Crise e Crítica
O limite interno do capital e as fases do definhamento do marxismo. Um fragmento.

Robert Kurz


6. Será o capitalismo criticável apenas por falta de funcionalidade?


A retórica de uma intervenção sem conteúdo, que pretende atribuir alguma coisa ao adversário antes de se ter colocado sequer no terreno da sua fundamentação, continua imputando à teoria radical da crise que ela vai dar em não se criticar o capitalismo “em si”, mas apenas se lhe censurar a sua falta de funcionalidade. Já aqui se dá a entender que a relação entre crise e crítica constitui um problema central também para as fases de definhamento da discussão do marxismo residual e do pós-marxismo em torno da inacabada teoria da crise de Marx, discussão à qual, no entanto, se querem apenas furtar. As invectivas sobre o tema tentam separar o capitalismo como tal do seu potencial de crise e tirar proveito disso denunciatoriamente. Assim perguntam retoricamente os ideólogos “anti-alemães”: “Seria o capitalismo uma coisa racional se não tivesse as suas dificuldades de valorização…?” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 105). Naturalmente que ninguém afirma que o capitalismo sem crise seria uma “coisa racional”; esta suposta implicação é uma pura invenção, a fim de não ter de se envolver na argumentação da teoria da crise rejeitada ou para atribuir-lhe um odor de falta de radicalidade.

Tal saltar para outro plano encontra-se também em Michael Heinrich. Assim afirma ele “que Kurz, apesar da mais furiosa demarcação do ‘marxismo do movimento operário’, reproduz alguns dos seus elementos centrais: assim, por exemplo... uma crítica moralista do capitalismo (o capitalismo é medido pelos objectivos que ele de modo nenhum tem, por exemplo, quando se constata o ‘fracasso’ do capitalismo por ele produzir desemprego e miséria)” (Heinrich 2000, 1). Ora, por um lado, a crítica da dissociação-valor de modo nenhum avalia o capitalismo pelos objetivos que ele não tem, acontece é que um aspecto da argumentação consiste em assinalar o fracasso da ideologia em curso desde Adam Smith sobre o carácter do capitalismo como “aumento do bem-estar geral”, ideologia que há mais de duzentos anos se tornou cada vez mais popular e que é debitada tanto pelas ciências sociais e históricas como pelos historiadores académicos. Trata-se, portanto, de uma intervenção de crítica da ideologia,tanto em relação à história capitalista como em relação à propaganda neoliberal desde o colapso do socialismo real.

Esta argumentação de crítica da ideologia fundamenta-se justamente no facto de o capitalismo não ter por objectivo o aumento do bem-estar, mas apenas a valorização do valor; ou seja, a produção de uma mera “riqueza abstracta” (Marx) como fim em si, enquanto a satisfação das necessidades materiais e sociais poderá ser na melhor das hipóteses um subproduto da lógica da valorização e também por isso é repetidamente negada na prática — e de modo nenhum apenas na crise. A crítica do marxismo do movimento operário a estes fenómenos desliza sobretudo para o moralismo, porque toma por última causa o desejo subjectivo de domínio da classe capitalista e ignora notoriamente o carácter fetichista do fim em si da máquina social capitalista e das suas determinações categoriais (ver caps. 8 e 9). Em contraposição a isto, na elaboração teórica da crítica da dissociação-valor desde o início que foi fundamentalmente rejeitado o “discurso da justiça” moral até hoje dominante.

Não é só Heinrich que coloca este verdadeiro contexto da argumentação de pernas para o ar, por razões óbvias. Também Ingo Stützle se compraz na mesma atribuição contrafactual: “A fonte a partir da qual Kurz alimenta a sua crítica é um critério normativo que é aplicado à realidade social, sendo a discrepância entre ‘ser’ e ‘dever’ contraposta repreensivamente ao capitalismo. Os fenómenos denunciados por Kurz como a pobreza, a fome, a destruição da natureza, no entanto, não são mais que a expressão da dinâmica do modo de produção capitalista. Robert Kurz está prisioneiro de uma autoconfiança burguesa de constituição idealista, que pretende poder modificar as realidades sociais com um ideal normativo” (Stützle 2001). Também neste ponto de uma falsa atribuição denunciatória os opositores da teoria radical da crise se copiam uns aos outros para ganharem “autoconfiança”.

Desemprego estrutural de massas, subemprego global, empobrecimento e miséria naturalmente que não devem ser criticados dum ponto de vista ético abstracto, como uma fasquia exterior. O discurso da ética leva sempre a esconder o complexo causal do contexto formal e funcional capitalista e a deslocar o problema para um bom ou mau comportamento social individual e subjectivo dos funcionários. A crise não é então entendida como limite interno temporário ou absoluto da lógica da valorização, mas sim reduzida a deficiências morais pessoais, ou a “má gestão” etc. Independentemente da actualização do potencial de crise imanente, a repressão e exclusão sociais já pertencem sempre à relação de capital e portanto de concorrência. Para Marx a análise dos mecanismos capitalistas já era per se “crítica através da exposição”. Isso implica que a negação do desaforo fundamental não precisa de qualquer “ética” exterior, sendo pelo contrário inquestionável em si, porque o carácter negativo de uma produção social de miséria não carece de fundamentação extra e por isso a relação de capital surgida em processos históricos cegos não tem qualquer razão justificativa em torno da qual se devesse regatear.(3)

Por outro lado, a fundamentação específica da teoria da crise de modo nenhum consiste numa referência geral ao “desemprego e miséria” que o capitalismo produziu sempre e não apenas nas grandes crises. Consiste, sim, no facto de na terceira revolução industrial, para lá do conceito de Marx do “exército de reserva” que aumenta e diminui ciclicamente, se ter constituído à escala mundial uma base qualitativamente nova de desemprego e subemprego em massa, que aumenta independentemente dos ciclos. Isto é interpretado, com referência ao conceito de substância de Marx, como um indício do limite histórico interno do movimento de valorização.(4) Não tem nada a ver com uma crítica moralizadora; trata-se apenas de uma determinação da teoria da acumulação e da crise. Heinrich e outros teriam de aduzir neste plano, relativamente ao conceito de mero “exército de reserva”, uma contra-argumentação fundamentada, em vez de irem para a denúncia retórica. É um simples facto que o desemprego estrutural global vai de par com processos de empobrecimento e miséria fenomenologicamente semelhantes aos do capitalismo inicial, mas situados num nível completamente diferente do desenvolvimento capitalista; só que não é a referência a essa facticidade que constitui a fundamentação da teoria da crise.

Se, portanto, a nova qualidade do desemprego em massa e do subemprego, para lá do simples “exército de reserva” habitual, é incluída na argumentação da teoria radical da crise, não é por razões ético-morais, mas sim por razões da teoria da crise. A falta de “emprego” global, por causa do nível de produtividade atingido na imanência, conduz à falta de “capacidade de exploração” do capital, e portanto à falta de produção de mais-valia real e com isso à falta de poder de compra no conjunto da sociedade. Para a reprodução sempre alargada do capital desenvolve-se assim aquele limite interno que, finalmente, após um período de incubação condicionado pelos ciclos de retorno (e pelos processos de simulação do capital financeiro), acaba por se manifestar na superfície do mercado como quebra das vendas. Situação em que a restrição do poder de compra social para lá de uma determinada medida, que o marxismo vulgar percebe como mera pobreza de massas a favor do capital, torna-se num problema da própria valorização.

A finalidade do capital não é a satisfação das necessidades, através da produção de “riqueza concreta”, mas sim o fim em si da valorização, a produção de “riqueza abstracta”. Todavia, a existência física dos seres humanos e a reprodução material da sociedade constituem simultaneamente uma condição de possibilidade (ainda que permanentemente manobrada de forma restritiva) deste fim em si; esta reprodução material é o “suporte” necessário da valorização, a abstracção do valor não passa sem a “encarnação” nos corpos reais das mercadorias e, nessa medida, o aspecto abstracto e o aspecto concreto, físico já se limitam e condicionam sempre reciprocamente na “abstracção real” do capital.

Assim, é um perfeito disparate o que os ideólogos “anti-alemães” (que aqui se limitam a representar o marxismo vulgar do costume) afirmam: “Quanto mais profunda, drástica e catastrófica é a miséria que ele (o capitalismo, R. K.) produz — tanto melhor funciona o capital, tanto melhor ele faz jus ao seu conceito” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 106). Isso seria assim se a “miséria catastrófica” constituísse a finalidade imediata e subjectiva do capital (tal pensamento constitui, ele próprio, aquele raciocínio aconceptual, superficialmente moral que é simplesmente imputado à crítica da dissociação-valor). Mas a finalidade imediata consiste no fim em si da valorização, sendo completamente indiferente a quantidade de miséria ou do chamado “bem-estar” que daí deriva como subproduto. O capital funciona tanto melhor quanto mais ele consegue extorquir socialmente mais-valia e realizá-la; e funciona tanto pior quanto menos o consegue. A miséria só lhe é útil se estiver associada ao aumento do espremer do material humano; e não lhe serve de nada ou torna-se na sua própria ruína se resultar do facto de este espremer já não ser conseguido ele próprio suficientemente, por caírem fora da reprodução demasiados “supérfluos” que nem produzem mais-valia nem a realizam através da compra de mercadorias.  

Entre o fim em si fetichista e a miséria há portanto um nexo, mas não qualquer identidade imediata, como uma espécie de reciprocidade quantitativa (quanto mais miséria, mais valor). Pelo contrário, o capital, como relação social, até um certo grau tem de reproduzir a sociedade segundo os seus critérios e sob o ditame dos seus desaforos fundamentais, para “fazer jus ao seu conceito”. Quando a queda do poder de compra, sistemicamente condicionada por falta de suficiente produção alargada de mais-valia, ultrapassa o limite de dor, cai a própria reprodução alargada do capital sistemicamente necessária (ver sobre isto Kurz 2009). Os opositores da teoria radical da crise, ao reinterpretarem este argumento como um argumento “moral”, simplesmente se furtam a fundamentar o seu próprio postulado de que a produção de mais-valia real poderia continuar desenfreada sob as condições da terceira revolução industrial.

O próprio Heinrich, no fim da sua introdução à crítica da economia política, cai embaraçosamente no preciso contexto de fundamentação em curto-circuito e sobretudo moralizador que ele imputa simplesmente à teoria radical da crise. Para ele “as destruições sociais que o capitalismo global causa… através de crises e desemprego” (Heinrich 2004, 221), a “destruição das bases naturais da vida” (ibidem), bem como as guerras sempre novas são no caso “razões suficientemente boas para abolir o capitalismo” (ibidem). Isto pode ser dito assim não se separando o capitalismo dos seus efeitos, nem o seu contexto funcional do seu potencial de crise. Naturalmente que já se trata também e sempre do capitalismo como relação de submissão ao fim em si do trabalho abstracto e da valorização, tal como ela foi formulada desde o início pela crítica da dissociação-valor e que como tal inclui os efeitos negativos e as crises.  

Não pode deixar de se achar justo que ele próprio experimente realmente (e com mais razão) da parte da Gegenstandpunkt a mesma reinterpretação retórica que ele aplica à teoria radical da crise. Aí se diz, na recensão da sua brochura introdutória: “Ele enumera os males sem classe que as pessoas boas e conscientes dos problemas dificilmente encontram sem qualquer leitura de Marx; abusos generalizadamente deplorados, sob os quais não ocorre de facto a exploração da maioria trabalhadora, mas antes fortes efeitos deste modelo económico, que ameaçam a sua própria existência… O modo de produção merece crítica não pelo funcionamento da sua finalidade, mas sim pelas crises periódicas e temporárias e pela extraordinária necessidade a que ele então obriga a sociedade… Não é o facto de as pessoas viverem para o capital que fala a favor da sua abolição…, (não) é o curso normal da economia capitalista, mas as grandes catástrofes causadas pelo capitalismo…” (Gegenstandpunkt 2008, 116 sg. Destaque da Gegenstandpunkt). A Gegenstandpunkt refere aqui “as interpretações erradas… de Robert Kurz…, das quais Heinrich está mais próximo do que lhe devia agradar” (ibidem, 107).

Trata-se, porém, de uma má interpretação da Gegenstandpunkt e já antes da parte dos publicistas “anti-alemães”, tal como dos próprios Heinrich, Stützle & Cª, quando pretendem separar a crítica da relação de submissão basilar ao trabalho abstracto da reflexão sobre as crises inerentes e a dinâmica histórica interna desta relação. O que deve então ser particularmente “radical”? Ambos os aspectos pertencem um ao outro real, conceptual, analítica e historicamente. Ou se critica o capitalismo no seu todo ou não se critica; e faz parte deste todo justamente que o desaforo existencial fundamental de deixar enchouriçar a sua vida pela máquina da valorização e pelo seu fim em si (na formulação frequente da crítica da dissociação-valor) está atacado por um potencial interno de crise que pertence a este carácter de desaforo e o agrava.

Quando a exigência de “viver para o capital” já não pode ser cumprida, mesmo se é querida, estamos apenas perante uma potenciação desta relação. É por isso que passamos presentemente, quando a crise surge como uma “catástrofe natural”, de acordo com um entendimento que explica a reprodução capitalista como “relação natural”. Aqui é invocada uma falsa solidariedade que assenta na aceitação do desaforo e, no limite interno da valorização, exige às pessoas uma penitência pessoal em seu nome. Pretender criticar o capitalismo apenas no seu “curso normal”, deleitar-se nisso e esconder o carácter da crise na crítica — esta atitude é ela própria suspeita de falta de radicalidade e cheira a um resseguro, tão inconsciente como imaginário, de que este “curso normal” seja atingido pela crise apenas superficialmente e que por fim se possa continuar nele.

Não pode passar em claro que a afirmação de que a crítica da dissociação-valor, com a sua crítica radical, criticaria “… não o modo de produção capitalista, mas apenas a sua propensão para a crise” (Diederichs 2004, 129) não passa de uma insinuação. Disto, segundo o observador da discussão, dificilmente os seus representantes poderiam ser acusados: “Nas suas obras eles criticam expressamente o capitalismo como um todo. Kurz, por exemplo, no Schwarzbuch Kapitalismus [O livro negro do capitalismo] argumenta claramente sobre o assunto, indicando detalhadamente os horrores da época capitalista…” (ibidem, 130).

Daí tira o autor efectivamente a conclusão: “Ora se se rejeita a justificação da existência do modo de produção capitalista in toto, nesse caso a teoria do colapso é irrelevante para a motivação de tal crítica” (ibidem). A questão, porém, não é a motivação pré-teórica, que já se alimenta sempre da raiva contra a situação, independentemente de qualquer análise conceptual, mas sim o estatuto e o conteúdo desta análise em si. Para que a raiva não permaneça espontânea e desamparada ela precisa dessa análise para conseguir compreender em toda a sua extensão o terreno da luta e o seu objecto. Uma crítica que considera a crise um mero epifenómeno tem de ser designada como ingénua e “existencialista” no mau sentido, mesmo que se apresente com a retórica “materialista”.


Notas de rodapé:

(3) Tal entendimento pode ser encontrado é junto dos nossos críticos, na medida em que representam restos do marxismo do movimento operário. Aí existe como pano de fundo a “herança burguesa” da razão iluminista, que também se pode encontrar mesmo no próprio Marx, e que inclui uma metafísica do progresso como filosofia da história, completada por Hegel em termos de “teoria do desenvolvimento”. Depois atribui-se ao capitalismo uma “missão civilizatória”, em termos de metafísica da história, que está numa determinada oposição com a “crítica pela exposição” radical e é rejeitada justamente pela elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. Esta metafísica da história iluminista não é invocada somente pelos “anti-alemães”, pelo contrário, constitui um momento afirmativo no marxismo em geral, até ao contrapolo aparente dos “anti-imperialistas” que tomam partido por um paradigma de ideologia da modernização para a periferia capitalista. O mesmo ponto de vista afirmativo se encontra também em Wolfgang Fritz Haug, no segundo volume das suas lições de introdução a O Capital: “O capitalismo aliena a humanidade social… Mas (!) fá-lo de uma maneira que obriga a sociedade a querer a produção pela produção. Enquanto ele desenvolve a sociedade e — pelo menos como possibilidade — as condições de desenvolvimento da humanidade pode falar-se de uma alienação produtiva” (Haug 2006, 214). Mas não há qualquer férrea necessidade histórica (em sentido hegeliano) de que o desenvolvimento das forças produtivas simplesmente apenas fosse possível na forma destrutiva capitalista e que portanto fosse justificada transitoriamente a exigência absurda desta relação. Tendo por base a razão iluminista o marxismo vulgar partilha esta justificação geral com a ciência burguesa; e, justamente por isso, gostam de reduzir a crítica a uma fasquia “ética”. (retornar ao texto)

(4) Enquanto a maioria dos representantes do marxismo residual entendem o desemprego de massas e o subemprego simplesmente como “habituais” no sentido tradicional e não querem ver a sua qualidade nova, o pós-operaísmo procede de modo exactamente inverso. Para Hardt/Negri “… o ‘exército industrial’ desapareceu” e “desvanece-se a separação social entre desemprego e emprego” (Hardt/Negri 2004, 151). A nova qualidade, no entanto, é percebida redutoramente, de modo apenas sociológico e fenomenológico. O facto de o conceito de “exército industrial de reserva” ter perdido o seu ponto de referência não surge como nova dimensão da crise. Bem pelo contrário, a produção de mais-valia agora deverá ter-se alargado a toda a “zona cinzenta” do subemprego etc., incluindo a ausência de emprego, e a toda a reprodução, mesmo através das transferências de rendimento. Considera-se agora simplesmente como “criador de valor” todo o ser-aí negativamente socializado no capitalismo. Falta completamente qualquer fundamentação na teoria do valor e da acumulação; valor e mais-valia são simplesmente “redefinidos” “biopoliticamente”, mas também isto não é fundamentado, sendo simplesmente afirmado (sobre isto ver mais detalhadamente o cap. 17). A única referência é o boom empírico da conjuntura económica baseada no deficit desde 2003/04. Ora, seja o conceito tradicional de “exército de reserva” mantido ou não, o resultado é o mesmo, isto é, a ignorância da nova dimensão da crise ligada à queda objectiva deste fenómeno. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2020