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Primeira Edição: Original DAS CHARISMA DER KRISE em www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo de 09.11.2008 com o título O último Messias e tradução de Erika Werner.
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Existe um velho debate sobre o papel da personalidade na história. Os teóricos da estrutura apontam para a objectividade dos processos sociais, de que as grandes figuras só podem ser a expressão. Os teóricos da acção, pelo contrário, dizem: no princípio era o acto; fé e vontade devem poder mover montanhas. Ambos estão apenas relativamente certos. Os desenvolvimentos sociais não se fazem por si mesmos, exigem a intervenção da acção. Por outro lado, a acção relaciona-se com condições estruturais preexistentes, enquanto estiver subjacente à sociedade uma dinâmica cega, como é inequivocamente o caso do capitalismo. Por isso, é exactamente nas grandes crises que são procuradas personalidades carismáticas, que possam gerar um ambiente estimulante de despertar. O momento religioso desse mecanismo é inconfundível. As esperanças, desejos e medos ligam-se a um messias político, quando a ruptura de uma era sacode a sociedade. A questão é se o carisma será capaz de suportar o novo ou se apenas dá uma forma de desenvolvimento à catástrofe do velho.
O "Kennedy negro" Barack Obama não representa a suplantação do capitalismo global, mas a sua renovação. Seu carisma não surgiu no contexto de um movimento social com fins emancipatórios, mas como máscara no quadro da empresa mediática e política dominante. Se Obama se tornou depositário da simpatia do mundo inteiro e comove as pessoas nos EUA até às lágrimas, isso ocorre porque ele representa a fé no regresso a um crescimento substancial e regulado pelo Estado, que crie bons postos de trabalho e preserve o ambiente. Representa a fé, ao mesmo tempo, na suplantação de antigas concepções de inimigo, no equilíbrio global do poder e na participação da maioria de cor da humanidade. A força da gravidade destas esperanças é constituída pela classe média mundial que, perante a crise, quer mudar tudo, para que tudo possa ficar fundamentalmente como está. Mas essa fé não moverá montanhas. A ruptura de 1989 levou à transformação do velho capitalismo de Estado no capitalismo financeiro globalizado. Em vez disso, a ruptura de 2008 marca a crise e os limites internos desse sistema mundial em si. Obama se tornará o homem mais poderoso de um mundo que, com toda a probabilidade, não se conseguirá mais transformar a partir de seus próprios fundamentos.
O poder de configuração das relações já é limitado para o 44º Presidente dos EUA, considerando apenas o Orçamento arruinado do Estado. Isso não é, porém, somente a consequência de uma política equivocada da administração Bush, como muitos querem acreditar, mas o resultado de uma crise estrutural profunda do capital mundial. Obama não pode virar bruscamente o leme, mas apenas administrar a dinâmica incontrolável dessa crise. A previsível depressão global irá destruir os precários postos de trabalho do crescimento "financeiramente induzido", em vez de criar novos. Serão atingidos justamente os afro-americanos que ascenderam socialmente nos EUA e a nova classe média na Ásia. E, se o clima for poupado um pouco, isso ocorrerá não devido a acordos políticos finalmente efectivos, mas porque a conjuntura económica baseada no deficit se extinguirá; trata-se de algo semelhante à ruína das indústrias do capitalismo de Estado no bloco oriental durante os anos 1990, que temporariamente diminuiu a emissão global de gases com efeito de estufa.
Também o equilíbrio entre oposições políticas corre o risco de ficar em ponto morto. O fim das guerras de ordenamento mundial no Afeganistão e no Iraque não se anuncia com acordos de paz, mas com a ruína previsível da capacidade de financiamento militar. A retirada da máquina militar americana poderia, portanto, desembocar num desenvolvimento caótico. Do mesmo modo, um entendimento político com os países produtores de petróleo e de gás natural, como a Rússia ou a Venezuela, será inútil se os regimes locais entrarem em colapso, pois, com a queda dos preços da energia, rompe-se a base do seu negócio. Por maioria de razão, um novo balanço do poder na relação com a China pressuporia a continuação do rolo compressor de exportação unilateral sobre o Pacífico. Na verdade, porém, a dependência recíproca se desintegrará assim que o muito provavelmente inevitável inflacionamento do dólar desvalorizar as astronómicas reservas monetárias dos exportadores asiáticos. Um deslocamento complacente das relações de poder político deverá revelar-se ilusório na mesma medida em que as finanças estatais e as moedas de um número crescente de países se tornarem insustentáveis. Já agora, depois da Islândia, também a Hungria, a Ucrânia e de novo a Argentina são consideradas candidatas à bancarrota de Estado. Mais países se seguirão.
Obama assumiu o cargo de chefe global dos bombeiros, mas nem sequer consegue contar os incêndios que vão surgindo, enquanto a água para extingui-los começa a faltar. Fé e amor, vontade e esperança são coisas bonitas quando encontram uma "condição de possibilidade". O sistema mundial do capitalismo financeiro não oferece qualquer fundamento para isso. O entusiasmo global da obamania ameaça virar numa grande decepção. Porém, não se deve responsabilizar por isso uma personalidade cujo carisma assenta em pressupostos falsos. A crise do sistema mundial não é uma novela cujo final feliz pudesse ser encenado mediaticamente. Assim como os EUA são a última potência mundial do capital, talvez também Obama seja o último messias político. A humanidade deveria aprender de novo o que, numa outra constelação histórica, propagava a "Internacional": "Nenhum ser supremo, nenhum César, nem tribuno nos salvará; a nossa libertação da miséria terá de ser obra de nós mesmos"(1). O pathos desaparecido dessa afirmação é bem diferente do pathos da obamania.
Notas de rodapé:
(1) Tradução literal da versão alemã, que segue de perto o original de Eugène Pottier: “Il n'est pas de sauveurs suprêmes / Ni Dieu, ni César, ni tribun, / Producteurs, sauvons-nous nous-mêmes / Décrétons le salut commun". (N. Tr.) (retornar ao texto)