecido "conforme o valor de uso"), a fim de legitimar-se de forma histórico-filosófica.
Tal bipartição acha-se novamente na determinação daquilo que afinal é realmente abstracto no trabalho abstracto. Marx a desenvolve principalmente numa única direcção — a direcção da forma: como abstracção real "do" conteúdo material, como indiferença ao momento sensível, representada pela forma do valor e seu desdobramento no dinheiro, a coisa "realmente abstracta". Não resta dúvida de que isso é de grande relevância. Mas o "trabalho" produtor de mercadorias é também "realmente abstracto" em um segundo sentido, que Marx não desenvolve sistematicamente: em sua existência como uma esfera diferenciada, separada de outras esferas como a cultura, a política, a religião, a sexualidade etc., ou, noutro plano, separada igualmente do "tempo livre" (ecos desse problema encontram-se com mais profusão no Marx dos escritos de juventude e em parte nos Grundrisse; mas o tema central formulado por Marx em sua Crítica da economia política é sempre o momento da abstracção da forma e não o momento da separação das esferas).
Porém o desdobramento e enfim a total libertação da abstracção da forma na modernidade só é possível pelo facto de o "trabalho" ser diferenciado como esfera separada e "realmente abstracta", de ser separado do resto do processo vital — pelo facto, portanto, de o homem produtor de mercadorias "desconsiderar" (abstrair) não só a qualidade sensível de seus objectos, mas simultaneamente, no e em vista do "trabalho", os outros momentos da vida, cristalizados em esferas funcionais para além do "trabalho". Tal separação é a base de toda "separação moderna de esferas", esta "diferenciação" das sociedades modernas, assunto perpétuo (e naturalmente em tom afirmativo) da sociologia e da teoria dos sistemas.
Esse problema, além do mais, coincide na essência com o problema da moderna relação entre os sexos. A razão mais profunda para tal diferenciação do e pelo "trabalho" das esferas separadas é a "dissociação" sexualmente hierarquizada dos âmbitos atribuídos à mulher, desde o "trabalho doméstico" (não pautado pela forma da mercadoria) até ao "amor" (inapreensível em termos económicos); somente a partir deste fundamento, o reino do "trabalho" dominado estruturalmente "pelo masculino" pode dissociar-se e diferenciar-se. Este momento no essencial sexualmente hierarquizado da diferenciação de uma esfera real e abstracta do "trabalho" não ocorre todavia nem em Marx e muito menos nos marxistas. Ele fala por si próprio na "dupla socialização" das mulheres, quando estas, a despeito da crescente actividade profissional, permanecem presas à família ou à criação dos filhos (a maioria esmagadora dos chamados pais solteiros são mulheres) e quando as actividades femininas na esfera salarial são muitas vezes mais mal avaliadas ou remuneradas.
No curso do processo de modernização, esta relação estrutural sexualmente hierarquizada foi repetidamente quebrada, sem jamais ser superada; isso também só seria possível em conjunto com uma superação da forma da mercadoria social. Se no passado as mulheres eram economicamente activas, ou seja, mergulhavam na esfera diferenciada do "trabalho" abstracto, lá elas eram percebidas de certa maneira como "corpos estranhos", pois a sua "verdadeira" competência era sempre impelida às actividades dissociadas do lar e do "amor". Semelhantes tendências permanecem ainda hoje vigentes, como revela o debate social na crise dos últimos anos ("regresso à família" etc.). Ao mesmo tempo, as mulheres têm de assumir traços característicos do "masculino" no interior da própria esfera do "trabalho", cindindo-se portanto de certa forma psico-socialmente — um indício de que aqui não estamos às voltas com dados fundados biologicamente, mas com imputações históricas, da forma como elas surgiram na diferenciação entre o "trabalho" e o processo vital na modernidade.
Só esta dissociação básica do "trabalho" e dos momentos da vida definidos como "femininos" torna o primeiro uma esfera peculiar da "abstracção real" (manifestando-se historicamente como processo de dissolução de "todos os lares"). E só com base nessa separação elementar das esferas pode por sua vez o reino do "trabalho" abstracto dominado "pelos homens" seguir em sua diferenciação interna e apartar de si novas esferas separadas, como a "política", a "arte e cultura" etc. Todo esse processo de diferenciação das esferas funcionais separadas que tem origem na "abstracção real" constitui a diferença decisiva entre a modernidade e a pré-modernidade. As sociedades pré-modernas tinham obviamente um "processo de metabolismo com a natureza", mas não uma esfera diferenciada do "trabalho"; e mesmo quando produziam mercadorias, essa produção era entretecida com os demais momentos (religião, tradição, estruturas consanguíneas e "comunitárias" etc. ). Sob tais relações, é absolutamente impossível existir uma clara separação entre "trabalho" e "tempo livre". O problema refere-se portanto não simplesmente à capacidade perceptiva ou compreensiva dos homens pré-modernos a respeito de algo que, embora "tivessem tido" em si (como propõe o dogma do conceito ontológico do trabalho), não tivessem podido saber, mas antes a suas relações reais: eles tampouco "tinham" em si o "trabalho" como esfera social em separado. Não posso aqui alongar-me sobre os detalhes históricos e o processo de formação do "trabalho" (e em complemento a isso, da actividade doméstica e familiar dissociada); como é obvio, o "trabalho" não despencou repentinamente do céu no Renascimento ou no século XVIII. Trata-se aqui apenas de claras distinções analíticas.
Que Marx descuide do carácter realmente abstracto do "trabalho" como uma esfera separada e diferenciada, que esse momento apareça antes implícito em sua obra e ele desenvolva e formule na essência apenas a abstracção real da forma, tem naturalmente algo a ver com a sua duplicação do "trabalho" em um conceito histórico e outro ontológico. A determinação ontológica do "trabalho" como substância ou conteúdo na parte do valor de uso da abstracção do valor, assim como a ideia teórico-revolucionária a ela vinculada de que a "classe operária" (pensada, no fundo, simplesmente como "masculina") deveria apoderar-se do "valor de uso", mantém intocado o trabalho como esfera peculiar e separada, ao menos em relação às esferas dissociadas definidas como "femininas". E como a formação dessa esfera na história representa ao mesmo tempo a formação da imagem que o homem moderno faz de si mesmo, é também o homem Marxque aqui encontra limitações em sua própria forma de consciência patriarcalmente estruturada.
A formação do "trabalho" é tanto destrutiva como progressista; seu carácter emancipatório não pode ser desconsiderado, para não se capitular a um romantismo cru e retrógrado. Entretanto, ele é apenas um estágio transitório e tem de ser superado. Consequentemente, a superação do "trabalho" significa a sua superação em vista de ambos os momentos da abstracção real, vale dizer, a superação como abstracção da forma e a superação como esfera separada (que seria então a superação do "valor de uso"). Aqui Marx bloqueia novamente a si próprio, pois só é capaz de pensar a superação pela metade e ontologiza o "trabalho" como esfera separada e em última instância sexual-hierárquico-identitária; ou melhor, tal ontologização obstrui sistematicamente o caminho da ideia implícita e tremeluzente de superar a separação das esferas.
De facto, a fixação ao "duplo carácter do trabalho", no qual a pretensa libertação do valor de uso aparece como alavanca ontológica (e a "classe operária" como portadora subjetivo-objetiva da superação, e não como categoria funcional imanente), obscurece a vista para o momento da separação das esferas, cujo cerne sexualmente hierarquizado é consequentemente banido de forma "logico-dedutiva" para um plano secundário (isto se for mencionado). Com uma compreensão coerente da problemática da separação das esferas e pensando a superação a partir desse momento, que só então possibilita a superação da própria abstracção da forma, também este último como tal, junto logicamente com a esfera diferenciada "trabalho", se torna então objecto de superação, já que o seu conceito depende desse carácter como esfera singular e em conjunto com ele se ergue e cai. E assim, necessariamente, todo o aparato ontológico ruiria por terra, inclusive as identidades sexuais compulsórias a ele vinculadas (entre elas, a própria orientação heterossexual compulsória).
O problema da superação a partir de um conceito de trabalho que se limita ao antagonismo (estruturado pela hierarquia sexual e imanente à lógica da mercadoria) entre substância do valor de uso ("eterna") e forma ("histórica"), ramifica-se por sua vez em duas vertentes argumentativas a que Marx alude somente "em trechos" que foram mobilizadas a gosto pelos marxistas. Ambas as vertentes deixam-se representar em formas por assim dizer típico-ideais. Por um lado desenvolve-se a ideia de que o "trabalho", liberto de sua forma real e abstracta, tornar-se-ia na sociedade socialista do futuro um "trabalho atractivo", "primeira necessidade vital" positiva. Ainda que hoje os discursos mal se reportem a Marx, tal ideia sempre volta à tona sob as mais diversas roupagens. Em termos tipológicos, pode-se dizer que por ela se entusiasma sobretudo o homem "artístico", o qual (por não querer abrir mão de si como "homem" em sentido psicossocial e sexual-hierárquico) descobre o seu lado "feminino"; antes consagrado a uma existência boémia periférica, hoje ele é encontrado com mais frequência na "sociedade vivenciada" do capitalismo de casino. Para esse trabalhador-artista, a mulher permanece em última instância, todavia, objecto e natureza. Ele se aproxima ao máximo do problema da superação, porém de um modo paradoxalmente enviesado, de modo que a "superação" na verdade é impossível ocorrer e manifesta-se apenas na forma de um enobrecimento atributivo do "trabalho".
A inflação capitalista do conceito de trabalho (trabalho de relacionamento, trabalho de luto, etc.) é portanto assimilada positivamente: "trabalho" há-de se tornar arte, deleite etc. O "trabalho", tornado insuperável como determinação ontológica, só deve com isso ser "superado" em sua forma capitalista na medida em que for generalizado e totalizado sob influxo dos momentos artísticos e científicos, para justamente assim tornar-se "atractivo". Apenas nesse sentido francamente pérfido lampeja uma superação da separação das esferas — não como uma nova reintegração do "trabalho" a graus superiores de desenvolvimento no processo vital da sociedade humana, mas inversamente como sua definitiva usurpação da totalidade da vida, obviamente sem tocar no assunto do sombrio continente dissociado da reprodução e definido como "feminino", cuja existência fatal se opõe a esse aparato de totalização do fetichismo do trabalho. Não se nega a identidade do trabalho patriarcal e ocidental como um todo, mas apenas a evidente forma aviltada do produtor directo e explorado pelo capitalismo: a todos os homens-trabalhadores cumpre o direito de transformarem-se super-homens-trabalhadores. Em lugar do momento negativo de uma superação do trabalho como tal, a momento de um "despertar substancial" do trabalho: libertar o trabalho em vez de libertar do trabalho.
Por outro lado, desenvolve-se a noção de que o "trabalho" na sociedade socialista do futuro restaria como uma espécie de resíduo da "necessidade", ou precisamente como o célebre "reino da necessidade", sobre o qual se poderia então erigir um "reino da liberdade" para além do "trabalho". Eis aqui, subitamente, não uma ontologia positiva do trabalho, mas negativa — a eterna necessidade natural do momento de sofrimento psíquico e social no mundo do trabalho, que pode ser reduzido, mas não superado. Aqui se manifesta a imagem patriarcal e "masculina" que a modernidade faz de si mesma como apego a esse momento de sofrimento — imagem que por assim dizer lança mão do "herói do trabalho" (em analogia ao príncipe cristão supliciado) para simultaneamente compensá-lo com o "reino" fantasmático para além do "trabalho", no qual o "tempo livre" habitual e igualmente sublimado numa espécie de superactividade heróica (no fundo, portanto, o "trabalho" não é de modo algum superado, mas prolongado sob outra forma). Sobretudo o tipo do "fazedor", o homem de feições impassíveis, o homo faber, o tecnocrata ou cientista é capaz de por ele "entusiasmar-se" seria dizer muito, pois as suas emoções são cozidas em lume brando; ele possui aproximadamente a emotividade de uma calculadora de bolso.
Um conceito de "trabalho" como jogo ou arte é contestado com suspeita por esse tipo (que se encontrava aos montes no antigo movimento operário), e talvez precisamente por isso ele estaria plenamente disposto a "definir" o "reino da liberdade" como um além do "trabalho", muito embora naquele sentido enviesado de seu livre prolongamento para além da rígida "necessidade". Mas este é menos o seu reino, ainda que a sua relação com ele guarde certa cortesia; na medida em que se imagina a si próprio neste reino, isto ocorre antes num sentido tradicionalmente ligado à burguesia culta (comogeneralização do sarau, da visita ao museu etc. ) ou, por outro lado, como o eterno ethos protestante do constante inventar, compor, construir, pintar etc. Seu verdadeiro alfa e ómega, mesmo que ele não seja capaz de confessá-lo, é e permanece a bem dizer o reino da necessidade, o prazer da submissão ao momento do suplício abstractamente dissecado, a título de (pretenso) "herói da necessidade". O "reino da necessidade" tem portanto de perdurar até ao último dos dias. Aqui não é sem importância a imputabilidade individual, porém menos como orgulho profissional enobrecido do que num árido sentido técnico e contabilístico: "a cada um segundo a sua produção". O espirito sóbrio e calculista da classe média em luta por remediar-se, que é adversa a todo o excesso inútil, exige uma violenta "contabilidade social" e um cálculo produtivo que a ninguém concede um pedaço de pão a mais.
Também em Marx emergem ambos os momentos dessa ideia de "superação" redutora da ontologia do trabalho (que são complementares, embora também possam perfeitamente surgir em contradição mútua), sem que sejam, como foi dito, formulados sistematicamente. Ambos conceitos de superação não chegam fundamentalmente até ao problema de uma superação do "trabalho" como esfera separada, e o problema da dissociação sexualmente hierarquizada permanece necessariamente nesse contexto totalmente "sem mediação". A ideia do "trabalho atractivo" poderia meramente enriquecer a actividade remunerada com os elementos do trabalho "elevado" do artista, teórico etc. Ou seja, o eterno fascínio do artista renascentista, a excelência da ultrapretensão "masculina": cada homem um pequeno Leonardo da Vinci, a um tempo cientista genial, filósofo profundo, pintor agraciado e, se possível, talvez ainda decatleta. Esta imaginação, que resulta do "trabalho" abstracto como tal, permanece efectiva ainda quando as mulheres adoptam "carreiras" próprias no universo do "trabalho" dominado "pelos homens". Nesse universo insuperado e enobrecido, a "igualdade de direitos" pode perfeitamente ser imaginada de modo formal e em curto-circuito, à revelia dos âmbitos e momentos dissociados igualmente insuperados (que se fazem notar, é claro, de maneira dolorosa na realidade).
Essa imaginação falsa, patriarcal e burguesa do nobre supertrabalhador do futuro esquece-se completamente de que a "atracção" da actividade não reside no refinamento ou no douramento do arbítrio masculino (e tampouco na magnânima recepção das "mulheres" nesse fajutado paraíso masculino do trabalho), mas precisamente na sua superação, na superação de uma forma humana mutuamente exclusiva. O essencial não é apenas o enaltecimento exigente da actividade directa, mas a produção de relações humanas satisfatórias em todas as actividades — e isso implica a reintegração das esferas "dissociadas" num grau mais elevado de desenvolvimento: o desenvolvimento de uma cultura na qual a produção social e a sexualidade estão tão pouco separadas quanto a "liberdade" e a "necessidade", a filosofia e o quotidiano etc. (e na qual desenvolve-se também uma outra relação natural, em que a natureza não é reduzida a uma objectividade morta do "trabalho" autoglorificado como "masculino"). Logo que o "trabalho" desapareça como esfera separada, ele será superado como tal.
Bases para tais ideias encontram-se em primeiro lugar na história do tipo artístico, ou seja, na primeira variante falsa de superação, na qual o "trabalho" deve tornar-se "atractivo" como jogo e arte, deixando na verdade de ser "trabalho", isto é, uma esfera separada da "abstracção real". Esse projecto surgiu num primeiro momento do Romantismo, que de modo algum se resolve no mero "irracionalismo". Entre os utopistas foi Fourier quem quis por assim dizer erotizar o "trabalho", mas não como "erotismo do sofrimento", e sim num sentido inteiramente hedonista para ambos os sexos. Certamente não é por acaso que tanto nos primeiros românticos como também em Fourier a emancipação da mulher tenha desempenhado um papel incomparavelmente maior do que nas demais teorias e correntes suas contemporâneas. Sem dúvida, a pesquisa feminista teve entretanto de verter um pouco de vinagre neste vinho, ao apontar a relação truncada dos primeiros românticos com o que se considerava "feminino". A qualidade deficiente da superação desse pensamento (historicamente limitada) corresponde à insistência no conceito de trabalho. Fourier, embora é claro muito inferior a Marx em termos teóricos e analíticos, precisamente neste ponto, com sua variante do "trabalho atractivo" (que mesclado ao jogo, erotismo etc. na verdade já não é mais um "trabalho"), aproxima-se mais do que Marx da superação das esferas separadas, embora tampouco ele transponha o limiar decisivo (em sua obra, os momentos protestante e hedonista estão inextricavelmente entrelaçados, o que aparece muitas vezes na forma de pensamentos e fantasias em desalinho).
Marx opõe-se expressamente, de novo à maneira "protestante", ao projecto de superação em larga medida ainda obscuro de Fourier. "O trabalho não pode tornar-se jogo, como quer Fourier, cujo grande mérito é ter explicitado como ultimate object a superação não da distribuição, mas do próprio modo de produção em forma mais elevada" (Grundrisse, p. 599). Ora, aqui seria adequado desenvolver o pensamento de Fourier envolto em metáforas no sentido de uma superação do cisma entre "labor" e prazer, entre activismo e contemplação, e assim de uma superação do próprio "trabalho". Marx, que de resto era capaz de descobrir e assimilar tão bem e compreensivamente o carácter "genial" dos utopistas, trai-se ao tropeçar no conceito de "jogo", que ele logo rechaça num assunto tão (protestantemente) sério quanto o "trabalho".
Assim também se dá cabo da segunda ideia redutora da superação, decalcada na ontologia do trabalho. Pois o "reino da necessidade" não é de modo algum minimizado somente por progressos tecnológicos, enquanto permanecer "em si" insuperável, mas só é realmente superado pelo facto de os momentos da "necessidade", o suposto resíduo do "labor", perderem novamente a sua existência singular separada, historicamente criada, nos graus superiores de desenvolvimento. No contexto de uma cultura não mais fixada na ontologia do trabalho e com relações sociais e sexuais satisfatórias, até mesmo as actividades separadas (encerradas numa esfera à parte abstracctizada, seja o "trabalho" doméstico do amor, seja o "trabalho" público do êxito), que no sentido antigo não passariam de "labor", podem ser "atractivas". O homem convencido, que vê amanhecer uma sociedade futura do "trabalho atractivo" de autênticos superartistas e supercientistas, gostaria talvez de abandonar as fraldas sujas eternamente à "natureza feminina". Ou será que ele espera uma máquina limpa-merda cem por cento automática ?
A minimização do momento de sofrimento na reprodução social por meio do potencial de desenvolvimento das forças produtivas (que aparece na forma invertida capitalista) é e permanece importante para a superação do "trabalho". Entretanto, a redução da ideia de superação a esse momento seria inadmissível, e é justificada a censura de que semelhante redução tolera um fetichismo tecnicista e cientificamente crédulo nas forças produtivas, ele próprio fruto do universo do "trabalho". Um hedonismo simplesmente abstracto (e irresponsável) que pode resultar de uma tal redução já se encontra hoje massificado como fetichismo de consumo imanente ao capitalismo e representa apenas o reverso do fetichismo da força produtiva. Trata-se de uma negação meramente abstracta e sem mediação do "trabalho", a qual não por acaso gira em falso ao redor do problema da superação da forma da mercadoria e do dinheiro e por ora só pode manter-se por meio das excrescências monetárias do "capital fictício" numas poucas ilhas de riqueza do mundo. Uma superação efectiva do "trabalho" não pode restringir-se a pressupostos tecnológicos. A microeletrónica não supera de modo directo e como tal o "trabalho"; antes, o problema decisivo é a superação das formas humanas de relacionamento, do modo como foram implementadas historicamente, pelo sistema do "trabalho".
Dessa superação humana mediada, reflectida em si (e não meramente tecnológica), consta sobretudo a percepção de que não é possível nem desejável automatizar tecnologicamente todas as actividades produtivas e muito menos fazer desaparecer até mesmo as próprias relações humanas no aparato tecnológico (ou seja, "superação" numa espécie de mundo cibernético: uma visão pavorosa que só faz prolongar até ao grotesco o isolamento capitalista dos indivíduos abstractos). Dela consta também a percepção de que não se trata apenas de uma superação que liberta o activismo (ocidental) da sua forma abstracta, mas também da libertação desse próprio activismo incessante e compulsório, que é igualmente um genuíno rebento do universo moderno do "trabalho". O momento de crise e de transformação do desenvolvimento das forças produtivas que remete para além do "trabalho" só conduz à superação do "trabalho" quando este for superado como esfera separada e a índole das formas humanas de relacionamento for igualmente transformada na microesfera.
Não será por meio de super-homens malucos e arrivistas que têm de si a imagem de semilunáticos que se superará a socialização pelo valor, mas por meio de pessoas absolutamente comuns, que levam sua vida absolutamente comum em conjunto com outras e querem estender seus pensamentos sobre o mundo, sem ser continuamente cerceados por exigências, ordens e pretensões abstractas, sem ter constantemente de se pôr à prova e de se auto-afirmar. O reino da necessidade será antes de tudo superado pelo facto de se superar a dissociação social e sexualmente hierarquizada com todas as suas atribuições compulsórias. Para tanto é preciso um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas, que hoje há muito foi alcançado e ultrapassado. Ora, o reino da necessidade não desaparece imediatamente, pela mera minimização do "dispêndio de trabalho" humano, mas só mediado pela reintegração dos âmbitos dissociados — possibilitada em virtude desse desenvolvimento da produtividade — ao nível superior da socialização e das necessidades.
Esse problema aparece sem duvida de modo muitas vezes distorcido e redutor até mesmo no debate actual dos sindicatos, no qual se critica o apego à luta salarial ou empresarial imanente ao sistema (e não mais prolongável na crise) e se exige a inclusão de outros âmbitos (escola, infantário, problemas do bairro etc.). No horizonte de Marx, essa integração (como "educação politécnica", por exemplo) ainda é pensada inequivocamente a partir do universo do trabalho, no qual os momentos da vida dissociados de forma sexualmente específica devem ser na melhor das hipóteses absorvidos mecanicamente (o que na prática é de todo impossível).
Hoje contudo também se pode fazer a crítica imanente do discurso da "economia das horas de trabalho" do chamado reino da necessidade. Aqui novamente desempenham um papel decisivo a revolução microeletrónica e suas consequências, pois o desenvolvimento das forças produtivas e a crise da "sociedade do trabalho" hoje palpável levaram ao absurdo o reino da necessidade dentro do próprio processo capitalista, no cru sentido tecnocrático da imputabilidade produtiva. O importante hoje não é mais a produção individual ou "empresarial" e a sua imputação, mas o controle social do emprego cientifico e tecnológico de recursos que há muito se autonomizou, e esse facto contradiz frontalmente não só a racionalidade económica e empresarial, mas também o seu prolongamento "socialista". Marx não podia imaginar que o lema "de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo a sua produção" tornar-se-ia obsoleto já sob o umbral de seu "socialismo". Também por isso ele promoveu sua bipartição em necessidade e liberdade, bem como em grau "inferior" e "superior" do comunismo. Para ele, a transformação do próprio capitalismo era ainda uma questão "dentro" do horizonte da sociedade do trabalho. Isso corresponde à sua posição histórica real (e portanto não há que censurá-lo), mas tal horizonte já está hoje objectivamente ultrapassado.
Com isso, também uma outra bipartição se torna compreensível em Marx. Na Crítica ao Programa de Gotha ele fala por um lado que na fase "inferior" do comunismo não poderia ocorrer mais "nenhuma troca" (nenhuma troca de mercadorias); por outro lado, contudo, em referência aos "sinais de nascença da antiga sociedade", ele diz que o balanço e a imputabilidade da produção individual teriam de permanecer activos por determinado tempo. E, num outro trecho, o assunto é a subsistência da "determinação do valor" no sentido de um cálculo social do tempo de trabalho: todos "trechos", aos quais o marxismo se reportou com grande zelo legitimatório fundamentado na ontologia do trabalho.
Aqui já se torna visível que Marx cai em contradição em virtude de sua posição histórica de transição entre a teoria imanente da modernização e a da superação transcendente. Embora na pura teoria seja imaginável que se possa hoje, com um gasto gigantesco de tempo de cálculo por meio de computadores, obter a estimativa directa do tempo de trabalho, o problema, pelo facto mesmo dessa possibilidade (ou seja, pelo grau de cientiticização), tornou-se ironicamente sem objecto. Se não é mais o consumo da força de trabalho humana abstracta que sustenta a reprodução daquilo que é necessário, antes pelo contrario, sendo preciso cortar mais e mais o "trabalho" supérfluo e nocivo à comunidade, então um "cálculo do tempo de trabalho" social torna-se absurdo.
No passado, quando o horizonte da "sociedade do trabalho" ainda não fora ultrapassado, o postulado de um cálculo "directo" do (valor do) trabalho, liberto da abstracção da forma do valor, tinha de permanecer uma precária utopia (ainda que Schumpeter o tomasse como logicamente possível). Enquanto o consumo de força de trabalho humana preenchia o horizonte da reprodução social, o gigantesco modulo contabilístico só pôde ser pensado na forma de uma burocracia contabilística e repartida igualmente gigantesca, e portanto estatal. O "estalinismo" absorveu esta ideia, mas de modo algum lhe correspondeu, pois a União Soviética foi muito rapidamente obrigada a bandear-se para a forma do valor e, assim, para a mediação monetária. Com toda a razão, a utopia do cálculo directo do tempo de trabalho desvaneceu-se; a ontologia do trabalho acarreta consequentemente, e de acordo também com a forma, a ontologia do valor (da forma da mercadoria social). O problema deve ser posto de modo totalmente diverso sob as condições actuais, para além do "trabalho" e só então para além do valor, isto e, para além do desvario produtivo abstracto da modernidade, que se tornou um fim em si mesmo.
Aqui posso apenas abordar brevemente as demais consequências. Como uma ontologia da relação entre os sexos fundada "nas ciências naturais" corresponde a uma ontologia do "trabalho" e esta desemboca forçosamente numa ontologia do valor (ou mesmo num "cálculo directo do tempo de trabalho"), disso resulta também uma ontologia do sujeito (isto e, do conjunto de conhecimentos e acções pautados pela forma da mercadoria) e uma teoria da crise redutora e limitada. O marxismo do movimento operário agarra-se com unhas e dentes ao conceito iluminista de sujeito, do qual ele não é mais que a "segunda transição"; e como ele não quer superar o "trabalho" nem o valor, se é certo que ele quer "libertar" o "sujeito do trabalho", que se opõe a uma natureza científico-naturalmente objectivada, a verdade é que pouco o liberta. E em razão de tudo isso, eis por que o capital não "pode" em seu processo histórico conduzir ad absurdum o "trabalho" e portanto a si mesmo, e desde logo nunca "nas costas" de todos os envolvidos.
Por trás da crítica em parte condescendente em parte raivosa à teoria do limite absoluto do capital (ou à prognose de que tal limite terá sido alcançado sob nossos olhos) não se ergue simplesmente esta ou aquela objecção empírica, mas antes o principio marxista de que não pode ser o que não se permite, ou seja, uma figuração profundamente ideológica. "O capital" tem de permanecer em si eternamente (ou ao menos ainda por "séculos") capaz de explorar, primeiro para que com ele o terreno histórico do "trabalho" não seja abandonado e a sua ontologia tornada falsa, e, segundo, para que o "sujeito do trabalho" possa alçar-se à autoconvencida autolibertação e não tenha de desaparecer no inferno da história juntamente com o próprio "capital" (como cujo momento imanente ele seria então desmascarado). Daí vem o ódio à teoria do colapso.
Para uma consciência pós-marxista, a qual ainda cabe firmar-se como social, a libertação do Marx "esotérico" e critico do fetichismo do seu duplo "exotérico" coincide pelo contrário com a teoria de um limite absoluto do capital globalizado, com a superação do valor-mercadoria-dinheiro, com a superação da relação entre os sexos constituída pelo fetichismo da mercadoria e com a superação do "trabalho" em todos os seus avatares. O resultado seria uma superação da separação de esferas diferenciada da sociedade moderna, na qual o indivíduo é apenas o ponto de intersecção de inúmeros momentos funcionais, sendo justamente por isso abstracto. Só aqui reside o princípio para uma superação da teoria de Marx no seu próprio espírito.
Notas de rodapé:
(1) Referência a Bad Godesberg, cidade onde o SPD, partido social-democrata alemão, consagrou entre 13 e 15/11/1959 o manifesto chamado Godesberger Grundsatzprogramm, em que praticamente se abandonava o socialismo como meta. (N. do T. ) (retornar ao texto)