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Quando falamos de metafísica e de “metafísica real “ torna-se obviamente necessária uma desambiguação, principalmente porque o conceito de metafísica é muitas vezes maltratado e há quem goste de o tagarelar irreflectidamente com ar de importância. Em alguns discursos actuais serve para quase mistificar as relações capitalistas, uma vez que, como determinação que permanece imprecisa, mais obscurece que esclarece o contexto categorial da forma da sociedade. No entanto, com Adorno, não se deve perder de vista que uma desambiguação não se faz com meras “definições”, mas que os conceitos apenas se tornam claros no seu contexto histórico, ou seja, nas “constelações” de que constituem um momento.
A metafísica é geralmente considerada como um domínio específico da reflexão conceptual (filosófica). Tal reflexão, no entanto, já está sempre num contexto de reprodução humana, ou seja, das relações sociais e do “processo de metabolismo com a natureza” em diferentes formações históricas. Portanto, quando se fala de metafísica, esta não pode ser tomada por si (numa perspectiva de “história intelectual”) como reflexão filosófica com diferentes pontos de vista, mas deve ser considerada no contexto das respectivas relações de reprodução.
Este é um aspecto do materialismo histórico que continua a ser indispensável para a elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. Em contraste com o materialismo histórico, no entanto, aqui já não seguimos um esquema base-superestrutura, em que um momento da reprodução, do “processo de metabolismo com a natureza” percebido como “trabalho” se torna o princípio fundamental dominante, a partir do qual todos os outros deverão ser derivados. Isto em si é uma metafísica, como também veremos. A concepção que resulta da teoria crítica da dissociação-valor de uma “história de relações de fetiche” em vez disso parte do princípio de que existem diferentes momentos da reprodução “igualmente originais”, ou seja, para além da respectiva forma do “processo de metabolismo com a natureza” e com ela não absolutamente coincidentes, também existem formas de relações sociais, formas cultural-simbólicas, formas de reflexão e não em último lugar formas de relações de género etc. insusceptíveis de serem reduzidas umas às outras, mas que apenas como um todo constituem uma formação histórica específica. Na medida em que na história até hoje o que houve foi constituições de fetiche na acepção do acima introduzido conceito de matriza priori, pode falar-se de “metafísicas reais” históricas surgidas em processos contingentes; isto é, incluindo toda a reprodução, e não apenas como reflexão conceptual e filosófica que, pelo contrário, é incorporada na respectiva “metafísica real”. Isso significa que o conceito de metafísica em primeiro lugar representa uma determinação da constituição de fetiche de relações humanas de reprodução e deve ser pensado em conjunto com ela.
Neste sentido, a teoria da história da crítica da dissociação-valor transforma o materialismo histórico de uma hipostasiação do “processo de metabolismo com a natureza” (“trabalho”, forças produtivas) na determinação de relações de fetiche de acordo com uma matriz a priori mediada de diferentes maneiras por um meio constituído metafisicamente; e nesta relação de fetiche metafísica está incluído também o respectivo “processo de metabolismo com a natureza”. Trata-se, portanto, não de um “idealismo” que deriva a realidade histórica de princípios puramente espirituais ou de construções do pensamento (como pode parecer em Gerold Wallner) ou de desenvolvimentos da “história intelectual” (também isto é uma metafísica), mas de uma reflexão crítica das relações de reprodução “realmente metafísicas” dos seres humanos, em cujo contexto se situam todas as reflexões (filosóficas ou teológicas). Portanto, temos de distinguir entre “metafísica real” subjacente (inconsciente e a priori) de relações de fetiche e metafísica como reflexão (consciente) “sobre” a “constituição do mundo” assim formada e “nela”. Neste sentido a reflexão da crítica da dissociação-valor é uma reflexão explosiva, na medida em que, juntamente com a constituição de fetiche, também a “metafísica real” de toda a história anterior é radicalmente criticada, com o objectivo de suplantá-las.
Dito isto, podemos agora voltar ao conceito filosófico de metafísica. Ele tem origem no arranjo editorial das obras de Aristóteles (Corpus Aristotelicum) feito por Andrónico de Rodes cerca do ano 70 antes da nossa era. Aí foram reunidos certos textos de Aristóteles sob a designação de “depois da física”, o seja, o que vem após ou “atrás” dos trabalhos sobre física (embora o termo “física” não corresponda naturalmente ao entendimento moderno), o que em grego é designado pela palavra “metafísica” (o próprio Aristóteles nunca usou este termo). Visto de fora parece portanto tratar-se de uma mera designação de técnica editorial, o que tem sido frequentemente apontado. Ora não se pode negar que este termo, surgido quase acidentalmente por razões de técnica editorial, se refere a um conteúdo material específico dos escritos de Aristóteles por ele abrangidos. Pode verificar-se aí um conteúdo correspondente à ordenação feita acidentalmente por razões de técnica editorial: não se trata apenas do que nas “obras completas” de Aristóteles foi editado “após” os livros sobre física, mas também de um conteúdo “após”, “atrás “, “acima” ou “além” do mundo da aparência experiencial. Este conteúdo específico foi tratado muito antes de Aristóteles nas reflexões teológicas e filosóficas; pela coincidência acidental do arranjo editorial e do conteúdo dos textos correspondentes de Aristóteles, o conteúdo deste campo de reflexão apresenta-se desde então como “metafísica”. É inútil divagar sobre a formação da palavra; trata-se, sim, da importância do conteúdo por ela designado.
Do que se trata ou o que se considera como “Além” do mundo dos fenómenos experienciais? Aristóteles fala nos escritos editados como “metafísica” de uma “filosofia primeira”, que tem de “ir aos primeiros princípios e causas” (Metafisica, de acordo com a tradução de Hermann Bonitz, Hamburgo, 1995, p. 6), e de facto tendo em vista o “ser em geral”: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e o que lhe pertence a si mesmo. Esta ciência não é idêntica a qualquer das ciências individuais; nenhuma das outras ciências trata do ser como ser em geral, pois elas limitam-se a uma parte do existente e estudam as determinações que o perfazem...” (Metafisica, ob. cit., p. 61). A metafísica, portanto, é a ciência das “primeiras causas e princípios” do “ser em geral”, a explicação ou “justificação última” porque é que existe algo em geral, a ciência do que “está subjacente ao mundo” a ciência do “absoluto” que apenas ele constitui o mundo do fenómenos (constituens em contraste com constitutum) e que é supra-temporal. A metafísica, por isso, pode ser dividida em uma “essência do ser em geral” atemporal (ontologia), uma “essência do mundo natural” atemporal (cosmologia filosófica da natureza) e uma “essência do Homem” atemporal (antropologia filosófica), sendo que cosmologia e antropologia estão contidas na ontologia geral, ou seja, elas mesmas são determinadas ontologicamente. Em qualquer dos casos trata-se de “ciência do absoluto” e do constituinte “como última causa”, seja ele um absoluto do “ser em geral”, um absoluto do mundo físico ou um absoluto do mundo humano e da sua historicidade.
Esta ciência filosófica da metafísica, como disse, liga-se agora com as relações de reprodução humanas, e de facto em sua existência como relações de fetiche, na medida e enquanto são relações de fetiche na acepção daquela matriz a priori inquestionável, a qual constitui as respectivas relações sendo o respectivo absolutum e assim metafísica real. Nesta medida, cada metafísica conceptual constitui a expressão reflexiva (e, portanto, a afirmação ou justificação) da respectiva metafísica real fetichista. É preciso diferenciar entre metafísica real pré-moderna de “relações de relacionamento com Deus” (para cuja diferenciação interna a nossa crítica do fetiche ainda não está desenvolvida) e metafísica real moderna de relações de dissociação-valor (capitalismo). É claro que a reflexão conceptual da ciência metafísica deve ser correspondentemente diferente nas relações pré-modernas e modernas.
No mundo de Aristóteles, tal como no mundo da chamada Idade Média cristã, em cada caso determinado por “relações de relacionamento de Deus” de maneira diferente, a metafísica refere-se em todos os aspectos fundamentalmente a um “primeiro princípio” ou “primeira causa” que deverá estar situado “além” do mundo fisicamente experiencial, sendo portanto determinado como “supra-sensível” ou simplesmente “transcendente”. Por isso a metafísica é frequentemente considerada como a “ciência do supra-sensível “ que enquanto constituinte do mundo não pode ser imanente ao mundo (não fisicamente tangível) e que é visto como Deus ou como mundo dos deuses (em termos cristãos: o “reino de Deus”). Aristóteles determina este absolutum constituinte do mundo como um chamado “motor imóvel”, uma “essência imutável” (Metafísica, ob. cit., p. 127). Ele chega a esta conclusão porque tudo no mundo é movido por causas, não apenas em sentido mecânico, mas também em termos de nascimento e decadência e, portanto, terá de haver uma primeira causa em si imóvel, que é eterna e transcendente: “(Apenas) o espaço à nossa volta do mundo dos sentidos está em constante decadência e surgimento” (ibid., p. 81), e “o primeiro motor é ele próprio imóvel” (ibid., p. 88).
O Deus aristotélico é, portanto, um absolutum geral e abstracto para além do mundo : “Como Deus puro ele está completamente auto-relacionado fora do cosmos” (Jörg Disse, Kleine Geschichte der abendländischen Metaphysik [Breve história da metafísica ocidental], Darmstadt, 2001, p. 99). Este modo de ver também foi acolhido na metafísica teológica cristã, embora aí tenha sofrido modificações. Aqui basta-nos em primeiro lugar constatar as noções de “causa primeira” ou “primeiro princípio” e a sua transcendência do mundo experiencial. Essa transcendência é parte integrante da constituição metafísica real das relações pré-modernas de fetiche, e com isso de dominação, enquanto “relações de relacionamento com Deus”. Como já se viu, a reprodução como relação fetichista de dominação está aqui mediada com intermediações pessoais, como “representações de Deus” cuja legitimidade deriva do facto de pessoas com correspondente carga metafísica apresentarem e representarem o “relacionamento com Deus”, ou seja, terem de estabelecer a comunicação com a esfera da transcendência na qual a “ordem do mundo” ou “relação com o mundo” se baseia.
Uma vez que a “relação com o mundo” capitalista moderna tornou a transcendência paradoxalmente imanente ao mundo como “sujeito automático”, tentando afastar para a relação de dissociação sexual os momentos da reprodução e das relações sociais que nele não ficam absorvidos, agora o absolutum, o “primeiro princípio” ou “causa primeira” já não surgem como um “Além” dos fenómenos do mundo experiencial, mas como um absolutum ele próprio contido neste mundo e mais precisamente como um absolutum “em processo” imanente (valorização do valor). Este absolutum enquanto valor, como se viu, também é “supra-sensível”, não fisicamente tangível; mas, uma vez que ele se “apresenta” imanente ao mundo na forma do valor de troca das coisas do mundo (os corpos sensíveis das mercadorias exprimem reciprocamente a sua essência supra-sensível, isto é, a forma natural de uma mercadoria torna-se a forma do valor da outra), ele aparece “no” mundo e degrada as coisas do mundo em meras manifestações de si. O dinheiro como expressão universal desta relação torna-se a coisa imediatamente “sensível-suprassensível”, enquanto os momentos da reprodução nele não perceptíveis e delegados na relação de dissociação sexual são determinados como pertencentes a uma mera sensualidade inferior, que não tem a dignidade “superior” do paradoxal absolutum sensível-suprassensível (o qual precisamente com isso a si próprio se desmente como absolutum monista).
Assim, por um lado, estamos confrontados com uma enorme diferença para com as “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas. Uma vez que a transcendência do absolutum se tornou paradoxalmente imanente ao mundo, a si mesmo se “representando” imediatamente nas coisas do mundo e tendo de se “representar” sempre de novo numa escala cada vez maior num processo aparentemente interminável, as coisas do mundo também já não podem aparecer como várias “substâncias” em si, apenas indiretamente relacionadas com um absolutum do Além (a “substância das substâncias” transcendente, Deus), mas têm de ser directa e imediatamente degradadas na mera “expressão” ou “manifestação” da substância que a si própria se coloca como absoluta do valor e com ele do “trabalho abstracto”. Por outro lado, continua a tratar-se aqui, mesmo que agora de outra maneira, de um absolutum apreendido como atemporal, de um “primeiro princípio” que deve determinar a “ordem do mundo” e que agora enquanto seu paradoxal tornar-se imanente agudiza até ao insuportável os poderes destrutivos da “história de relações de fetiche” (metafísica real).
No plano de abstracção do conceito de fetiche ou do conceito de “história de relações de fetiche” é preciso portanto constatar não só a diferença perante as “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas, mas também o momento abstracto de comunhão numa “metafísica real” em cada caso diferente e das correspondentemente diferentes reflexões metafísicas (fundamentações últimas num absolutum trans-histórico). No interior da metafísica real / metafísica pode falar-se de uma diferença entre a transcendência pré-moderna (esfera divina supra-sensível do Além) e a transcendentalidade moderna (“transcendência imanente” paradoxal do valor). O conceito de “transcendental” remonta a Kant que com esta expressão descreve a metafísica da razão formal da modernidade em que se expressa a socialização da dissociação-valor. As “relações com o mundo” pré-modernas são determinadas de modo transcendente, as modernas de modo transcendental.
Ora, uma vez que na reflexão filosófica moderna a partir do iluminismo não se atingiu o nível de abstracção do conceito de fetiche (que depois de Marx foi em grande parte deixado cair novamente ou nem voltou a ser pensado), pôde surgir a impressão de que a modernidade seria uma época “pós-metafísica”. O conceito de metafísica foi então unilateralmente restringido à transcendência e ao “supra-sensível” das “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas, enquanto a relação de valor moderna paradoxalmente “sensível-suprassensível” surgia não como “metafísica em processo” (Jörg Ulrich), mas como suplantação da metafísica em geral enquanto imanência ao mundo, metafísica que além disso foi percebida como mero problema ideal, da história das ideias, enquanto a referência às relações de reprodução realmente metafísicas permaneceu completamente na sombra; por isso também o conceito de fetiche de Marx continua a ser um livro fechado a sete chaves para o pensamento moderno pseudopós-metafísico.
Se a metafísica filosófica da modernidade, que pretende não o ser, for agora reconduzida à sua referência social realmente metafísica, é possível decifrá-la, por um lado, como metafísica da abstracção do valor e portanto do “sujeito automático” ontologizado, que aparece como metafísica da “razão” e se apresenta eticamente como metafísica da forma jurídica (classicamente nas “críticas” de Kant), simultaneamente dinamizada para metafísica da história do “progresso” (sistematizada por Hegel, como se viu, como história do desenvolvimento do “espírito do mundo”). Aqui, a ênfase é posta no momento “supra-sensível” da transcendentalidade, enquanto o mundo sensível é degradado em manifestação do absoluto supra-sensível tornado paradoxalmente imanente ao mundo (valor ou valorização do valor, disfarçado de “razão pura”).
Por outro lado o marxismo, justamente como “materialismo histórico”, desenvolveu uma metafísica também encapotada, ontologizando por sua vez o “trabalho” abstracto como absolutum e assim o elevando a metafísica do trabalho. “Trabalho”, no entanto, é apenas o lado vivo-sensível abstractificado da mesma metafísica real capitalista (a paradoxal “sensibilidade abstracta”) e, portanto, tão pouco é “pós-metafísico”. A ele corresponde o “materialismo”, como cosmologia da filosofia da natureza; por isso é uma metafísica materialista da mesma constituição sensível-suprassensível em que se reflecte o cruzamento da “supra-sensibilidade” do valor com o mundo dos sentidos por ele atingido, e onde “o trabalho” representa o movimento de mediação como substância em processo abstractificada. Nessa medida, a oposição entre a metafísica da “razão” e do direito genuinamente burguesa (idealismo) e a metafísica do trabalho marxista (materialismo) constitui uma disputa no interior da própria metafísica moderna, no terreno da metafísica real capitalista. São as duas faces da mesma moeda.
Isso também se reflecte na ironia da história de que o socialismo real da “modernização atrasada” pretendeu deixar continuar em processo o “trabalho” sem o seu outro do capital, por meio de um suposto comando sobre a forma valor não resolvida, e teve de falhar, enquanto, inversamente, o capitalismo de crise da terceira revolução industrial gostaria de deixar continuar em processo a valorização na forma do “capital fictício” por sua vez sem suficiente “substância de trabalho”, e por isso falhará também. Só a viragem crítica contra a constituição de fetiche em si e, portanto, contra a “história de relações de fetiche” pode romper a metafísica real das relações sociais e materiais e, com ela, a metafísica como sua reprodução ideal.
Voltemos agora ao raciocínio de Wallner e Cª. em que a concepção de “história de relações de fetiche” é descartada a favor da absolutização da diferença das formações históricas. Também isto é uma metafísica, pois aqui é a própria diferença desconexa que é tornada um absolutum e ontologizada como antropologia filosófica, pelo que é apropriado falar de uma metafísica da diferença, a qual, pode já antecipar-se aqui, constitui uma característica geral da ideologia pós-moderna (voltarei a isso com mais detalhe nos dois pontos seguintes). Isso também tem consequências para o conceito de metafísica.
No artigo Die Leute der Geschichte [As gentes da história] Wallner, movido pelo zelo de hipostasiar a diferença e negar qualquer momento abrangente na história, classificou a metafísica como que de passagem de modo ainda completamente tradicional e à maneira bem iluminista, ou seja, como essencialmente pré-moderna, ao contrário da modernidade (implicitamente determinada como “pós-metafísica”). Assim Wallner, no lugar já citado sobre a constituição religiosa da pré-modernidade, critica qualquer classificação como metafísica da continuidade na verdade falsa e redutora do capitalismo “como religião”, pois tais erros de classificação questionariam “se compra e venda não seriam actos de culto, o direito, uma metafísica e o ganhar dinheiro, uma idolatria...” (EXIT! 3, p. 56). Aqui a metafísica ainda aparece numa série com “actos de culto”, “idolatria “, etc. que, ao pretender-se que caracterize também a figura do direito moderno, é atribuída à constituição moderna do ponto de vista de Wallner erroneamente, quando pertenceria apenas à constituição religiosa pré-moderna. Esta argumentação de Wallner visando negar qualquer continuidade torna-se porém problemática no que diz respeito à determinação da modernidade como metafísica real sui generis, que assim teria de ser realmente descartada, com o que também o conceito marxiano de fetiche não seria mais sustentável.
Para evitarem esse problema e poderem continuar a comportar-se “como críticos” Wallner & Cª. agora simplesmente viraram o bico ao prego e de repente reservaram exactamente ao contrário a metafísica já apenas para a modernidade capitalista, devendo as constituições religiosas pré-modernas voltar a figurar absurdamente como “não metafísicas”. O que aponta mais uma vez para a arbitrariedade e livre escolha de um pensamento que quer a todo o custo a absolutização da diferença, em que agora a relação é posta de pernas para o ar com uma cambalhota.
Jörg Ulrich, no seu texto já citado várias vezes de discussão crítica com Wallner („Der” Mensch und die Leute und die Religion und der Kapitalismus und so weiter [“O” ser humano e as gentes e a religião e o capitalismo e por aí fora]), inicialmente rejeitou esta inversão do conceito. Ulrich concorda que não se pode ficar por uma crítica ela própria ainda iluminista, que apenas acusa o capitalismo de suplantar “incompletamente” a metafísica: “Se se pretendesse realmente acusar a modernidade apenas de ‘não ter suplantado suficientemente’ a metafísica, então continuaríamos ainda a mover-nos dentro da consciência que ela tem de si mesma, uma vez que a acusação consistiria em o positivismo, que afirma ter suplantado completamente a metafísica, não o ter feito no fundo suficientemente, de modo que a metafísica, por assim dizer, voltou a entrar pela porta das traseiras. Mas a constatação de que no positivismo encontra expressão uma metafísica que ele não reconhece como tal não supõe de modo nenhum que ele a tenha suplantado apenas incompletamente, mas sim que não a suplantou nada. A metafísica já é sempre a metafísica toda, e a sua suplantação, se de algum modo for possível, apenas pode ser a suplantação de toda a metafísica” (Ulrich, ibid.).
Aqui, o problema ainda é muito bem colocado no contexto da suplantação da metafísica, que aponta para a continuidade de pré-modernidade e modernidade, tendo em consideração as constituições realmente metafísicas em cada caso diferentes e as correspondentes formas de reflexão. O argumento de Wallner revela-se como um passe de mágica, uma vez que a sua crítica à fixação no pensamento iluminista se refere apenas à alegada “incompletude” da suplantação da metafísica, mas não ao momento da continuidade de constituições afinal metafísicas. Aqui seria preciso determinar a relação entre diferença e semelhança, e precisamente no plano de abstracção de uma “história das relações de fetiche” que inclui perfeitamente a diferença entre as determinações metafísicas pré-modernas e modernas. É o que Ulrich também deixa inequivocamente claro: “Ora a moderna suplantação da ‘antiga metafísica’... não é incompleta... mas simplesmente uma suplantação metafísica da metafísica e, portanto, não apenas ruptura, mas também continuidade” (ibid.).
Em seu diálogo com Claus Peter Ortlieb (que será publicado na EXIT! 4) Ulrich, porém, já lançou borda fora este ponto de vista e também a este respeito se acomoda novamente à “absolutização da diferença” como um modo de ver suposto completamente novo com “outros olhos”. Então de repente ele põe-se a divagar em conformidade, sem identificar o contexto de fundamentação: “Talvez As gentes da história pré-modernas não tivessem ou não conhecessem qualquer metafísica no sentido em que nós hoje a imaginamos, de modo que a metafísica como forma de dominação do geral sobre o particular teria de ser entendida também de novo como questão especificamente moderna”(Claus Peter Ortlieb / Jörg Ulrich, Die metaphysischen Abgründe der modernen Naturwissenschaft. Ein Dialog [Os abismos metafísicos das ciências naturais modernas. Um diálogo]). Na realidade, porém, trata-se de uma diferença no interior da “dominação do geral sobre o particular”, pois nas constituições pré-modernas a dominação como transcendência absoluta daquele “geral” (Deus, motor imóvel) era indireta, enquanto na modernidade como parodoxal “imanência do transcendente” (transcendentalidade) tornou-se directa.
Ulrich tenta agora agarrar a absolutização da diferença, “assumida” contra a própria convicção, como oposição entre “metafísica” (supostamente apenas moderna), por um lado, e “teologia” (pré-moderna), por outro, caso em que Aristóteles figura apenas na “teologia” “em vez de” na “metafísica” suposta puramente moderna. Mas, de modo nenhum por acaso nem arbitrariamente, a teologia não é tratada como expressão particular da metafísica ou como estando em ligação com ela. A este respeito a lição de Adorno sobre Metafísica de 1965 pode ser elucidativa. Aí ele vira-se de facto contra a tentativa usual de “meter a teologia e a metafísica... no mesmo saco” (Theodor W. Adorno, Metafísica, Lições 1965, Frankfurt / Main 1998, p. 16), mas ao mesmo tempo faz notar a sua comunhão, dizendo “que a metafísica também tem algo ver com a teologia, justamente na maneira como ela procura elevar-se acima da imanência, acima do mundo da experiência” (ibid., p.17). Tanto quanto podemos agora diferenciar entre metafísica no sentido filosófico e teologia como metafísica, é o mesmo problema da transcendência (ou, na era moderna, da transcendentalidade) em versão ou modo de exposição meramente diferente; na reflexão filosófica, em oposição à teológica, trata-se de “... que a metafísica é a tentativa de determinar a partir de puro pensamento o absoluto ou as estruturas constitutivas do ser; portanto, não dogmaticamente, não a partir da revelação, e não como algo positivo que me é dado simplesmente, nomeadamente através da revelação ou da revelação veiculada pela tradição..., mas sim... pelo conceito” (ibid., p. 18).
Ora é perfeitamente claro que a reflexão aristotélica do “motor imóvel” é puramente conceptual e nessa medida metafísica filosófica, portanto de modo nenhum teológica, ou seja, não argumenta a partir da tradição canónica nem a partir da revelação, nem mesmo em forma mítica, e certamente não em ligação com um culto religioso. Ulrich confunde o conceito, porque já não consegue distinguir que a reflexão aristotélica, por um lado, acontece de facto numa constituição real religiosa histórica de “relações de relacionamento com Deus”, não assumindo, por outro lado, nenhuma forma teológica. Isso aponta para que já na antiguidade a metafísica filosófica e a teologia se separam, mas no próprio terreno da constituição religiosa das relações de reprodução. Há assim uma tensão, que coincide com a linha de reflexão do antigo “cepticismo”: cepticismo contra o dogma teológico ou a tradição, mas não contra a constituição de fetiche religiosa como tal, que é sempre explicitamente reconhecida. Inversamente esta tensão é feita valer do lado da teologia; Adorno fala de “violentas reacções mais antigas da teologia contra a metafísica” (ibid., p. 18), ou seja, contra a reflexão conceptual filosófica desligada da tradição ou da revelação na base da constituição religiosa. Mas Adorno também ressalta que “finalmente a metafísica e a teologia entenderam-se” (ibid., p. 19), em parte já na antiguidade, mas especialmente na Idade Média cristã a partir dos Padres da Igreja. Tudo isso aconteceu ainda no terreno das constituições religiosas. É pensamento unidimensional e não-dialético considerar que toda a reflexão conceptual nas constituições reais religiosas em virtude da sua constituição tem de ser “apenas teológica” e que toda a filosofia pré-moderna é subsumida na “teologia”. A separação absoluta feita por Ulrich entre metafísica e teologia, atribuindo-as mecanicamente à modernidade, num caso, e às relações pré-modernas, no outro, é completamente arbitrária e contrária aos factos. Todo o problema fica com isso apenas obscurecido.
Ora qual será o significado de atribuir deste modo não-conceptual a metafísica apenas à transcendentalidade moderna, enquanto se considera que a reflexão na pré-modernidade deve ser “só teológica”? Reservando também exclusivamente para a modernidade a “metafísica real” que vigora na constituição reprodutiva, vai dar exactamente na absolutização da diferença. Constituição metafísica real e metafísica como reflexão conceptual “apenas na modernidade”, na pré-modernidade, pelo contrário, uma constituição que sendo religiosa não pode ser “metafísica real” e cuja reflexão deve ser “apenas teológica”. Quando Wallner no seu artigo atribui inadvertidamente na passagem citada o conceito de metafísica à constituição religiosa pré-moderna, ele já mostra ao mesmo tempo a que consequências absurdas conduz a arbitrária inversão em cambalhota da relação entre a constituição pré-moderna e a moderna.
É o que se vê quando ele reflecte sobre o estado ou o lugar da “esfera de Deus” no suposto entendimento pré-moderno, que apenas teria sido distorcido pela visão moderna: “Assim o elemento religioso — mediado pelas ideias de deuses, espíritos, demónios, fadas, anjos e que tais — nesta visão moderna é posto fora do mundo material e levado para outro lugar (por exemplo, para o céu), que simultaneamente é qualificado como invenção — da religião (!) — tal como os seres que o habitam. Isto pode ser baseado no facto de as incontáveis histórias da criação, entre si semelhantes no conteúdo até à identidade, sugerirem, como parte integrante da visão religiosa do mundo que Deus como criador do mundo material deve estar situado fora deste, portanto que aquilo que move o mundo e o mantém deve estar numa dimensão exterior ao mundo. Só que – apesar da criação do mundo pelos deuses — a sociabilidade religiosamente constituída viu isso de forma diferente. O mundo inteiro, incluindo os deuses, era hermeticamente fechado e, portanto, espacialmente determinável. Sabia-se onde estavam localizadas as entradas para o mundo inferior e as mitologias da antiguidade até às lendas recentes do período cristão conheciam os sítios. Tão-pouco era segredo onde os deuses moravam, até mesmo o paraíso ainda estava assinalado nos mapas do mundo do século XIII. Assim, vemos como as chamados ideias do além estavam perfeitamente no aquém...” (Wallner, p. 28).
Deste modo Wallner nega com toda a seriedade a transcendência pré-moderna da “esfera de Deus”. Transcendência deve existir apenas na forma da transcendentalidade moderna (daí que supostamente também a metafísica deve existir apenas na modernidade, do que Wallner inicialmente ainda não estava consciente ser consequência da sua própria afirmação, como se viu). O “Além” é suposto ser uma invenção projectiva da modernidade relativamente às “relações com o mundo” pré-modernas, enquanto de facto nas constituições religiosas não haveria nada do Além; o céu e o inferno (mundo inferior) teriam sido concebidos completamente “do lado de cá”. Deus ou os deuses não estariam localizados fora do “mundo material”, mas completamente imanentes ao mundo. Nas discussões sobre o novo texto de auto-apresentação da associação EXIT!, ao tratar-se do conceito de relações de fetiche, Petra Haarmann corroborou essa “original” declaração: As formações religiosas, segundo Haarmann, seriam “constituídas não de modo metafísico, mas realista “; tudo, incluindo “a esfera de Deus”, seria concebido “de modo estritamente material” nessas formações. Mesmo no cristianismo como religião de salvação os “contactos mentais” com a eternidade (seja lá isso o que for) teriam sido “limitados à imanência e à intramundanidade”.
Já na última afirmação está contido um erro grosseiro de relação lógica. Pois se, como Haarmann disse, para as pessoas pré-modernas na constituição religiosa uma “transcendência no sentido de ir além de si mesmo em pensamento” teria sido considerada “impossível, blasfema, sacrílega” etc. então ela confunde a capacidade de reflexão, os mandamentos e proibições de pensar, com o carácter da própria constituição. Se a reflexão que transcende é considerada impossibilidade pecaminosa, então, pelo contrário, pressupõe-se a transcendência absoluta da “esfera de Deus”. Isso já mostra que Haarmann, Wallner e Ulrich não entenderam a natureza da constituição de fetiche, mas para eles o pensamento consciente “sobre” e “na” constituição (neste caso religiosa) se confunde com o carácter da constituição como tal, a qual no entanto não é algo nascido da cabeça de quem pensa, no sentido de uma reflexão consciente. O medo do sagrado, a unidade da “ordem do mundo” nas “relações de relacionamentos com Deus” está dentro da constituição real religiosa, que assenta na “estrita” transcendência (no Além) do fundamento do mundo e só assim é possível.
As construções de Wallner sobre a suposta “localização” física e geográfica de Deus, do céu, do inferno / mundo inferior etc. são simplesmente ridículas. Os contos populares sobre as “entradas para o mundo inferior” (ou, se quisermos, para o lugar dos deuses no Olimpo) não constituem qualquer prova da imanência ao mundo da constituição, não passando de ideias “populares” da transcendência que no entanto vigora. Tais “entradas” poderiam quando muito ser apresentadas como “portas” para outra dimensão, do Além. Wallner comete o anacronismo de atribuir a essas ideias um entendimento moderno de localização terrestre. Se assim tivesse sido “realmente”, então deveria ter havido um animado turismo para o Além e as pessoas teriam podido encontrar-se com os deuses para um copo de néctar e um snack de ambrosia. O mesmo anacronismo surge quando Wallner supõe que os cartógrafos medievais teriam imaginado que se pode rumar ao paraíso tal como para a costa do Norte de África. Toda a conversa sobre possibilidade de localização terrena, imanência ao mundo e “materialidade estrita” evidencia uma gritante falta de compreensão da “relação com o mundo” pré-moderna nas suas representações simbólicas. Por maioria de razão seria um anacronismo se Wallner quisesse, por exemplo, interpretar os deuses planetários da Mesopotâmia como “imanentes no mundo”, porque com isso já estaria a supor um universo físico newtoniano.
Wallner confunde penosamente as ideias e representações “naturais” de transcendência com a ausência desta última. O facto de o Além ser concebido como quase natural, por exemplo no antigo Egipto e na Mesopotâmia ou na antiga religião popular, não muda o seu carácter estritamente transcendente. Isso já decorre do facto de o Além (geralmente dividido de modo dualista em céu e inferno / mundo inferior etc.) ser o não-lugar, para onde vão os mortos que nunca mais regressam; ou, se regressam, então é como espíritos, demónios etc. que já não são deste mundo, mas representam uma perigosa irrupção da transcendência. Há também relatos de “viagens ao Além” xamânicas e religiosas, físicas ou não-físicas, e também com isso não está de acordo o postulado de Haarmann da absoluta impossibilidade de “ir além de si em pensamento”; mas esse ir além é numa transcendência justamente insusceptível de localização terrena (e, por conseguinte, um fenómeno excepcional tão sacrílego, ou, pelo menos, tão perigoso como também lendário).
E os mortos também não vão para o Além como corpos terrestres, mas sim como “almas” estritamente não-materiais. Por isso a ideia “natural” de transcendência, geralmente acompanhada de uma imagem antropomórfica dos deuses, já na antiguidade foi objecto de crítica e zombaria. Basta aqui uma referência à Metafísica de Aristóteles, onde se diz: “Ora poetas como Hesíodo e todos os outros teólogos limitaram-se a pensar o que lhes parecia plausível, mas sem nenhum respeito por nós. Porque, fazendo dos deuses princípios e fazendo surgir tudo dos deuses, eles explicam em seguida que quem não provou néctar e ambrosia se tornou mortal. Aparentemente essas palavras eram compreensíveis para eles próprios, é claro, mas o que eles disseram sobre a própria aplicação destas causas está para lá da nossa capacidade de entendimento. Porque se os deuses tomam o néctar e a ambrosia por prazer, então eles não são por si a causa do ser; mas se os tomam para manter o ser, como podem eles ser eternos, se ainda precisam de alimento? Por isso não vale a pena tomar a sério o saber mítico” (ibid., p. 53).
O “motor imóvel” de Aristóteles é de todo estritamente imaterial e exterior ao mundo, sendo por ele também designado explicitamente como “separado” (Metafísica, p. 126, p. 232 sg., p. 258 sg.) de qualquer materialidade. Se o desenvolvimento dentro da constituição religiosa em geral passa por aí, tão pouco se pode dizer numa visão grosseira que a concepção de transcendência quase natural, mas não deste mundo, se transforma na reflexão numa concepção estritamente imaterial, “supra-sensível”, sob pena de não poder ser mantida a transcendência necessária para a matriz a priori da constituição real. Por isso todo o pensamento nas constituições religiosas tende para uma divisão em uma existência material, sensível, corporal no mundo, por um lado, e em um Além “supra-sensível”, incorpóreo, exterior ao mundo e simultaneamente constitutivo do mundo, por outro. Isto levou à conhecida hostilidade do pensamento relativamente ao corpo e ao mundo nas constituições religiosas, desde os Upanishads até à teologia cristã, aparecendo o corpo como o “túmulo da alma” (soma = sema); e, na verdade, com um cunho mais ou menos radical (da forma mais extremista, como é sabido, na gnose, que sonhava com a aniquilação física do mundo).
A transcendência também é exacerbada pelo desenvolvimento da cosmologia ou cosmogénese metafísica pré-moderna. Não está correcta a afirmação improvisada de Wallner de que as “incontáveis” (também isto não é verdade) histórias da criação foram feitas “semelhantes até à identidade” entre si, e que sugeririam “falsamente” a transcendência dos deuses criadores (ele não achou necessário dar as razões pelas quais essa interpretação deve estar errada). Por exemplo, nos mitos da criação do antigo Egipto e da antiga Mesopotâmia (e noutros), que nos foram transmitidos pouco claros e dificilmente compreensíveis, não se trata de uma creatio ex nihilo, mas já existe sempre antes do criador ou independente dele uma substância do mundo, uma sopa primordial ou água primordial etc. e, em seguida, o mundo criado surge curiosamente por masturbação ou por cuspo dos deuses (um simbolismo natural que provavelmente Wallner tomaria de novo comicamente à letra e como prova de uma inerência ao mundo “estritamente material”. A ter sido “realmente” assim, segundo Wallner, os deuses estariam obviamente já sempre “por cima”). Na verdade esta constelação certamente que não muda nada na transcendência do divino.
No monoteísmo do Antigo Testamento, desenvolvido na teologia cristã, aparece então muito antes da modernidade uma transição para a creatio ex nihilo que impõe logicamente que a instância de criação estritamente extramundana não seja imanente no mundo. Isso aponta agora para a tendência para estabilizar a constituição religiosa real pela exacerbação do conceito de transcendência. Quando se diz na religião cristã de salvação que “o mundo está em Deus”, esta frase não é, como Wallner & Cª. aparentemente dizem, simplesmente reversível com a afirmação de que “Deus está no mundo” ou idêntica com ela. O mundo é uma emanação de Deus, e nesse caso está “em Deus”; mas isso pressupõe que há uma diferença fundamental entre o mundo e Deus (como inequivocamente em Tomás de Aquino); caso contrário, não poderia haver nenhum fundamento do mundo em Deus, nem a correspondente “relação com o mundo”, nem qualquer constituição religiosa real, mas apenas uma auto-criação permanente do mundo idêntico a Deus, ad infinitum. Deus pode naturalmente actuar e mesmo “aparecer” no mundo, afinal é o “seu” mundo. Mas, para que isso possa ser assim, tem de haver uma clara distinção entre Deus e o mundo, caso contrário não seria o “seu” mundo, mas ele estaria simplesmente “no” mundo, como a terra, os homens, os animais, as pedras, etc. ou seria simplesmente idêntico ao mundo como um todo.
A identidade de Deus com o mundo é geralmente conhecida como panteísmo ou “ateísmo envergonhado” (monismo). Wallner & Cª. querem impingir a todas as constituições pré-modernas uma constelação igual ou semelhante. Na realidade esta concepção monista apareceu apenas perifericamente nos tempos antigos (como no diálogo de Cícero Sobre a natureza dos deuses), mas de modo completamente inconsistente e em parte apoiada pela tendência dos “cépticos”, tendo sido substituída pela constituição cristã completamente oposta. Os momentos panteístas na filosofia medieval, como no misticismo e no averroísmo, foram perseguidos como heréticos. Não admira, pois um rompimento monista da transcendência nesse sentido teria deslegitimado toda a estrutura de poder da constituição real religiosa até às últimas consequências. Eske Bockelmann no seu livro Im Takt des Geldes [Ao compasso do dinheiro] mostrou, de resto, como no misticismo tardio já se revelam afloramentos da abstracção real moderna e da sua lógica funcional.
O primeiro panteísta consistentemente monista na história da filosofia e da religião também foi então Baruch Espinosa (1632-1677), cuja reflexão coincide exactamente com a “data de Bockelmann” da transformação concluída em grande parte inconscientemente (reflexiva apenas indiretamente) para a moderna abstracção real e lógica funcional do dinheiro. Se, portanto, a “descoberta da imanência” se situa em Espinosa (mesmo na própria interpretação ideológica de Antonio Negri), então trata-se da transição para a moderna e paradoxal “transcendência imanente” ou transcendentalidade; com efeitos de longo alcance para o iluminismo e para a metafísica materialista (como é o caso justamente também de Negri).
Ora que terá a ver com a “materialidade estrita” pré-moderna. (também com referência a Bockelmann) aquilo que é invocado por Wallner & Cª? Tal refere-se simplesmente às coisas imanentes ao mundo como respectivas “substâncias” próprias. Certamente o leite era leite, um rabo era um rabo, e não “expressão” imanente ao mundo de alguma outra coisa, ou seja, não era a mera manifestação da abstracção transcendental do valor. Mas isso não significa que leite e rabo não estivessem subordinados a um geral e abstracto. Só que este geral e abstracto era estritamente transcendente, leite e rabo estavam igualmente “em Deus”, mas apenas enquanto este é sua transcendência ou “superioridade ao mundo”, sendo eles substâncias próprias no mundo. O rabo estava em Deus, mas nem por isso Deus estava no rabo sem mais. A abstracção nominal por isso mesmo não era uma abstracção real. Isto mudou com o aparecimento do patriarcado moderno produtor de mercadorias. O transcendência “supra-sensível” da metafísica real da constituição religiosa pré-moderna, no entanto, era precisamente o pressuposto para que pudesse haver uma “materialidade estrita” de substâncias imanentes ao mundo. Contudo essa materialidade substancial imanente ao mundo não existia só por si, mas estava sujeita ao sistema de representação pessoal senhorial das “relações de relacionamento com Deus” metafísicas.
Encontramos constelações muito semelhantes de imanência e transcendência, do mundo e de Deus, por exemplo na Índia antiga, se não nos limitarmos eurocentricamente à história ocidental. Por exemplo, Heinrich Zimmer diz na sua obra de referência sobre a metafísica indiana do Bramanismo: “Não constituía para a divindade nenhuma ruptura com o seu Além o facto de ela temporariamente desempenhar um papel activo no campo de manifestação da natureza sempre em acção. De acordo com a mitologia indiana, a descida consiste apenas no envio de uma minúscula partícula (amsha) da substância supramundana da divindade infinitamente acima do mundo (!)...” (Heinrich Zimmer, Philosofie und Religion Indiens [Filosofia e religião da Índia], Frankfurt/Main 1973, primeira edição inglesa 1951, p. 349). Da mesma forma nos Bhaktas do tantrismo : “Eles dizem que o mundo é uma manifestação do poder e glória de Deus. Deus criou tudo isto: o céu, as estrelas, a lua, o sol, as montanhas, os mares, os homens, os animais. Todos eles constituem a sua glória. Ele está em nós, nos nossos corações. Mas também está lá fora” (ibid, p. 500). Mais uma vez, o mundo está “em Deus”, como sua emanação e influenciado pela sua “descida”; mas isso pressupõe justamente que ele está “também fora”, é transcendente, está fora do mundo. Só assim as diferentes substâncias no mundo podem ser tratadas como “estritamente materiais”, como existentes cada uma por si já “em Deus”, estando subordinadas às suas representações pessoais. É uma metafísica diferente, mas “é uma” metafísica.
A tarefa da teoria crítica da dissociação-valor consiste em demonstrar e destruir o carácter de metafísica real da modernidade, contra a falsa evidência de uma constituição “pós-metafísica” diferente das relações pré-modernas. Isso exige uma teoria da história que evidencie a diferença entre a metafísica real pré-moderna e a moderna, incluindo as respectivas reflexões teológicas e filosóficas (metafísicas). Wallner & Cª. colocam o problema de pernas para o ar e fazem simplesmente confusão conceptual e falsificação da história; eles distorcem toda a história da religião e da filosofia na sua mania ideológica de absolutização da diferença, invertendo simplesmente o problema da relação entre modernidade e pré-modernidade; e na realidade de modo totalmente contrário aos factos. A afirmação de uma estrita imanência ao mundo das constituições pré-modernas não é o resultado de uma investigação imparcial, mas o postulado improvisado ao qual deve ser subordinado manifestamente a posteriori e de modo arbitrário material aparentemente a condizer, para satisfazer a vontade apriorística ou a necessidade de promover uma política de demarcação do conceito de “história de relações de fetiche”. É como mudar o nome dos Himalaias para Pacífico, devendo o Pacífico a partir de agora chamar-se Himalaias e exigindo-se ao mundo que se desfaça em reverência perante tal originalidade. Quem doravante ainda usar os nomes antigos pensa de modo “tradicional”. Infelizmente, no caso desta reinterpretação e deslocação conceptual, trata-se apenas de um grosseiro abuso teórico e histórico. Como já relativamente à relação histórica geral entre capitalismo e religião, também agora relativamente ao conceito de metafísica e ao problema da transcendência que lhe estão associados Ulrich não abriu qualquer “terceiro olho”. A musa do pensamento unilateralizado e absolutizado da diferença revela-se como a “mãe de todas as confusões”; o seu efeito “inspirador” é mais parecido com o da aguardente de batata destilada espontaneamente, cujo consumo não traz clarividência, mas pode obrigar a chamar o cão-guia.
Mas o absurdo tem método. Pois a inversão do problema da metafísica não só leva a total confusão conceptual, mas também implica uma possível reversão da intenção crítica. Nomeadamente, se a constituição religiosa já não representa qualquer relação de fetiche, devendo ser considerada “puramente imanente ao mundo”, “estritamente material” etc. (e a modernidade como tendo apenas “projectado a sua própria miséria metafísica na pré-modernidade”, como Haarmann afirmou), então ela também já não cai sob a crítica meta-histórica no contexto da nossa actual crítica radical do capitalismo, mas torna-se já quase uma projecção positiva; poder-se-ia obter algo dela. Ela ameaça tornar-se num “ainda não” em termos de utopia retrógrada; pois é considerada deste ponto de vista como ainda não acometida pelos males da metafísica real que só são atribuídos à modernidade. Mas a diferente constituição metafísica real das sociedades pré-modernas causou à sua maneira própria brutais coerções, fricções, relações de poder, guerras, miséria e assim por diante, justamente porque de maneira nenhuma assentava numa “materialidade estrita” no sentido de reprodução autodeterminada em conjunto, mas sim numa determinação metafísica da transcendência.
O atrevimento de criticar o capitalismo porque ele também seria uma religião é de muito curto alcance e permanece preso no pensamento iluminista. Mas a reversão do problema da metafísica por Haarmann, Ulrich e Wallner também implica a este respeito uma simples inversão: a saber, o atrevimento de criticá-lo agora porventura ao contrário, por ele já não ser uma religião, cuja constituição teria sido de modo tão maravilhoso “estritamente material” e supostamente dando às coisas do mundo o que lhes é devido, quando na verdade estas foram aí simplesmente submetidas a uma determinação metafísica diferente. Ulrich e Haarmann demarcam-se profilaticamente desta interpretação óbvia de modo puramente superficial, afirmando que não devem “ser invocados ‘os bons velhos tempos’ à maneira contra-iluminista” (Haarmann nos seus textos do workshop sobre o conceito de paz entretanto publicados na homepage do grupo saído da Exit!) e que é preciso “precaver-se… contra a idealização ingénua das relações pré-modernas” (Ulrich, no mesmo local, no comentário a um discurso do Papa). Mas tais declarações não passam de formulações álibi, que de modo nenhum são abrangidas pelo desenvolvimento imanente da argumentação, revelando apenas que foi aqui sentida uma incerteza a que é preciso dar cobertura.
O que já se viu em Wallner, ao esconder o carácter das relações de fetiche (mesmo pré-modernas) como relações de dominação, torna-se aqui ainda mais claro: o constructo da metafísica da diferença de uma imanência ao mundo pré-moderna “estritamente material” constitui um declínio do potencial crítico da reflexão da teoria da dissociação-valor que se pretende transplantar para um sistema de referência diferente, na verdade incompatível. A rejeição do conceito de “história de relações de fetiche” é apenas um veículo para a ruptura fundamental com a elaboração teórica da crítica da dissociação-valor em geral.