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A mitologização da teoria do colapso corresponde à tentativa a ela associada de conferir mais uma vez à tese do limite interno absoluto a reputação de simplesmente irracional, antes de qualquer discussão baseada nos conteúdos. A afirmação de que a polémica sobre a teoria da crise não passa de “questões de fé” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 55) não só se furta à capacidade de fundamentação, mas também leva necessariamente a uma classificação do problema em geral no domínio do quase religioso.(24) Logo que a argumentação da teoria da acumulação e da crise ultrapassa o limite da dor do marxismo vulgar, esta tem de ser posta de lado como suposta “profecia” ou “fantasia de fim do mundo”, ultrapassando a possível contra-argumentação. Este deslocamento é na prática apropriado para compensar a própria insuficiência na análise teórica e apelar ao sentimento pré-teórico.
Também a este respeito não se pode deixar de fazer uma antologia. Já no início dos anos de 1990 a revista Gegenstandpunkt tentou aproximar O colapso da modernização da metafísica da história de Spengler. Segundo essas reflexões ele seria como “A decadência do ocidente — para a esquerda” (Gegenstandpunkt 1992). Três anos depois os marxistas da política lançam mais uma acha na fogueira. A teoria radical da crise não passaria do “fim apocalíptico do capitalismo mundial já há muito fantasiado” ((Ebermann/Trampert 1995, 51) e de uma ideia correspondente ao pensamento das seitas religiosas: “Com a profecia do colapso iminente do sistema capitalista mundial, por lhe faltar o trabalho produtor de mais-valia, Robert Kurz já se aproxima mesmo das testemunhas de Jeová” (ibidem).
Cinco anos depois também Michael Heinrich retoma prazenteiramente esta desqualificação apriorística da teoria de um limite interno absoluto da crítica da dissociação-valor como suposta “profecia”, na sua acerba crítica ao Schwarzbuch Kapitalismus [O livro negro do capitalismo]: “Para Robert Kurz a exposição histórica é… apenas um veículo para apresentar novamente a sua profecia do próximo colapso do sistema capitalista, incansavelmente repetida há dez anos…” (ibidem). Simultaneamente com Heinrich também um crítico do lado liberal se permitiu ver no “Livro Negro” um “quadro monumental dos cavaleiros do apocalipse do capitalismo” (Leuschner 2000).
Pelo mesmo diapasão afina também dois anos mais tarde o corifeu da revista Argument, Wolfgang Fritz Haug: “Assim alinha Kurz entre os santos dos últimos dias mais uma vez vêem uma oportunidade que no nosso tempo conturbado. Nada menos que o apocalipse” (Haug 2000, 90). Um ano depois os discípulos académicos de Heinrich estavam finalmente tão qualificados que podiam reproduzir fervorosamente a opinião preconcebida sobre o “cenário simplista da decadência” e o “apocalipse iminente” (Euskirchen/Lebuhn 2003) em Robert Kurz. E ainda no primeiro semestre de 2008/2009 o seguidor de Silvio Gesell, Prof. Gerhard Senft, apresentou na Wirtschaftuniversitat de Viena um seminário com o título “O desejo da decadência. Pessimismo cultural na história da modernidade” em cuja bibliografia se inclui também O colapso da modernização de Robert Kurz ao lado de Schopenhauer, Nietsche, Spengler e Huntington.
Por pouco que se possam ver entre si no restante, os santos da eterna capacidade do capital para se auto-renovar e da “modernização” que prossegue eternamente, copiam-se uns aos outros a ritmo anual(25) na onda contra a teoria radical da crise, para em pose de crítica iluminista da religião clamarem pela proscrição da “profecia do fim dos tempos” (Haug) desta desagradável elaboração teórica. A reformulação da crítica da economia política de Marx, incompatível com o seu próprio entendimento identitário, tem de ser forçosamente subsumida na tradição religiosa milenar do quiliasmo ou milenarismo segundo o padrão do apocalipse de João, a fim de rejeitar a exigência teórica(26).
Não pode deixar de se referir que o tom de tais atribuições denunciatórias subiu depois do último desabar da crise. O moderado realismo académico de esquerda, que se dá por esclarecido e considera todos os outros inferiores, teve de elevar a dose da contra-indicação emocional, a fim de manter afastada do discurso “científico” a teoria radical da crise, como absolutamente indigna de ser discutida: “A… imagem … do colapso pode ser feita recuar na história a muitas velhas imagens: dilúvio, Sodoma e Gomorra e o apocalipse e o reino de Deus que só pode chegar após uma ruína geral acompanhada dum grande ajuste de contas. A sua forma burguesa foi levada a cena em O Crepúsculo dos Deuses por Richard Wagner, o revolucionário falhado de 1848: já não é a fúria do Senhor que põe fim à humanidade corrompida, fim após o qual é possível um novo começo, mas são os dominantes que o provocam, ao não se entenderem com as suas leis. Em todo o caso mantém-se em geral uma aniquilação fundamental, possivelmente com o mundo em chamas. Depois disso uma outra raça ‘pura’, sem culpa, pode construir um mundo novo. Não admira que os nazis tenham podido começar tanta coisa com Wagner, desde Rienzi até ao Anel. Em Marx não se encontram fantasias destas” (Resch/Steinert 2009, 269).
Em termos de conteúdo isto já não pode ser levado a sério, se uma fundamentação na teoria da acumulação ligada à teoria de Marx é assim etiquetada como ciência pseudo-religiosa de modo arbitrário com cadeias de associações selvagens e subsumida na linha da tradição das irracionais ideologias de aniquilação modernas. De notar também que Resch/Steinert nunca chamam pelo nome a teoria da crise assim examinada, como fantasma no abismo da história das ideias, mas pretendem apresentar a “imagem” do “colapso” numa generalização sem contornos, como manifestação da opção wagneriana pelo “mundo em chamas” na esquerda radical dos últimos 100 anos. A perfídia de tais visões de fantasmas vai ao ponto de nesta cadeia associativa considerar tacitamente a “teórica do colapso” Rosa Luxemburgo como precursora dos nazis. Ela tem mesmo de ser sempre de novo espancada até à morte pelos cúmplices social-democratas. A que ideia de via oficial parlamentar-sindical para a negociação confortável da contratação social, na verdade há muito obsoleta, se deve esta invectiva, sobre isso Resch/Steinert também não deixam qualquer dúvida. Para eles a “imagem” de Marx “do ‘revolucionamento’, ou seja (!), da lenta alteração profunda da sociedade que produz gradualmente (!) os elementos de um novo modo de produção” dá-se mal de todo “com o apocalipse e o crepúsculo dos deuses” (ibidem, 269). Só que, com ele já sempre lento e gradual, assim estamos a reconhecer o capitalismo como belo ónibus da história, ou não será? Em Marx, de facto, o “revolucionamento” soa um pouco diferente, tanto no que respeita à dinâmica capitalista objectiva como no que respeita à crítica prática.
No fundo, a projecção dum “apocalipse” e de “fantasias do fim do mundo” etc. quase religiosas sobre o contexto de fundamentação da teoria radical da crise é traiçoeira. Na realidade esta fantasia reside inteiramente no lado dos opositores: eles é que precisam de entender o limite interno absoluto determinado conceptual e analiticamente do modo capitalista de produção e de vida historicamente limitado como “fim do mundo” simplesmente, tal como os defensores oficiais desta ordem, porque este mundo afinal também é o mundo deles e eles não conseguem nem querem ir além dele. Por isso, também para eles a crítica categorial é para abandonar a favor do que interessa (ver sobre isso com mais detalhe cap. 28). Depois do capitalismo, aliás, patriarcado moderno produtor de mercadorias e do seu contexto formal de socialização negativa, não pode nem deve vir nada de diferente, pois qualquer alternativa à partida só pode e “está autorizada” a ser pensada nestas formas basilares ou nas suas meras sub-rogações. Como se deve descrever tal atitude senão como uma “questão de fé”? Mesmo antes de formularem as suas próprias fundamentações teóricas, estes realistas presunçosamente “esclarecidos” sobre a situação já manifestaram a sua própria fé relativamente à possível eternização deste seu mundo. Eles é que provam ter um irracional “medo do apocalipse” pré-teórico perante a fundamentação teórica de um limite interno histórico do capital, porque a sua consciência está presa nas formas fetichistas.(27)
Notas de rodapé:
(24) O que naturalmente já não tem absolutamente nada a ver com Marx, cuja obra no seu conjunto estaria assim longe de se ter ocupado com tais “questões de fé” insignificantes. À falta de fundamentação dos ideólogos “anti-alemães” corresponde o facto de esta ruptura não ser nomeada ou sequer referida; tal e qual como se essa afirmação correspondesse com a mais elevada autenticidade à crítica da economia política. (retornar ao texto)
(25) Tirei aqui ao acaso apenas algumas afirmações destacadas deste tipo a título de exemplo; semelhantes ataques baratos surgem nos últimos 15 anos transversalmente a todo o espectro da esquerda com uma frequência cansativa e aparentemente gozam de grande popularidade num empreendedorismo de círculo que não quer perder a sua pátria da ideologia da modernização. (retornar ao texto)
(26) O que é simplesmente atribuído à análise conceptual da teoria radical da crise pelos teóricos do marxismo residual e do pós-marxismo ecoa-lhes entretanto como estranho eco dos protestos contra a cimeira da crise dos agentes estatais. Assim se diz numa reportagem sobre a cimeira do G-20 em Londres no princípio de Abril de 2009: “À medida que a primeira fila do protesto avança pela Princes Street os manifestantes gritam atrás duma figura vermelha dum cavaleiro do apocalipse: ‘Eliminem o dinheiro’…” (Handelsblatt, 02.04.2009). (retornar ao texto)
(27) Uma tematização por vezes involuntariamente cómica do problema é apresentada pelo velho militante de 68, Lutz von Werder, antes um esforçado defensor da “educação anti-autoritária” e entretanto convertido a uma espécie de espiritualismo (“Como encontrar a minha própria religião?”). Numa “Crítica da consciência apocalíptica” ele aconselha contra o “medo profundo”, além de “terapia da luz” bem como “treino de gestão do medo”, também medicamentos como “benzodiazepinas, beta-bloqueadores, inibidores da monoaminoxidase, neurolépticos” etc. (ver Werder 2009, 394). Talvez os porta-vozes do marxismo residual e do pós-marxismo devessem experimentar esta medicação quando tentados a olhar para os abismos da teoria radical da crise. (retornar ao texto)