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A velha palavra-estímulo da “teoria do colapso”, que há muito estaria ultrapassada, foi repetidamente recuperada nas polémicas com o conceito de crise da crítica da dissociação e do valor, como se assim o assunto já ficasse per se resolvido. Fazem de conta que nesta matéria já nem sequer é necessário dar-se ao trabalho de fornecer qualquer fundamentação referente a conteúdos.(20) Tudo indica que a maior parte dos que se vangloriam desta certeza já apenas conhece as abordagens históricas da chamada teoria do colapso de ouvir falar, se tanto; e é pelos vistos nesta cartada que também apostam os que pretendem instrumentalizar este preconceito não abalizado, embora devessem saber melhor.
O termo “teoria do colapso” é naturalmente uma atribuição vinda de fora, enquanto o conceito originalmente utilizado por Marx de “limite interno” em última instância absoluto, que começa a manifestar-se na prática desde o fim do século XX, corresponde muito melhor à reflexão sobre a teoria da crise baseada na crítica da dissociação e do valor e também no seu auto-entendimento assim é formulado na maior parte das vezes. Entretanto a metáfora do “colapso”, esgrimida de forma pejorativa pelos seus detractores, foi aceite pelos representantes desta elaboração teórica com alguma indiferença e oportunamente ilustrada com a imagem de um “colapso”(21) e mesmo com uma vénia irónica perante a resistência assanhada por parte de todos os campos residuais do marxismo. O entendimento vulgar sugere que o “colapso” tem de ocorrer de um modo tão instantâneo como um indivíduo cai morto imediatamente ao sofrer um enfarte grave do miocárdio. Para nos atermos à imagem: um sistema social global que se formou e desenvolveu ao longo de mais de 200 anos certamente terá um colapso diferente do de um indivíduo; é outro o lapso de tempo até que o sujeito global da valorização, por assim dizer, caia no chão. Tal como o capitalismo percorreu nos primórdios da Modernidade uma época de constituição rica em rupturas e convulsões, agora está a percorrer uma época de dissolução interna que, no entanto, devido à sua dinâmica progressiva no plano endo-histórico, tem um horizonte temporal muito mais reduzido; mas este continua a ser de certo modo histórico. À ascensão lenta e dolorosa corresponde, por isso, uma derrocada relativamente rápida, ainda que esta não se apresente necessariamente enquanto tal à percepção imediata do mundo da vida.
É precisamente isso que perfaz a diferença, no âmbito da nova culminação da crise, entre o tempo actual ou individual e o tempo histórico. Embora uma parte considerável da esquerda se tenha entendido no sentido da existência da possibilidade de uma vida eterna do capitalismo “em si” e assim estenda o seu horizonte temporal histórico arbitrariamente, para a teoria de um limite interno tornado actual em termos históricos o quadro temporal do mesmo coincide com a primeira metade do século XXI (um espaço de tempo curto quando comparado com a totalidade da história interna desta formação) sem que haja porventura a necessidade de indicar uma data precisa. Neste sentido, o tempo histórico do capitalismo esgotou-se. Se a teoria radical da crise se confirmar na prática, para os historiadores do futuro (se então ainda existirem) o alcançar do limite interno contrair-se-á de facto a uma cesura que, no tempo histórico, se apresenta, por assim dizer, como um ponto, embora possa abranger toda uma geração humana. Da perspectiva da realidade da vida contemporânea, porém, pode parecer tratar-se de um processo temporalmente indefinido ou mesmo ilimitado que também poderia ser interpretado de modo completamente diferente. Reduzir a metáfora do “colapso” ao horizonte de percepção actual é claramente um elemento da táctica discursiva dos oponentes da teoria radical da crise, mesmo que estes nem sempre devam ter plena consciência disso.(22)
Abstraindo da problemática da metáfora, a teoria do limite interno historicamente alcançado é boicotada antes de qualquer fundamentação em virtude do seu conteúdo, sobretudo pelo expediente de a associar sem mais delongas e de modo puramente exterior às teorias históricas do colapso próprias do marxismo do movimento operário; e, na maior parte dos casos, até sem se dar ao trabalho de designar estas pelo nome (não existiram outras senão as formuladas por Luxemburgo e Grossmann, muito tempo após a controvérsia originalmente encenada por Bernstein). Assim se escamoteiam as diferenças decisivas na derivação teórica. As velhas abordagens de uma chamada teoria do colapso fracassaram precisamente porque pretendiam ver o possível limite histórico apenas nas formas de mediação na circulação, ou na falta de rendimento da classe capitalista, mas não no desaparecimento da própria substância do trabalho “válida” imposto pelo nível da produtividade. No terreno da ontologia do trabalho do marxismo tradicional esta fundamentação mais aprofundada não era de facto possível; e isso tinha também um momento de condicionalidade no processo de desenvolvimento do próprio capital, cujas possibilidades de valorização da energia humana abstracta ainda não estavam esgotadas.
Mas o traço característico da nova teoria radical da crise consiste na ruptura com a ontologia do trabalho, sob o efeito do esgotamento amadurecido destas possibilidades, esgotamento este que apenas ele torna possível a teoria concretizada de um limite interno no sentido da “dessubstanciação do capital” ou da “desvalorização do valor”. Enquanto, por um lado, este contexto é hoje negado positivistamente de modo meramente empírico, como vimos acima, por outro lado, coloca-se contrafactualmente a conceptualidade de um esgotamento sucessivo da substância do trabalho no quadro das velhas teorias do colapso que não sabiam nada disso.(23) O termo “colapso” é assim mitologizado com referência à história das teorias para nem sequer ter de admitir a diferença fundamental entre as formulações anteriores sobre o tema e a nova teoria da crise da crítica da dissociação-valor.
Esta mitologização prolonga-se na avaliação da importância supostamente elevada de concepções de um “colapso” em todo o marxismo tradicional. Michael Heinrich dá cartas a este respeito: “Na história do movimento operário, foi muito divulgada a concepção segundo a qual as crises económicas acabariam por conduzir ao colapso do capitalismo e o capitalismo estaria encaminhado para a sua ‘crise final’. D’ O Capital foi depreendida uma ‘teoria marxiana do colapso’. Nos anos noventa do século passado, esta vetusta ideia foi reavivada... sobretudo por Robert Kurz” (Heinrich 2004, p. 176). Esta atribuição é completamente contrafactual e vira do avesso o estado de coisas teórico-histórico que se apresenta precisamente da forma inversa: a expressão “teoria do colapso” foi na verdade uma invenção pejorativa de Eduard Bernstein, com a qual pretendia comprometer os seus adversários no seio da social-democracia que, com bons motivos devidos ao seu próprio posicionamento ideológico, se opunham a isso violentamente e nada queriam ter a ver com essa designação.
Michael Heinrich não é o único a ignorar com toda a consciência o facto de as posteriores teorias redutoras do colapso de Luxemburgo e de Grossmann terem sido absolutamente minoritárias e terem sido rejeitadas pelo marxismo tradicional, tanto social-democrata como leninista e, não em último lugar, pelas correntes de extrema-esquerda daquele tempo, e de uma forma tão veemente e genérica como é rejeitada hoje em dia a nova teoria da crise por todo o conjunto do marxismo residual e do pós-marxismo. A única forma como a “ideia de um colapso” estava “muito divulgada” no antigo movimento operário era precisamente como conceito negativo da luta contra essa mesma “ideia”. Isto ressalta também de uma formulação de Anton Pannekoek que, no final da crítica das teorias minoritárias do colapso de Luxemburgo e Grossmann, escreve contra estas num tom inequívoco: “É, então, aqui que ocorre aquilo que na literatura marxista mais antiga sempre foi tratado como um estúpido mal-entendido dos adversários e para o que se usava o nome de ‘a grande algazarra’” (Pannekoek 1971/1934, p. 28). O que, em Heinrich, aparece como um consenso supostamente abrangente na “história do movimento operário” na realidade figurava na mesma maioritariamente como um “estúpido mal-entendido dos adversários”. Paul M. Sweezy, na sua Teoria do desenvolvimento capitalista que nos anos cinquenta e sessenta do século XX teve várias edições americanas e alemãs, forneceu em retrospectiva uma caracterização muito similar quanto a este ponto da por ele chamada “controvérsia do colapso”: “No movimento socialista alemão, o medo da revolução tinha-se tornado tão característico dos ‘ortodoxos’ como dos revisionistas... Para esse fim era necessária… uma teoria que fosse capaz de garantir a estabilidade do capitalismo. Por isso, todas as teorias do colapso tinham de ser combatidas...” (Sweezy 1970/1942, p. 244).
É absolutamente impossível que Heinrich não saiba de tudo isto. Pelos vistos está apostado em que a sua atribuição errónea seja bem recebida nas faunas de esquerda, por falta de conhecimento da história das teorias e das controvérsias, para assim poder desqualificar a nova elaboração teórica, crítica da dissociação e do valor, como sendo ela própria “marxista do movimento operário”. Esta tentativa volta a cair-lhe em cima como um bumerangue, pois é ele próprio que reproduz coerentemente a postura do movimento operário e do marxismo de partido tradicional de rejeição fundamental da “ideia de um colapso” e assim traz involuntariamente à evidência as pegadas que segue neste aspecto.
Notas de rodapé:
(20) Pelo menos neste ponto, o último professor emérito de esquerda e o último estudante de esquerda estão de acordo com a famigerada Sociedade Mont Pèlerin, uma mafia ideológica em que se congregou a nata do neoliberalismo. Na sua última conferência em Nova Iorque, já no meio do crash global dos mercados, este ajuntamento académico-político, agora caído no ridículo, deu provas inconscientes de coincidência com a esquerda comum, não menos aflita com a crise: “Será esta agora a crise definitiva do capitalismo? — perguntou um dos participantes, para logo ele próprio dar a resposta: não. Antonio Martino, antigo ministro italiano dos negócios estrangeiros e da defesa, sublinhou esta atitude dizendo que já Karl Marx tinha vaticinado o colapso iminente do capitalismo, estando enganado nesta matéria há cento e cinquenta anos, contrastando, por exemplo, com o prognóstico de vários liberais que já por volta do ano de 1980 tinham previsto o fim da União Soviética e a viragem da China para a economia de mercado...” (Neue Zürcher Zeitung, 9.4.2009). No entanto, a esquerda está na dianteira em termos de ignorância, na medida em que nem sequer pressentiu o primeiro acto do fim de uma época e até hoje não o compreendeu. (retornar ao texto)
(21) O colapso da modernização (Kurz 1991) foi o título de um livro que, da perspectiva da nova teoria da crise, colocava o colapso de facto ocorrido do “socialismo real” no contexto de uma crise geral do mercado mundial ainda iminnente. Mas a esquerda mainstream politiqueiramente anquilosada simplesmente não soube nem quis pegar no quadro teórico da crise assim delineado. Na verdade, perante os factos puros e simples, falava-se pela rama (mesmo no discurso burguês oficial) de um “colapso” do sistema reputado de contrário que, no entanto, era imputado a causas notoriamente subjectivas (defeitos da economia planificada pela burocracia de Estado). Tal não devia aplicar-se em caso algum ao capitalismo mundial, visto que se fazia sistematicamente vista grossa do seu nexo interno com a “modernização atrasada” do Leste. (retornar ao texto)
(22) Numa atitude que, a bem dizer, é de fuga para a frente, a falsa imediatidade temporal é invertida e voltada contra a teoria radical da crise, por exemplo pela mistificadora ideologia “anti-alemã”: “Nem sequer pretendemos pôr em causa a eventualidade de o colapso poder ocorrer, talvez mesmo já para a semana (!) — mas o juízo categorial de que está para ocorrer no tempo mais próximo (ou noutro qualquer)... não está coberto por absolutamente nada” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, p. 81). Na medida em que o possível “colapso” aqui não só é, por assim dizer, reduzido a um acontecimento histórico quotidiano, mas é entregue à responsabilidade de uma contingência absoluta, pensam-se libertados de qualquer necessidade de uma fundamentação no âmbito da teoria da acumulação. Esta mistificação é devida à invocação enfática pelos “anti-alemães” da razão iluminista, em cujas categorias permanece realmente impensável um limite interno determinável em termos históricos das suas próprias bases sociais. (retornar ao texto)
(23) Para Ingo Stützle, como representante do marxismo residual de Berlim, a teoria radical da crise vai dar “... à afirmação absurda de que o marxismo do movimento operário não poderia ter querido nenhuma teoria da crise ‘como deve ser’, visto que esta teria posto em causa a identidade ‘das operárias e dos operários’. Este facto realça uma vez mais a dificuldade em clarificar o que a teoria da crise de Kurz tem de particular ou de ainda encontrar alguma forma de a levar a sério” (Stützle 2001). É evidente o que é “absurdo” para Stützle: foi a identificação dos representantes do marxismo do movimento operário com o “trabalho”, não reconhecido como categoria funcional e substância do capital, mas ontologizado, que impediu que a dimensão da teoria da crise de Marx referida a uma redução absoluta da substância do trabalho “válida” em termos capitalistas pudesse ter sido tornada fértil; isto sem falar do facto de que esta qualidade da dinâmica capitalista pura e simplesmente ainda não tinha sido alcançada em termos históricos. Se, para Stützle, permanece incompreensível a diferença decisiva entre uma teoria da crise assente na ontologia do trabalho e outra que critica a ontologia do trabalho, é problema seu. (retornar ao texto)