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Com a resistência furiosa mistura-se naturalmente uma má consciência ou pelo menos um pressentimento negativo. A nova teoria radical da crise pôde em todo o caso referir-se ao processo empírico de crise da terceira revolução industrial. Não tendo o discurso sobre a teoria da crise do marxismo residual em sentido estrito sobrevivido à primeira metade dos anos de 1980, a nova crise mundial prosseguiu desde então de facto imparavelmente, já não sendo no entanto categorialmente percebida como tal. Esta situação pode ser formulada como paradoxo histórico: a generalidade da esquerda deixou de se ocupar com a teoria da crise de Marx justamente no momento em que começou o novo processo de crise real.
Responsável por isso foi sobretudo uma grelha de interpretação em que o problema da crise surge apenas sob o ponto de vista da desintegração social e do empobrecimento ou da administração da pobreza crescentemente repressiva, mas não como simultâneo limite interno da lógica da valorização. Pelo contrário, “para o capital” as coisas iriam cada vez melhor através de lucros exorbitantes; no caso das paralisações (repetidamente minimizadas) da acumulação real tratar-se-ia de “habituais processos de recuperação capitalista” (Ebermann/Trampert 1995, 56) que logo se convertem novamente em prosperidade: “Após múltiplas correcções o mercado mundial está novamente em alta. O Instituto IFO afirma mesmo o início de uma fase longa de retoma” (ibidem, 36). Uma afirmação a que se gostaria de aderir.
O mesmo jogo se repete nas conjunturas globais de déficit não reconhecidas como tais no fim dos anos de 1990 e desde 2004. Também a pretensa “crítica do valor anti-alemã” se armou em importante com a afirmação de que “as sentenças categóricas… sobre o colapso do capital a ocorrer seja quando for não têm qualquer fundamento lógico nem histórico (em todo o caso também não empírico, pois o capital está afinal novamente em alta como já há muito não acontecia)…” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 60). Assim pretendiam os aristocráticos críticos da ideologia ver apenas de forma bem grosseiramente ideológica “que atualmente a situação está extraordinariamente boa para o capital tanto substancial (!) como formalmente (!)” (ibidem, 62). É notável como aqui os representantes de uma autoproclamada ortodoxia de Adorno caem no mesmo positivismo vulgar que os notórios politicastros do velho radicalismo de esquerda logo que são postos perante a situação de ter de manter a tensão exigida por Adorno entre teoria e empiria. Pretendem teimosamente contrapor à teoria radical da crise justamente a plausibilidade aparente não mediada de fenómenos superficiais temporários e empíricos.
O facto de neste contexto se afirmar além disso que a situação é “extraordinariamente boa para o capital” não só empiricamente, mas também e sobretudo “substancialmente” — em plena sintonia com o marxismo do movimento operário no seu melhor –sugere ao mesmo tempo a inesgotabilidade do “trabalho”. Neste ponto deve ser observada também a solidariedade com os marxistas políticos conceptualmente fracos que se tinham irritado com “todas as afirmações de que o capital teria terminado a produção suficiente de mais-valia” (ibidem, 31). É justamente neste sentido que deve ser entendido o eco da parte da Nova Leitura de Marx: “A ‘criação real de valor’ que Kurz já vê a desaparecer prossegue em todo o caso alegremente, apesar do desemprego crescente” (Heinrich 2000 a, 41). Também salta à vista implicitamente em tais padrões de argumentação, que são comuns a diversas posições como que espontaneamente, o bloqueio do marxismo residual à crítica radical da ontologia do trabalho tradicional. Neste coro também não podia faltar naturalmente a voz do pós-operaismo. Michael Hardt e Antonio Negri constatam de modo já quase alegremente positivista no seu prestável bestseller mundial Empire: “Agora, enquanto escrevemos este livro e o século XX chega ao fim, o capitalismo está admiravelmente de boa saúde e a acumulação robusta como nunca” (Hardt/Negri 2002, 281).
É notória em tais afirmações aqui aduzidas a título de exemplo, que nos últimos anos têm vindo a perder o acanhamento, a particularidade de que já não argumentam fundamentalmente com base na teoria da acumulação ou apresentam apenas fragmentariamente os correspondentes momentos de reflexão, pelo menos no que respeita à teoria da crise. As categorias de Marx são a este respeito descontextualizadamente maltratadas, enquanto a fundamentação em caso de dúvida apresenta de modo puramente positivista pretensas provas empíricas ou mesmo meras apreciações e previsões dos institutos económicos ou dos porta-vozes da gestão nos média. Com razão é preciso falar das fases de definhamento dos antigos discursos marxistas sobre a teoria da crise, nos quais entra em vez da análise sistemática uma combinação directa de “pontos de vista” irreflectidamente ideológicos com factos superficiais indiscriminadamente colados.
Esta espécie de “apreciações” superficiais encontra-se justamente em Michael Heinrich, não apenas uma vez, mas periodicamente. Também para ele o desenvolvimento dos anos de 1990 e após 2000, juntamente com os momentos aí incluídos de crises financeiras e conjunturais particulares, representa apenas o sobe e desce descontextualizado dos ciclos e mudanças estruturais capitalistas “habituais”. É isto que constitui o seu entendimento fundamental do capitalismo: “Prosperidade e crise alternam-se constantemente no capitalismo, estando por detrás deste sobe e desce tendências de expansão e aprofundamento do capitalismo que estão longe de ter chegado ao fim” (Heinrich 2007).
Assim vê ele também a crise das dotcom após a passagem do século: “Nos anos de 2001 a 2003 tivemos uma crise dessas… No entanto ela está superada, uma vez que os lucros crescem novamente e isto já desde há dois anos” (Heinrich 2006). Também aqui factos empíricos temporários são tomados pelo todo sem o seu contexto de mediação e prevê-se imediatamente: “A economia cresce como há muito não acontecia; o número de desempregados baixa, a colecta de impostos sobe… O que poderá ter efeitos de longo prazo é o crescimento do investimento em bens de equipamento” (ibidem). Um ano depois ele hipostasia quase enfaticamente a conjuntura global baseada no déficit sem perceber o seu carácter precário: “Lucro sem fim. O capitalismo apenas começou” (Heinrich 2007).
Com tais percepções e prognósticos o positivismo de Heinrich vem a si; ele vê apenas uma sucessão de fenómenos em que se alternam a recessão e a retoma, os acontecimentos e as deslocações. Mas para ele não existe a coerência de um determinado desenvolvimento histórico do capital desde o fim da prosperidade fordista, cuja reflexão apenas seria permitida pela ordenação dos fenómenos oscilantes num contexto superior.(19)
Naturalmente que assim não pôde ser compreendida a unidade histórica do processo de crise global da terceira revolução industrial. O contexto interno deste processo resolveu-se, pelo contrário, nos seus fenómenos individuais interpretáveis arbitrariamente (à boa maneira pós-moderna), ou seja, em formas de desenvolvimento percebidas sem conceito histórico. Isto vem de encontro ao senso comum burguês ordinário com o seu horizonte temporal reduzido, para o qual já não é concebível um processo de desenvolvimento que exceda metade da vida de uma pessoa. O que se manteve nos debates da esquerda foi justamente apenas a precarização social, confundida com a pretensa marcha triunfal do capital mundial. Daí que desde os anos de 1990 e pelo menos desde Hartz IV o debilitado paradigma da luta de classes tenha tido um novo boom; no entanto naquelas versões pós-modernas frequentemente contagiadas sobretudo pelo interesse imanente das classes médias ameaçadas pela queda, versões essas que foram trazidas a terreiro justamente contra a nova teoria radical da crise.
O desabar da crise desde o Outono de 2008, fundamental e aparentemente imprevisto, mas que na realidade há muito estava a ser preparado e que confirma na prática a tese de um limite interno histórico mais que anteriormente, foi por assim dizer como um balde de água fria para a esquerda marxista residual e pós-marxista, tal como para as elites capitalistas. Isto aplica-se não em último lugar mais uma vez a Michael Heinrich, que ainda no Verão de 2008 constatava lapidarmente: “Entretanto volta a haver uma nova crise…” (Heinrich 2008), que ele no entanto pretendia interpretar como de costume de forma fenomenologicamente redutora no sentido de que ela tal como as anteriores poderia chegar “ao fim de forma relativamente rápida”; e de facto perfeitamente no sentido dos prognósticos oficiais dos institutos económicos e dos governos, sem consequências profundas, porque segundo a sua afirmação “… esta recessão teve até agora efeitos relativamente diminutos sobre a economia mundial. Embora as previsões de crescimento tenham sido corrigidas em baixa também na Europa e particularmente na Alemanha, a questão é que após a ‘retoma’ dos últimos anos era preciso contar de qualquer maneira com uma queda da conjuntura” (Heinrich 2008).
O modo de pensar positivista simplesmente não estava em posição de perceber que o processo histórico de crise tinha atingido uma nova dimensão, cujas formas de desenvolvimento representam uma ruptura qualitativa; entretanto até mesmo na percepção da própria ciência económica burguesa. Surge assim a uma luz peculiar a afirmação de Heinrich dois anos antes: “(Quem) fantasiou a pura queda, até agora… caiu no ridículo” (Heinrich 2006). Na realidade quem caiu no ridículo foi o próprio Heinrich. Ainda que a nova dimensão da crise não signifique que o capitalismo se desfaça imediatamente no actual horizonte temporal, o que de qualquer maneira ninguém tinha afirmado, as “avaliações” até aqui descontextualizadamente fenomenológicas revelam-se como fantasmagoria positivista, perante o pano de fundo de um movimento diferente do capital suposto “habitual”.
Em todo o caso, pela primeira vez assombra claramente o fantasma de um colapso iminente; e a palavra interdita veio agora penosamente à boca dos chefes intimidados dos institutos económicos, do presidente dos EUA e do ministro das finanças alemão, que desde então se desfazem em esforços de resgate desesperados. Diz tudo o facto de entre as elites do capital se ter espalhado a ideia de que agora os manuais de economia seriam de pouco préstimo. Mas ao que parece a esquerda nas suas diversas correntes pretende que tudo continua a correr às mil maravilhas como habitualmente, como se nada tivesse acontecido. No mínimo deve conceder-se que com todos os juízos cómodos sobre o estado das coisas capitalistas se passou totalmente ao lado da questão e com isso se ficou sem palavras. Ao que parece a esquerda acredita mais no capitalismo do que os seus guardiões oficiais.
Precisamente os representantes de uma crítica do capitalismo pretensamente radical na sua maioria não estão em posição de perceber adequadamente a quebra fundamental. Por um lado, procedem agora como se sempre o tivessem sabido e dito, embora o caso seja precisamente o contrário. Por outro lado, verifica-se que as mesmas pessoas continuam a seguir o seu padrão positivista de interpretação relativamente ao desenvolvimento real e escutam avidamente os sinais de “discurso de fim de alarme” do lado das instituições oficiais, a fim de salvarem o seu entendimento de uma “normalidade” ininterrupta do processo de valorização. Fora da observação positivista fica o facto de se tratar de um processo de crise qualitativamente novo que entrou numa fase irreversível. Embora devesse ser claro que os pacotes de resgate apenas poderão adiar o problema e que após um período transitório (por exemplo, uma estabilização de curto prazo com apoio do crédito público e a perspectiva de uma conjuntura económica de inflacção) o limite interno atingido terá de se erguer de modo tanto mais violento, os crentes aproveitam a ocasião de qualquer oscilação ou abrandamento temporários para se sentirem mais uma vez confirmados. A esquerda simplesmente não quer ver que o seu bom e velho capitalismo está a esbarrar em limites absolutos. O que levanta a questão das barreiras ideológicas por isso responsáveis.
Notas de rodapé:
(19) No seu debate com a teoria radical da crise em 1999/2000, Heinrich queixa-se da insinuação de que ele “… argumentaria positivistamente, aduziria objecções tipicamente positivistas, teria transformado Marx num economista positivista etc. O positivismo fora inicialmente uma orientação epistemológica que pretendia partir apenas dos complexos de percepção imediatamente ‘dados’. No seguimento da chamada ‘polémica do positivismo na sociologia’ o positivismo foi transformado no mainstream da esquerda num insulto em grande parte sem conteúdo, com que se atacava indiscriminadamente não só a ciência ‘burguesa’ mas também se gostava de atacar as interpretações do marxismo que se afastavam da própria” (Heinrich 2000). O seu adversário de então, Norbert Trenkle (hoje representante da crítica do valor redutora e “aberta” para todos os lados da Krisis residual), não estava de facto em posição de chamar concretamente pelo nome o positivismo de Heinrich. Mas esse positivismo consiste justamente no facto de, para Heinrich, as categorias abstractas do capital e as suas manifestações empíricas se confrontarem de modo meramente exterior; estas últimas dissolvem-se então, para usar as suas próprias palavras, em “dados imediatos” de “complexos de percepção” empíricos; justamente num sobe e desce entendido como cíclico em falsa imediatidade ou em rupturas estruturais passageiras, cujo contexto como processo sobrejacente em desenvolvimento deixa de ser visto. A diferença entre “crise cíclica” e “crise geral” é indicada na sua Ciência do Valor de modo meramente abstracto (Heinrich 2003, 334 sg.) e igualmente subsumida na mera irregularidade dos fenómenos aparentes separados da essência (sobre isto ver a discussão mais detalhada nos capítulos 10, 12, 13 e 20). De seguida ainda vamos encontrar frequentemente em Heinrich este pensamento positivista completamente preso ao concreto no contexto da filologia de Marx, o qual, para não dizer pior, limita a sua capacidade de previsão e não só. O que também tem algo a ver com o facto de esse pensamento, ao contrário do caso de Reichelt e Backhaus, provir não de Adorno, mas sobretudo de Althusser e do seu conceito positivista de ciência, no qual a problemática do fetiche não por acaso foi suprimida. (retornar ao texto)