Dinheiro sem valor
Linhas gerais para a transformação da crítica da economia política

Robert Kurz


Prefácio


capa

De 11 de a 13 de Março de 2011 realizou-se na Universidade de Bremen um simpósio intitulado "Magia do dinheiro. Sua racionalidade e irracionalidade", organizado por Johannes Beck, Helmut Reichelt, Gert Sautermeister e Gerhard Vinnai no quadro do Institut für Kulturforschung und Bildung [Instituto de Pesquisa Cultural e Educação]. O texto que segue é baseado numa apresentação preparada para a ocasião e que infelizmente não pôde ser concretizada por causa de obrigações familiares. Esse núcleo está na base do presente livro, numa versão reelaborada, completada e fortemente alargada.

Ultrapassando o objectivo original, este ensaio é uma tentativa de apresentar diversas linhas de argumentação de uma reinterpretação fundamental da crítica da economia política, numa espécie de síntese ou panorama geral. Basicamente, são quatro grandes temas, ou talvez até mesmo projectos que aqui são juntos num primeiro ensaio: Em primeiro lugar, o problema das sociedades pré-modernas ou pré-capitalistas, que têm de ser percebidas na peculiar qualidade da sua socialização fraca, com formas de relacionamento bem específicas e, assim, como fundamentalmente diferentes da socialização "económica” negativa da chamada modernidade. Portanto, contra a razão iluminista e também contra o marxismo, exclui-se a definição transhistórica de categorias fundamentais supostamente abrangentes ("trabalho", forma-dinheiro, forma-mercadoria etc.) que resulta da metafísica burguesa da história. Segundo, o processo de constituição histórica do capital no início da modernidade que, como forma de transição, implica uma lógica diferente e uma sequência diferente de categorias relativamente à relação de capital "acabada". Terceiro, a lógica e o contexto categorial ou "circulação" (Marx) do capital, como seu próprio processo de reprodução ou "movimento em si mesmo", que numa visão modificada das determinações fundamentais também se apresenta de modo diferente das interpretações usuais da teoria de Marx. E, quarto, a autocontradição interna e o limite interno lógico da dinâmica capitalista que, finalmente, também tem de apresentar-se como resultado manifesto de uma história interna progressiva do fetiche do capital.

Claro que, no âmbito relativamente estreito desta análise, a quádrupla referência temática apenas pode ser formulada como ensaio e não num processo monográfico detalhado. Mas para o efeito o ensaio oferece o esboço de uma relação global lógica histórica, que não pode ser conseguido nesta forma como um todo numa passagem mais abrangente através do material e da bibliografia e, por conseguinte, tem o seu valor próprio.

Ao mesmo tempo também se trata necessariamente de um debate no campo teórico do marxismo e principalmente com base no debate contemporâneo entre a nova ortodoxia (no sentido mais amplo), por um lado, e a chamada nova leitura de Marx, por outro. Contra as quais se assume aqui uma terceira posição, pretendendo transcender criticamente a disputa entre estas duas leituras até agora em primeiro plano. O ponto de vista central não é a filologia de Marx, mas a exigência de uma explicação histórica concreta dos processos sociais. Isto aplica-se tanto à posição do capitalismo na história como à sua própria história e não menos importante aos seus limites históricos. A agudeza do conflito teórico é, portanto, alimentada principalmente a partir de conceitos conflituantes da historicidade do objecto em vários planos. Embora as razões sejam epistemicamente e no conteúdo muito mais profundas, o conflito mais uma vez tem de se agudizar no debate sobre a teoria marxiana da crise. Neste ponto, a nova ortodoxia e a nova leitura de Marx estão juntas não por acaso com praticamente tudo o que resta do marxismo e do pós-marxismo numa frente contra a orientação teórica aqui defendida.

Poderá também surpreender e parecer estranho, mesmo a pessoas interessadas de boa vontade, que o propósito crítico deste ensaio no contexto do debate sobre a teoria de Marx em alguns pontos-chave se vire especialmente contra a versão da nova leitura de Marx de Michael Henrich e da sua "ciência do valor" (Henrich 2003/1999). Não se trata aqui de um pensamento aparentado não problemático, como observadores superficiais muitas vezes pensam, mas talvez da mais importante posição contrária, pois ela pretende ocupar o mesmo terreno de uma reavaliação fundamental da teoria de Marx e da história do marxismo com consequências totalmente opostas em relação às determinações categoriais e, portanto, exige ao máximo o confronto. Para lá das abordagens anteriores de uma polémica formulada provisoriamente em textos da revista teórica "Exit" (Kurz 2004, 2005 a) continua-se aqui a crítica da interpretação feita por Heinrich com base na ideologia da circulação e no idealismo da troca. Sua "leitura de uma leitura" sobretudo não ultrapassa o "individualismo metodológico" na crítica da economia política, que permanece insuficientemente exposto como elemento essencial da episteme burguesa, tal como no caso dos adversários neo-ortodoxos. Em vez disso, a correspondente redução decorrente do "problema de exposição" de Marx é simplesmente compatibilizada com o pensamento pós-moderno.

De acordo com o caráter ensaístico do texto também neste caso as citações são escassas; a argumentação será desenvolvida mais uma vez em pormenor na sequência posterior de textos numa escala semelhante, com questionamentos específicos que dão menos espaço a uma visão histórica geral e devem concentrar-se mais nos problemas inerentes à teoria de Marx em sentido estrito (em particular o conceito de substância). Está prevista neste contexto uma série de publicações sobre a controvérsia em torno da crítica da economia política no século XXI, originalmente concebidas como projecto de um único livro com o título provisório de " Tote Arbeit [Trabalho morto]".

O projecto modificado como uma série de textos, cada um com uma temática limitada e a correspondente extensão, não é apenas uma concessão aos hábitos de leitura de um público que já não consegue nem quer suportar trabalhos teóricos que pretendam a apresentação, desenvolvimento conceptual e análise sistemáticos e globais. O volumoso Capital de Marx teria hoje chegado provavelmente ainda com mais dificuldade do que a primeira edição do primeiro volume em 1867 às mais de duas mil cópias vendidas. Mas a "grande teoria", proscrita no positivismo ideológico pós-moderno de via reduzida, pode ser administrada em pequenas doses, como um projecto de transformação que conscientemente viola essa "proibição". Não por motivos de adaptação, mas para poder dar mais fortemente à exposição analítica conceptual o carácter de uma intervenção no actual conflito histórico em torno da teoria de Marx.

Pois justamente hoje recomenda-se que se procure a distância teórica não tanto no silêncio de muitos anos de desenvolvimento do conceito da obra de arte total, mas sim como formulação do conflito no corpo a corpo no campo de debate. Num tempo de reais rupturas de época, trata-se menos do que nunca de uma mera compreensão filológica no sentido académico, mas sim afinal da práxis histórica da crítica radical. Também o esclarecimento da relação entre o lógico e o histórico na teoria de Marx, um ponto importante na discussão aqui referida, tem consequências decisivas para uma abolição da sociedade fetichista capitalista, a ser definida de novo após o fim inglório dos programas anteriores de socialismo e comunismo.


Inclusão: 04/11/2020