Crise e Crítica
O limite interno do capital e as fases do definhamento do marxismo. Um fragmento.

Robert Kurz


9. A crise como relação subjectiva de vontade


Dificilmente pode ser negado que há realmente de algum modo um certo limite da valorização, que as crises se tornam visíveis. Mas pretende-se que o limite não será absoluto nem histórico. Por isso a objectividade da crise é reconhecida mais ou menos contrariadamente numa versão fraca, como a que se manifesta nas fases de definhamento dos velhos debates sobre a teoria da acumulação e da crise, porém reduzida ao já referido movimento cíclico em si inesgotável ou a rupturas estruturais periódicas. Mas isso não basta, nem de perto nem de longe, aos pós-marxistas de linha dura da dissolução subjectivista da relação de capital nas concepções da teoria da acção. Operaísmo e pós-operaísmo construíram uma versão forte da rejeição de um limite interno objectivo que corresponde melhor à falsa identificação de crise e crítica. A crise é aqui completamente enquadrada na relação de vontade imediata dos sujeitos sociais constituídos no capitalismo. A crise já não deve ter qualquer razão objectiva nas leis da reprodução fetichista, mas deve ser uma crise “feita” mais ou menos conscientemente.

O “fazer” não é aqui considerado como constituído numa forma a priori cuja matriz terá de ser rompida sob pena de ruína. Uma vez que são riscados o carácter transcendental da forma da vontade e com ele a objectividade negativa desta matriz, resta apenas (tal como no caso da Gegenstandpukt de outro modo) a vontade sem pressupostos do estabelecimento consciente de objectivos, cuja relação com a constituição de fetiche terá de ser completamente obscurecida, surgindo portanto directa ou indirectamente como pressuposto ontológico inultrapassável. Ignora-se a forma da acção, mas esta acção imediata é posta em curto-circuito com as necessidades materiais e sociais da vida, sem perceber que a forma do interesse desmente o seu conteúdo. Na maneira de dizer acima esboçada da teoria da dissociação-valor, significa isso que esta acção, no sentido das necessidades da vida, por maioria de razão está encerrada no “tratamento da contradição” formalmente imanente, permanecendo assim fechada sem saída na objectividade negativa do contexto funcional dominante.

Assim, no entanto, também se esconde amplamente o carácter da actividade social no capitalismo como acção forçosamente concorrencial. Mas é justamente a “coerção muda da concorrência” (Marx) que executa a determinação da forma da vontade e das suas acções no capitalismo e deste modo não só estipula as categorias capitalistas como “condições objectivas de existência”, mas também cria a determinação cega do limite da crise, para lá do estabelecimento voluntário de objectivos.

É característico da ideologia (pós-)operaísta no pior sentido que a determinação da concorrência universal, central para a análise marxiana do capital, seja completamente dissolvida ou considerada um mero epifenómeno subordinado, tal e qual como a crise. O carácter universal da concorrência a todos os níveis sociais é apagado; tanto a concorrência entre capitais singulares, entre os diversos ramos, as economias nacionais, as regiões mundiais etc., como a concorrência entre os próprios assalariados/as, bem como entre empregados e desempregados, jovens e velhos, homens e mulheres. É justamente esta forma central de todas as circunstâncias de relacionamento que permanece por tematizar, ou é mencionada apenas marginalmente em formulações enfatuadas; o mesmo se aplica à continuação da concorrência ao longo de linhas de demarcação ideológicas (e também étnicas etc.). A relação de concorrência universal é considerada em geral como não constitutiva para as “múltiplas” relações e diferenças sociais. Tal ignorância não é apenas teoricamente do mais baixo nível; ela também equivale a uma ampla perda do sentido da realidade.

Resta a “relação de classe” imediatamente ontologizada, que determina em última instância toda a percepção; originalmente a relação entre trabalho assalariado (industrial) e representação do capital, entretanto a relação entre a omnipresente multitude determinada “biopoliticamente” de modo difuso e o empire igualmente determinado “biopoliticamente” de modo difuso, para lá das categorias político-económicas da relação de capital, que por sua vez foram “redefinidas” sem qualquer fundamentação. Por isso também a “relação de classe”, arbitrariamente inflada em termos conceptuais e fenomenologicamente redutora, pode ser reconhecida como não sendo um plano da concorrência universal. Mas a oposição entre trabalho assalariado e capital (melhor: a oposição entre a representação funcional do capital e a representação funcional do trabalho, entre trabalho abstracto vivo e morto), na sua existência imediata constituída no capitalismo, constitui essencialmente uma relação de concorrência capitalista entre outras que, em virtude do carácter específico da mercadoria força de trabalho, assumiu uma forma institucional particular na relação entre associações empresariais e sindicatos. Ela pertence, portanto, ao movimento global da concorrência que está inscrito nas condições de existência vigentes cuja dinâmica ela ratifica, incluindo também a determinação objectiva da crise.

Enquanto o operaísmo/pós-operaísmo escamoteia amplamente a concorrência universal, a oposição entre o trabalho reprodutivo supostamente criador universal de mais-valia e o empire subjectivamente explorador, pelo contrário, figura como relação de vontade ontológica imediata. Assim se hipostasia mais uma vez o tradicional sujeito ontológico “classe operária”. A nebulosa ontologia da multitude identifica esta,por um lado, com os “pobres” simplesmente, por outro lado, com a classe média das tecnologias de informação e da análise de sistemas; mas aparentemente não é isso que importa aqui: “Os pobres incorporam a condição ontológica não apenas da resistência, mas simultaneamente da produção da própria vida” (Hardt/Negri 2004, 153).

O palavreado da filosofia da vida encobre uma factualidade banal: na realidade os pobres, como todos os outros, “incorporam” na sua essência imediata apenas um plano da concorrência e da forma vigente da vontade. Eles nem são pessoas melhores nem representam de algum modo um princípio ontológico bom, mas são simplesmente pobres capitalistas e por isso espontaneamente obrigados a reagir à sua própria pobreza no contexto da concorrência universal. Por isso não há a mínima garantia de que estes pobres capitalistas se comportem “como resistentes” ou de forma emancipatória. Em si não “incorporam” nada para além de existirem no capitalismo. A forma como eles se comportam a esse respeito não pode ser a expressão de qualquer “incorporação”, mas apenas a expressão de uma assimilação reflexiva cujo conteúdo e direcção de impacto em geral não está marcado a priori.

Se, para o marxismo tradicional, apesar da sua ontologia do trabalho, a suplantação da concorrência pelo menos parcialmente no interior do trabalho assalariado ainda constituía um problema teórico e prático central, de modo nenhum fácil de gerir, o pós-operaísmo pretende agora mobilizar a ontologia da multitude sem qualquer mediação. E se, para o marxismo tradicional, mais uma vez apesar da sua ontologia do trabalho, o problema da crise ainda estava numa relação dialéctica com a objectivação da lei pseudo-natural do processo de valorização, para o pós-operaísmo a crise, correspondentemente à sua subjectivação ontológica, já é apenas a expressão imediata de relações de vontade conscientes. A dialéctica que nasce da contradição social sujeito-objecto é completamente substituída pela ontologia, o que apenas pode ser designado como pecado capital ideológico.(16)

Isto não constitui qualquer “viragem copernicana” para lá do paradigma tradicional (como o pós-operaísmo gosta de se ver a si mesmo), mas sim uma recaída, não só para trás do marxismo do movimento operário, mas sobretudo para trás da própria teoria de Marx. Uma vez que Marx entende as determinações formais negativas da sua crítica da economia não apenas como abstracções teóricas(17), mas simultaneamente como formas reais de existência, ele também consegue explicar suficientemente a vivência real das leis coercivas autonomizadas e da dinâmica de crise objectivada. Por isso já no primeiro capítulo do Livro I de O Capital ele diz que as determinações reais da produção de mercadorias se impõem como “lei natural reguladora”, e de facto “com violência”, “do mesmo modo que a lei da gravidade, quando a alguém a casa cai sobre a cabeça” (Marx 1979/1890, MEW 23, 89). E numa nota de pé de página acentua esta objectivação negativa com uma citação do escrito anterior de Engels Esboço de uma Crítica da Economia Nacional de 1844: “Que se deve pensar de uma lei que se pode impor apenas por meio de revoluções periódicas? É, pois, uma lei natural, que se baseia na inconsciência dos participantes.” (ibidem). Esta determinação do momento objectivado da auto-contradição interna do capital é acentuada em termos de teoria da crise no Livro II, na análise do processo de circulação capitalista: “Quanto mais agudas e frequentes se tornam as revoluções do valor, tanto mais se impõe, actuando com a violência de um processo natural elementar, o movimento automático (!) do valor autonomizado” (Marx 1965/1893, MEW 24, 109); e o mesmo no Livro III (secção sobre a queda tendencial da taxa de lucro) com a célebre formulação: “O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital…” (Marx 1965/1894, MEW 25, 260, destaque de Marx).

O conceito de “lei natural” pôde de facto ser interpretado positivamente com facilidade e também o foi (mesmo pelo próprio Engels); mas, do ponto de vista da crítica do fetiche, esta objectivação é criada pelos próprios seres humanos, não é de modo nenhum “necessária por natureza” e justamente por isso constitui o escândalo que deve ser criticado. A subjectivação ideológica da relação e da sua crise, no entanto, não critica estes factos negativos, mas deixa-os simplesmente desaparecer no estabelecimento de objectivos supostamente calculistas dos sujeitos ontologizados.

Antonio Negri está obviamente convencido de que consumou uma ruptura fundamental com a crítica da economia política de Marx. Já no seu livro Marx oltre Marx [Marx para além de Marx] de 1979 afirmara que tinha exposto o cerne de um método “subjectivista materialista”, que na verdade se limitou a levar para lá de si mesmo mais uma vez o reducionismo do “marxismo ocidental” e a emparedar a última porta de acesso ao reconhecimento da dialéctica fetichista sujeito-objecto na modernidade. Pretende-se que o facto de o subjectivismo ser apenas o reverso do objectivismo e nada resolver seja posto fora de qualquer possibilidade de ser pensado. Negri reveste naturalmente a sua ruptura completa com a crítica da economia política de Marx com a fórmula de uma “continuação do desenvolvimento”, o que naturalmente permanece como afirmação gratuita sem qualquer fundamentação, tal como todas as outras “redefinições”: “O método materialista — na justa medida em que é totalmente subjectivado (!), à partida completamente direccionado, criativo — de forma nenhuma pode ser aprisionado pela totalidade dialéctica ou pela unidade lógica” (Negri 2005/1979, 7).

Mas o capitalismo é uma totalidade negativa justamente porque não fica absorvido no estabelecimento voluntário de objectivos imediatos dos seus sujeitos da acção; e esta totalidade é dialéctica porque se move em contradições internas. Não adianta nada a Negri negar simplesmente o “aprisionamento” nesta totalidade em processo em vez de o criticar. O desmentido do tosco subjectivismo é a crise; e, justamente por isso, ela ter de ser contrafactualmente subjectivada e desesperadamente reinterpretada num acto de vontade conscientemente controlado, no terreno da luta de heróis ontológica entre a multitude e o empire. Um conceito da crise capitalista como acto de vontade consciente é tão claramente idiota à maneira iluminista (atrás de todos está imediatamente uma vontade calculista) e tão francamente infantil que a ideologia operaista e pós-operaísta neste ponto tem de se apresentar ainda mais atrevida e apodíctica do que em todo o caso já é.

O padrão fundamental aparenta assim que, ou o proletariado ou multitude deita abaixo conscientemente na crise a dominação capitalista (esta inversão conceptual ou falsa identificação na relação entre crise e crítica já se encontra no marxismo do movimento operário, como se viu), ou pelo contrário os capitalistas ou empire, metidos em apuros pelas gloriosas “lutas” do contra-sujeito ontológico, por sua vez conscientemente “encenam” a crise estrategicamente para afirmarem a sua dominação. O pressuposto, naturalmente, é que Negri e Cª apagam todo o contexto das categorias objectivadas do capital, da lei do valor à queda tendencial da taxa de lucro (neste último ponto também Michael Heinrich, por exemplo, tem pontos de contacto com o pós-operaísmo). Os três volumes de O Capital ficam no fundo sem objecto e podem ser deitados fora; o que resta é a pura relação de vontade como pura relação de poder político. Já só existem relações de poder como tais que já não têm qualquer razão lógica de formação.(18)

Não pode passar em claro que uma tal subjectivação da crise, que seria posta em cena como “encenação” consciente, dá o flanco às famigeradas teorias da conspiração, cujo cerne histórico consiste na síndrome anti-semita. Apontar este contexto não tem nada a ver com uma denúncia barata; ele resulta involuntariamente da ideologia de uma pretensa superação da “contradição em processo” através da sua redução a relações imediatas de vontade e de poder. Se “o capital”, através das suas instâncias centrais de poder e fracções dominantes, encena conscientemente a crise, isso só é verdadeiramente pensável em concreto se para esse fim são puxados os cordelinhos atrás dos bastidores, ocorrem acordos secretos e se impõem decisões de poder assim construídas, incluindo uma interpretação mediática também urdida clandestinamente.(19)

Também os ideólogos “anti-alemães” têm uma afinidade com esta subjectivação, embora eles evidentemente rejeitem ao máximo as interpretações da teoria da conspiração e tematizem o seu anti-semitismo mais ou menos encapotado. Se a crítica da ideologia falta quase completamente no pós-operaísmo (correspondendo à sua transição pós-moderna), os “anti-alemães”, pelo contrário, como se viu, seguem um reducionismo à crítica da ideologia. Este, no entanto, também inclui uma subjectivação, sendo a elaboração ideológica consciente tornada um demiurgo das relações e o lado objectivo apagado ou em última instância dissolvido em ideologia. Assim também este pensamento não alcança a dialéctica sujeito-objecto da “contradição em processo”.

Assim se afirma: “A crise… não existe independentemente da consciência que as pessoas têm dela” (Scheit 2001, 15). Aqui reside uma redução ou confusão decisiva. É verdade que a crise resulta de acções humanas conscientes na concorrência universal, mas justamente por isso não intencionais, mas sim como objectivação cega atrás das costas dos agentes conscientes e em referência à sua particularidade atomizada (como indivíduos, grupos, empresas etc.); e, nessa medida, o aparecimento da crise é completamente independente da consciência dos seres humanos, a qual não inclui imediatamente qualquer reflexão “sobre” as suas próprias relações. O que de seguida não pode ser independente da consciência, pelo contrário, são as reacções à crise e às suas formas de desenvolvimento, que têm saída aberta (“socialismo ou barbárie”). Mas são duas coisas diferentes. Sendo as duas postas em curto-circuito, a crise desloca-se à socapa justamente para o sujeito calculador, como também tem de parecer sempre em última instância ao pensamento do iluminismo. Também a partir daí poderia afinal ser destilada uma espécie de teoria da conspiração; em todo o caso a redução da contradição a ideologia vai acoplar secretamente a tal pensamento.

No operaísmo/pós-operaísmo, pelo contrário, não se trata de meras inconsistências da argumentação, mas sim de uma redução absoluta, que só pode ser designada de grotesca, da crise e do seu conceito a decisões de poder e de vontade conscientes e imediatas. Assim continua a afimar a velha revista operaísta Wildcat: “O operaísmo (e mais tarde Bonefeld e Holloway) evidenciou que a crise económica mundial dos anos trinta do século passado foi o movimento de resistência à repressão contra a força de classe tornada evidente no começo do século e nas revoluções no fim da I Guerra Mundial. A crise após 1973 foi marcada pelas lutas de classes e daí por uma nova situação histórica” (Homepage Wildcat, acesso 30.05.2009). Para este entendimento absolutamente subjectivado, a política do então chefe do banco emissor dos EUA, Volcker, “anunciou” depois de 1979 “o longo ataque (!) da crise neoliberal” (ibidem). A “crise da crise” (ibidem) desde o Outono de 2008 bem que deveria então ter origem no novo e astuto plano piloto de Alan Greenspan, ou terá sido do tenebroso príncipe Voldemort?

Mas há um pequeno problema. Se a crise acontece como vontade contra vontade (quem contra quem?), então seria preciso dizer logo claramente se agora são os próprios capitalistas ou os seus agentes que preparam o ataque, por meio da crise encenada, ou se não será pelo contrário o proletariado, aliás a multitude, que de uma maneira ou de outra está por trás de tudo. A relação entre desenvolvimento capitalista ou crise, por um lado, e “lutas”, por outro, já no velho operaísmo era pouco clara, como avisa Gewährsmann: “M. Tronti representava a tese muitas vezes recebida de que as lutas do trabalho e particularmente a recusa proletária do trabalho teriam obrigado o capital, através da baixa das taxas de mais-valia, à introdução de saltos de produtividade sempre novos. Ao contrário disso, em R. Panzieri quase nunca se encontra mais que a indicação do paralelismo entre militância proletária e desenvolvimento capitalista. Panzieri nunca se deixa convencer por afirmações relativas a uma possível relação de causalidade. Onde se encontram tais afirmações ele tende para uma afirmação diametralmente oposta à de Tronti: nomeadamente que a modificação do processo de produção introduzida pelo lado capitalista conduziria a novas lutas e não o contrário” (Henninger 2008,24).

Relativamente ao conceito de crise, a falta de clareza tem de se agravar ou mesmo conduzir à ideia fabulosa de que “capitalistas” e “proletariado/multitude” lançam alternadamente na crise toda a sociedade consciente e voluntariamente, de tal modo que com cada contra-ataque da vontade contrária se chega à “crise da crise”, tal como antes ela tinha sido querida pela parte contrária. Quando já não se consegue pensar que a crise pertence à dialéctica sujeito-objecto e se produz como pura objectividade através da concorrência universal ou do tratamento político-económico da contradição nas costas dos participantes, então são inevitáveis tais disparates. Afirmações analíticas sérias tornam-se assim completamente impossíveis(20).

Nenhuma crise histórica no capitalismo pode ser derivada de “lutas voluntárias” imediatas; mas a nova crise económica mundial iniciada no Outono de 2008 muito menos que qualquer das anteriores. Pois aqui já nem sequer superficialmente é possível construir uma conexão causal real com “lutas” ou com “políticas” conscientes, ou quando muito só por meio de fantasmagorias óbvias. O estourar das bolhas financeiras, a falência do Lehman Brothers e o que se seguiu não foi um complot do empire, nem sequer foi devido à mínima “luta social”, tanto nos EUA como noutros lados. Isso até os normalizados construtores de casinhas da Opel e os faz-tudo do submundo da esquerda radical compreendem. Por isso a ideologia de crise subjectivista, perante esta situação, tem de cair no apelo puramente mistificatório a um “nós” ideológico, na realidade dificilmente existente.

Nisto é bom sobretudo John Holloway que reintroduziu o conceito marxiano de fetiche novamente no pós-operaísmo apenas para o falsificar e minimizar “à maneira existencialista” como determinação de um epifenómeno solto. A total incapacidade para explicar a crise e o seu carácter histórico reinterpreta depois a própria impotência perante a objectivação capitalista como uma força criadora francamente divina: “A fúria da dignidade coloca-nos no centro. Nós produzimos o mundo com a nossa criatividade, com a nossa actividade. Somos nós também que produzimos o capitalismo que nos mata: por isso sabemos que podemos deixar de produzi-lo. Somos nós que produzimos a actual crise do capitalismo, ou melhor, nós somos a crise do capitalismo” (Holloway 2008, 17, destaque de Holloway). O facto de “todos nós” (o “nós” seriam então todos os membros da sociedade sem excepção) reproduzirmos o capitalismo e produzirmos a sua crise, uma vez que “nós” levamos a nossa existência no interior da sua constituição, é aqui retirado da objectivação subjacente e reinterpretado como fantasia de omnipotência subjectiva imediata, que só pode ser designada infantil e da qual não há qualquer consequência. Este “nós” constitui obviamente um mistificador plural majestático merecedor de escárnio. Se NÓS assim na NOSSA magnificência produzimos o mundo, então também somos NÓS que produzimos o capitalismo e mais ainda a sua crise porque NÓS em todo o caso já somos e fazemos sempre tudo. Mas, meu Deus, aqui para nós: não teríamos NÓS podido poupar a produção do capitalismo, se NÓS em todo o caso também produzimos a sua crise e a sua abolição? Ou servirá tudo isto apenas para NOSSO entretenimento porque NÓS na NOSSA superioridade houvemos por bem sentir aborrecimento?

Dissolver a dialéctica fetichista sujeito-objecto numa falsa identidade imediata só pode levar a um kitsch conceptual deste género, cuja “fúria da dignidade” nem como entendimento sentimental é credível. Enquanto a subjectividade polar de empire e multitude e até mesmo a explicação com base na teoria da conspiração ao menos ainda apontam para um resto formal da contraditoriedade imanente (todavia não compreendida), a redução de Holloway assume no NÓS unidimensionalmente existencialista, como sujeito da “produção da crise”, traços directamente paranóicos: “(Nós) somos responsáveis pela crise e não temos de fazer a revolução no futuro, uma vez que já a fazemos e a crise é a expressão visível de que já a fazemos… Nós somos a rebeldia, quer dizer, a crise do capital… o nosso ser rebelde, a nossa insubordinação, a nossa dignidade é abalar o sistema. A crise do capital é uma expressão da força da nossa dignidade. Deveríamos entender a crise não como colapso do capitalismo mas como irrupção da nossa dignidade” (Holloway, ibidem, 17 sg.). Se os empregados e os chefes do Lehman Brothers ou da General Motors tivessem sabido disto…

Ora em que consiste verdadeiramente a indignidade desta “dignidade” esfarrapada? A subjectivação da crise corresponde à dissolução das relações de fetiche em relações de vontade imediatas. À primeira vista os portadores da vontade ontologizados e os seus objectivos parecem ser exteriores uns aos outros e de certo modo contrapostos; vontade contra vontade, trabalho contra capital, classe contra classe, multitude contra empire, pobres contra ricos; e que assim, em golpe e contragolpe, “fazem” conscientemente “tudo”, incluindo a crise. A clareza supostamente obtida torna-se contudo incerta no decurso da passagem pós-moderna. Pois também nas teorias pós-estruturalistas a coisa não é assim tão simples; para a ontologia do poder de Foucault, por exemplo, a “produtividade” do poder consiste justamente em que ele não representa qualquer relação de repressão externa, mas inclui a vontade e as externalizações de todos os participantes num processo de mutação permanente. Há, portanto, um comum aos “combatentes”, o fluido do poder a eles extensivo, que no entanto permanece como tal indeterminado e ontológico, enquanto os seus estados concretos surgem apenas no plano de uma “microfísica do poder” (Foucault) em particularidades e formas de desenvolvimento imediatas.

Esta espécie de determinação de um contexto socialmente abrangente regride para trás do conceito marxiano de fetiche, de uma forma negativa comum da vontade, isto é, o enquadramento de modo funcional e socialmente diferente de todos os actores sem excepção no mesmo contexto formal e funcional do capital, ou seja, do sujeito automático que lhes é igualmente pressuposto e por eles em conjunto posto em movimento. Uma vez que nas teorias pós-modernas o comum abrangente não só é apresentado de forma redutora e difusa, mas também é ontologizado, ele permanece tão inacessível conceptualmente como fundamentalmente incriticável. Neste entendimento só pode haver “deslocamentos” no interior da ontologia do poder, enquanto a determinação da forma histórica como modo de produção e de vida específico é posta de parte. No entanto a percepção que obscuramente toma forma de um comum aos “lutadores voluntários” tem de desmentir de certa maneira a imediatidade dos portadores da vontade exteriores e contrapostos uns aos outros.

Mas, uma vez que já não existe qualquer conceito crítico da forma comum da vontade, a falsa imediatidade vira-se num constructo absurdo, como se vê já nas abordagens de Hardt/Negri e mais claramente nas de Holloway: os dois sujeitos da vontade que se batem um contra o outro transformam-se às escondidas num único do qual o outro incompreensivelmente é posto fora de si. O sujeito criador divinizado verdadeiramente abrangente (“classe”, “multitude”, “NÓS”) é simultaneamente o seu próprio contrário, com o que se volta implicitamente aos velhos temas literários do sósia ou da sombra autonomizada e à estrutura esquizofrénica da consciência(21), cuja remissão imanente à constituição de fetiche fica por tematizar (e é mesmo explicitamente rejeitada). Não há assim nenhuma solução analítica e conceptual do enigma, mas apenas a mistificação de um meta-sujeito da vontade paranóico, que se entrega à adoração laudatória.

A relação social e a sua crise não podem ser pensadas de outra maneira quando o problema da objectivação é feito desaparecer. Não se critica nem se rompe a forma da vontade histórica comum, mas pretende-se que a existência imediata do NÓS seja já a reprodução afirmativa da relação, a sua crise e a sua crítica, três em um: “Nós somos o capital” (trabalhadores metalúrgicos manifestando-se no quarteirão bancário em Frankfurt); “Nós somos o povo” (cidadãos da RDA por ocasião da sua transformação em cidadãos da RFA); “Nós somos a Opel”; “Nós somos a crise”; a nossa falência é a nossa “dignidade” e apenas uma expressão de que “Nós fazemos a revolução”. NÓS estamos prontos para o manicómio.


Notas de rodapé:

(16) A ontologia refere-se à sociedade e à história sempre de modo reaccionário e afirmativo, devendo portanto neste contexto ser sempre combatida por princípio. A elaboração ideológica da sociedade burguesa é no essencial ontológica. O que tem de ser atendido, perante as contradições dilacerantes, é a “necessidade ontológica” (Adorno), que pretende chegar a um resseguro sem exigir a crítica radical da forma histórica. Entre dialéctica (negativa) e ontologia não pode haver qualquer conciliação; aqui se separam os caminhos fundamentalmente. Não por acaso toda a ideologia pós-moderna se interessa mais pela “ontologia fundamental” do filósofo nazi Heidegger do que pela dialéctica de Marx na crítica da economia política. Não é Marx que constitui a referência central, mas sim Heidegger. Já tarda há muito tempo que seja de novo colocada a linha de fronteira entre dialéctica e ontologia e que a luta seja decidida justamente contra os negristas e outros heideggerianos “de esquerda”. (retornar ao texto)

(17) Nesse caso tratar-se-ia de “modelos” mentais que se contrapõem exteriormente à realidade e a descrevem aproximadamente ou não, enquanto a “própria coisa”, em última instância no sentido kantiano de “coisa em si”, seria subtraída ao conhecimento. Este “método”, vindo a si no positivismo, que corresponde à própria relação de capital e por isso já significa elaboração ideológica afirmativa, não deve ser confundido com a crítica adorniana do conceito, que não nega às abstracções teóricas da crítica da economia política o seu conteúdo de realidade na “própria coisa”, mas gostaria de ter em consideração nos objectos reais aquilo que nelas não fica absorvido. Esta crítica do conceito diz que determinados momentos do mundo real (materiais, sociais, naturais etc.) não são absorvidos nos conceitos porque a relação social correspondente a estes conceitos (apreendidos crítico-negativamente) não consegue abranger completamente este mundo, embora seja totalitária. Isto é algo completamente diferente do entendimento positivista que pretende atribuir aos conceitos um puro carácter reflexo, ou seja, não os entende como determinações negativas do real, e assim assume a realidade negativa e totalitária do capitalismo agnosticamente a partir da linha de fecho, para depois se contentar com uma acrítica fixação nos factos. (retornar ao texto)

(18) Assim se dissolve a crítica da economia política na ontologia do poder de Foucault, por exemplo. A raiz deste pensamento da ontologia do poder também já se encontra no marxismo do movimento operário, não em último lugar na tendência para declarar a autocontradição interna e as leis do movimento do capital sustidas pela reivindicação de poder estatal e pelo controlo estatista. A teoria social-democrata do capitalismo organizado (pelo Estado) (Hilferding) surge também no comunismo de partido do pós-guerra e, virada negativa, na teoria crítica de Adorno e Horkheimer. Esta corrente da ideologia de um capitalismo emancipado das contradições e leis objectivas, como pura relação de poder, constitui o fundamento da ideia operaísta e pós-operaísta de uma “valorização política” imediata, bem como da tese “anti-alemã” do “capital sujeito estatal” (ver sobre isto com mais detalhe cap. 20). (retornar ao texto)

(19) A involuntária proximidade às suspeições das teorias da conspiração abrange uma parte considerável do espectro da esquerda, correspondendo aos diversos graus de proximidade às subjectivações da ontologia do poder. Assim, por exemplo, a chamada viragem neoliberal surge nos discursos do marxismo residual e do keynesianismo de esquerda menos como reacção às contradições objectivas no processo da crise mundial da terceira revolução industrial e mais como uma espécie de putsch de coriféus e membros da linha dura do neoliberalismo nas instituições capitalistas da ciência e da política, que depois também poderia ser simplesmente anulado politicamente. A ligação subterrânea ao núcleo anti-semita do pensamento da teoria da conspiração é naturalmente negada com indignação. No entanto é justamente o pós-operaísmo que, com a sua extrema subjectivação e ontologização das relações, é particularmente pouco sensível à crítica da ideologia. Não é só o anti-semitismo, com as suas diferentes formas de manifestação no movimento de massas global, que é minimizado como “lado escuro da multitude”. É preciso que se veja também se e em que medida, com o prosseguimento da crise, vêm à luz do dia sentimentos directos da teoria da conspiração, na dissolução da ideologia pós-operaísta, tal como do marxismo residual e do pós-marxismo em geral. (retornar ao texto)

(20) Sempre que operaístas ou pós-operaístas descrevem fenómenos de crise, especialmente da actual crise, ficam-se pelo plano superficial; mas mesmo neste só é possível perceber a sua própria descrição no sentido de uma dinâmica autonomizada face aos actores. De facto a explicação subjectivista da crise é acrescentada exteriormente às descrições: estas últimas apontam elas próprias para o facto de há muito faltarem a esta ideologia os conceitos para o seu próprio material. (retornar ao texto)

(21) Também na filosofia assoma este tema. Assim em Hegel, já nos primeiros escritos de Jena, o Eu decompõe-se numa vontade geral, por um lado, e numa “existência particular”, por outro, de modo que a coerção da lei ocorre no interior do próprio Eu: “… pois a coerção revela não a minha submissão, o desaparecer do meu Eu contra outro Eu, mas sim de mim contra mim mesmo, de mim como particular contra mim mesmo como universal” (Hegel 1974/1805-06, 254, destaque de Hegel). (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2020