Anarquismo e marxismo na Revolução Russa

Arthur Lehning


Introdução à edição francesa de 1971


capa

O texto que se lerá foi escrito em 1929 e primeiramente publicado na revista mensal alemã Die Internationale(1). Aqui, nós o apresentamos pela primeira vez em uma tradução francesa — sem modificações.

Em 1929, tínhamos a intenção de acrescentar mais dois capítulos, a respeito de Kronstadt e do Exército Makhnovista. Por diferentes razões, não foi o caso agora de modificar ou completar o texto. A abundante literatura publicada após 1930 sobre o assunto — artigos, livros e panfletos — nada contém que pudesse implicar alguma mudança no desenvolvimento das ideias. Seria justamente o contrário, pois nossas reflexões iluminam alguns aspectos negligenciados da Revolução Russa em seu princípio e, ao mesmo tempo, atendem antecipadamente à crítica daqueles que somente descobriram durante ou mesmo após a era stalinista a degeneração da Revolução, Termidor e a contrarrevolução. Este texto também é uma contribuição à historiografia da Revolução Russa, e é evidente que enquanto tal não pode ser corrigido. Por outro lado, é de fato um texto político, ainda que trate em grande parte de teoria e história. O recente interesse pelos problemas fundamentais do socialismo, as questões da organização e do desenvolvimento da Revolução Russa, assim como a crítica às diferentes formas de socialismo de Estado e de ditadura atribuem novamente a este texto o caráter de panfleto político.

Propomo-nos a demonstrar brevemente os seguintes pontos:

  1. A interpretação da teoria do Estado de Marx tal qual ela é formulada por Lênin em seu célebre panfleto “O Estado e a Revolução” é insustentável.
  2. A Revolução no decurso de 1917 foi uma revolução principalmente de camponeses e não se desenrolou de acordo com o esquema da teoria marxista da Revolução tampouco de acordo com o esquema dos marxistas russos.
  3. A Revolução Russa que durou meses e se estendeu a todo império czarista não deve ser confundida com a conquista do poder pelos bolcheviques em Petrogrado e à instituição, em 24 de outubro de 1917, do Conselho do Comissariado do Povo.
  4. Lênin e seu partido — o Partido Operário Social-Democrata Russo (Bolchevique), rebatizado como Partido Comunista em março de 1918 — jamais foram favoráveis, mesmo em princípio, aos Sovietes, os Conselhos que, no decorrer de 1917, nasceram espontaneamente em todo o país. O caráter construtivo da Revolução se exprimia em tais Conselhos, mas Lênin e seu partido os consideraram apenas sob o ponto de vista de sua utilidade para a tomada do poder político pelo partido bolchevique.
  5. A assim chamada “ditadura do proletariado” — que desde o início jamais foi outra coisa que a ditadura do partido, depois de sua burocracia, e que só pôde se manter pelo terror — é um dos fatores essenciais da degeneração da Revolução Russa, em um processo claramente visível a partir de 1921, e não somente a partir do momento em que aqueles que foram os responsáveis pela criação de um aparelho de Estado terrorista se tornaram suas vítimas.
  6. A destruição dos Sovietes não foi unicamente consequência da guerra, da guerra civil e da instalação da ditadura do Estado, mas ela já se inclui na interpretação leninista do princípio marxista do Estado enquanto controlador da totalidade da vida econômica e social em um sistema de governo centralista. Evidentemente, tal interpretação é incompatível com o princípio dos Conselhos operários.

O leitor não habituado à escolástica marxista se pergunta certamente qual é a importância destas interpretações e refutações polêmicas, e por que não é o bastante examinar as teorias de Marx ou de Lênin, de Kautski ou de Trótski, e medir os respectivos méritos. Responderíamos de início que não apenas a teoria de Marx, mas também sua interpretação pelos marxistas, exerceram papel importante na prática política marxista. As ideias de Marx não constituem uma teoria pura e simples, mas sim uma teoria destinada à prática, e o marxismo pretende ter atingido indubitavelmente a unidade da teoria e da práxis. Acrescentemos que o marxismo é marcado pelo caráter de seu fundador, um homem fundamentalmente autoritário, que se persuadiu de ter feito do socialismo uma ciência, uma vez que teria descoberto as leis segundo as quais a evolução dialética inevitável do capitalismo deveria finalmente conduzir ao socialismo. Enfim, o marxismo sempre foi uma espécie de messianismo, e os marxistas de todas as tendências sentiram a necessidade de apresentar a sua interpretação específica como única verdadeira, reclamando assim para si a autoridade de Marx. Uma consequência disto é que suas interpretações científicas produziram uma ciência da história falsificada.

Lênin construiu sua teoria da revolução, do Estado e da ditadura a partir das ideias de Marx acerca de tais problemas. Mas os escritos de Marx deixam bastante margem à interpretação. No Manifesto comunista (1847-1848), proveniente da “Liga dos Comunistas”(2), organização secreta de Marx, este escreveu que seu partido “não é um partido distinto dos outros partidos operários”; mas no mesmo texto se lê que ele é “a fração mais decidida dos partidos operários” e que persegue “o mesmo objetivo que todos os outros partidos proletários”. Marx, na mesma obra, salienta que “o proletariado organizado como classe dominante” deve centralizar os meios de produção no Estado. Em 1850, Marx e Engels fundam, com a colaboração dos blanquistas franceses, uma “Sociedade universal dos comunistas revolucionários”, sociedade secreta, cujo programa é submeter as classes privilegiadas à ditadura dos operários e dar prosseguimento à revolução permanente até a realização do comunismo(3). Marx emprega pela primeira vez a expressão “ditadura do proletariado” e observa naquele contexto que todas as revoluções apenas fizeram aumentar a potência centralizadora dos governos, em lugar de destruí-la. Em 1852, Marx escreve que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado, etapa intermediária em direção à desaparição das classes e o advento de uma sociedade sem classes. Durante os vinte anos subsequentes, Marx desenvolve suas teorias econômicas; ele formula as leis que regem o processo da produção capitalista, cujas contradições internas levariam, segundo ele, ao socialismo, de acordo com um desenvolvimento dialético imanente.

Em 1871, Marx dedica à Comuna de Paris um brilhante — e célebre — escrito, que é mais uma obra de propaganda do que uma obra teórica, na qual ele defende e glorifica a Comuna, episódio revolucionário da história da França e do movimento operário internacional. Se, por um lado, a palavra “ditadura” não aparece neste texto, vê-se claramente, por outro, que a Comuna começou a destruir as bases do Estado. Tais concepções são evidentemente um corpo estranho na obra de Marx e estão mais de acordo com os princípios propagados por Bakunin e seus adeptos do que com as teorias do socialismo científico(4). Em 1872 e 1875, Marx ainda repete que a Comuna de Paris mostrou que a classe operária não deve se limitar a simplesmente assumir o poder de Estado burguês. Em sua introdução a uma nova edição d’A guerra civil na França (1891), Engels escreve que a comuna de Paris foi um exemplo de ditadura do proletariado, mas neste mesmo ano de 1891, ele observa que o “nosso partido” e a classe operária somente poderiam tomar o poder sob a forma de uma república democrática, a qual — como mostrara a Revolução Francesa — seria uma forma particular de ditadura do proletariado.

Em decorrência das opiniões sustentadas por Marx antes e depois da Comuna, as considerações “anarquistas” d’A guerra civil na França são estrangeiras à teoria marxista. Antes da Comuna, Marx aplaude uma vitória da Prússia: seria, diz ele, a vitória da sua teoria sobre Proudhon, e, por outro lado, o Império alemão que Bismark fundara empreendia uma centralização política e econômica da Alemanha, condição essencial, segundo Marx, para o advento do socialismo. Uma segunda condição é a conquista do poder do Estado, e é assim que Marx, alguns meses depois do escrito sobre a Comuna, tenta impor sua concepção particular da marcha ao socialismo a toda a Internacional: organização dos trabalhadores em partido político, para conquistar o poder do Estado(5).

Quando se tomam os escritos de Marx e Engels, é difícil formular uma opinião: eles não definem claramente o papel do partido no processo revolucionário, tampouco a ditadura do proletariado, e permanecem calados sobre como agirá tal ditadura para suprimir o Estado. Citar passagens dos escritos de Marx não apresenta grande interesse, sobretudo se não as colocamos em seu contexto histórico: é muito mais importante pesquisar qual foi a prática do marxismo e as lições que se pode tirar dela. É preciso, contudo, insistir em dois pontos. Primeiramente, mesmo aquele que pouco leu e compreendeu Marx deve reconhecer que, seja qual for a interpretação dada a certas passagens, não se pode separá-las do essencial de seu sistema. Deve-se portanto vincular as ideias de Marx à sua concepção geral do processo histórico, na qual a marcha ao socialismo se liga a certos desenvolvimentos da produção industrial. Em segundo lugar, não se encontra nada em toda a obra de Marx que permita concluir que a ditadura do proletariado — por mais vagamente que ela seja definida! — poderia ser a ditadura de um só partido minoritário. Esta é uma invenção particular de Lênin, e sob este ponto de vista é mais exato falar de uma reconstrução e de um desenvolvimento leninista da teoria de Marx do que de uma interpretação.

Pode-se admitir que a concepção leninista de uma partido revolucionário de elite teve sua origem nas teorias do blanquista jacobino Tkatchev. Em 1902, Lênin sustentou na obra intitulada Que fazer? que a evolução espontânea do movimento operário apenas poderia conduzi-lo a um nível inferior ao da ideologia burguesa e que os operários só poderiam ascender à consciência social-democrata se tal consciência lhes fosse trazida por elementos exteriores à classe operária. Como consequência, a fração consciente do proletariado deve ser destacada da grande massa e organizada em um partido de vanguarda, um partido de revolucionários profissionais. A tarefa deste partido é dirigir o proletariado e conquistar em seu nome o poder político.

Quando, em fevereiro de 1917, a revolução explodiu na Rússia, Lênin foi um dos poucos de seu partido a não desejar uma ditadura democrática de operários e camponeses, ponto de vista aceito e defendido até então pelos marxista russos e que implicava o desenvolvimento da agricultura e da indústria sob um governo democrático no quadro do capitalismo. Imediatamente após seu retorno da Suíça, Lênin formulou seu novo ponto de vista, quando de uma reunião comum das frações menchevique e bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Eis o essencial:

O que há de original na situação atual na Rússia é a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia graças ao grau insuficiente de consciência e de organização do proletariado, à segunda etapa, que deve dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato […] Esta situação original exige que saibamos nos adaptar às condições especiais do trabalho do partido no seio da inumerável massa proletária que acaba de despertar à vida política. Nenhuma sustentação ao Governo provisório; demonstrar o caráter completamente enganoso de todas as suas promessas. […] Desmascará-lo, em vez de exigir […] que este governo de capitalistas deixe de ser imperialista. Explicar às massas que os Sovietes de deputados operários são a única forma possível de governo revolucionário. […] Enquanto estivermos em minoria, nos aplicaremos em criticar e explicar os erros cometidos, afirmando a necessidade da transferência do poder aos Sovietes de deputados operários […]

Não uma república parlamentar — retornar a uma depois dos Sovietes seria um passo atrás — mas uma República dos Sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses no país inteiro, de cima a baixo. Supressão da polícia, do exército e do funcionalismo. A remuneração dos funcionários, elegíveis e exoneráveis a qualquer momento, não deve exceder o salário médio de um bom operário. […] Confisco de todas as terras do país e sua disposição aos Sovietes locais de deputados assalariados agrícolas e camponeses. Criação de Sovietes de deputados dos camponeses pobres. […]

Nossa tarefa imediata não é introduzir o socialismo, mas apenas assumir de pronto o controle da produção social e da distribuição pelos Sovietes de deputados operários.(6)

A tática de Lênin se inclinava à tomada do poder, e isto em contradição com a grande maioria de seu partido. Mas, para tanto, era necessário tornar os Sovietes bolcheviques. Lênin sempre adotou uma atitude dupla a respeito dos Sovietes. Quando estes surgiram espontaneamente pela primeira vez, em 1905, ele não era um de seus defensores incondicionais. Em 1917, ele mudou várias vezes de opinião, conforme os Sovietes eram ou não instrumentos úteis à conquista do poder por seu partido. Em meados de setembro, ele declara ao Comitê Central que o partido bolchevique deve preparar a insurreição e expõe a tática que deve conduzir à tomada do poder. Ele afirma que a insurreição é uma arte, mas se defende de ser blanquista, posto que ela se funda no impulso revolucionário do povo e sobre a escolha de um momento histórico favorável. Segundo Lênin, tal momento havia chegado após a contrarrevolução fracassada de Kornilov que criara uma situação revolucionária, especialmente porque os bolcheviques haviam conquistado a maioria nos Sovietes de Petrogrado e Moscou. Malgrado a forte oposição de outros membros do Comitê Central, tais como Kámenev e Zinóviev, a política e a tática de Lênin foram aceitas. Membro do partido bolchevique a partir de julho de 1917, Trótski aprovava esta tática e o ponto de vista leninista segundo o qual o partido é a vanguarda revolucionário organizada para tomar o poder, o instrumento necessário e insubstituível de tal conquista, que deve ser a obra do partido, e apenas dele.

Lênin explicou irrefutavelmente que não haveria outra ditadura do proletariado que a ditadura de um partido. Mas em 1917 ele afirmava que tal ditadura seria apenas por um curto período de transição: era preciso, dizia ele, criar um Estado sem burocracia, sem polícia, sem exército e organizado de modo tal que só poderia acabar por morrer. Mas o próprio caráter da ditadura estabelecida por Lênin e seu partido tornava esta morte impossível. Apenas seis meses depois da Revolução de outubro, o novo aparelho de Estado promoveu uma ação terrorista contra todas as correntes revolucionárias não bolcheviques e os outros partidos socialistas: assim, a ditadura do proletariado — na verdade, a ditadura do partido — se tornou a ditadura do aparelho de Estado. Três anos mais tarde, foi toda a democracia no interior do próprio partido de elite que chegou ao fim, o que levou diretamente à sinistra época de Stálin.

A ditadura revolucionária do partido preconizada por Lênin é inconciliável com uma democracia de Conselhos. Dizer com o teórico trotskista Ernest Mandel que não se encontram nos escritos de Lênin argumentos favoráveis a um comunismo sem Conselhos é inexato(7); mas, contrariamente ao que pensa Mandel, não é absurdo dizer que o sistema dos Conselhos torna os partidos supérfluos e que esta é uma característica essencial de tal sistema. Donde a contradição fundamental entre uma organização revolucionária segundo o modelo de Lênin e uma democracia de Conselhos: com efeito, Mandel se esquece de mencionar que aquela que por eufemismo ele chama “a organização que deve garantir aos operários no sistema de Conselhos um grau superior de organização autônoma” é precisamente, em seu esquema e no de Lênin, quem deve exercer após a revolução a totalidade da ditadura — a organização do partido — excluídas todas as outras correntes e agrupamentos revolucionários e socialistas. O que significam as explicações teóricas de Mandel? Na Revolução Russa, a desaparição rápida de todas as tarefas autônomas e construtivas dos Conselhos; no futuro, caso um partido de elite assuma a direção e chegue ao poder, a nova destruição de toda democracia de Conselhos.

O princípio dos Conselhos é a negação absoluta de toda ditadura política, a negação também do Estado, e não é por acaso que esta ideia foi formulada pela primeira vez no movimento operário internacional por adeptos de Bakunin, como o belga Eugène Hins e o francês Louis Pindy, quando do quarto congresso da Internacional, realizado na Basileia em 1869. São as mesmas ideias que a mais forte federação da Internacional, a federação espanhola, conservou sob o nome de coletivismo, como base de sua organização e de seus métodos de luta. Tais ideias bakuninistas anarcossindicalistas permitiram aos sindicatos operários da Confederación Nacional del Trabajo tomar em suas mão toda a vida social e econômica de grande parte da Espanha, sobretudo na Catalunha, desde o início da Revolução que respondeu ao pronunciamiento fascista.

Durante o ano de 1920, manifestou-se no interior do partido bolchevique uma corrente que pretendia atribuir papel mais importante no processo de produção às organizações profissionais e retomava certas ideias sindicais. Esta Oposição Operária, da qual Chliapnikov e Kollontai foram os principais porta-vozes, se ergueu contra a militarização do trabalho preconizada por Trótski, o retorno das técnicas burguesas, a subordinação do movimento sindical ao Estado, mas sem condenar o monopólio do poder exercido pelo partido comunista. Quando do décimo congresso do Partido, em março de 1921, eclodiu a revolta de Kronstadt. A Oposição Operária apoiou a direção do partido contra os insurgentes, mas no mesmo congresso sua plataforma foi condenada como anarcossindicalista. Ao mesmo tempo, interditou-se toda formação de frações no interior do partido. Preparou-se assim os regulamentos que permitiriam a partir de Stálin reprimir toda oposição qualificada como “dissidência”.

Os marxistas-leninistas, com sua ditadura do proletariado, seu aparelho de Estado centralizador, sua burocracia e sua polícia secreta, inauguraram um regime de terror e a pior forma de absolutismo após o nascimento do Estado moderno na Europa: de fazer inveja à Inquisição e à famosa Okhrana czarista! Os comunistas fora da Rússia não apenas aceitaram tudo aquilo, mas o defenderam por princípio; ontem como hoje, seu vocabulário absurdo, que estigmatiza qualquer um que se oponha à teoria e à prática bolcheviques do momento, envenenou toda discussão de princípios ao interior do movimento operário. Nós conhecemos o desfecho: toda a “Velha guarda” bolchevique foi liquidada… Se é verdadeiro que todos os colaboradores de Lênin eram “contrarrevolucionários”, “espiões” e “fascistas”, isto lança uma luz singular sobre a ditadura do proletariado; e se é falso, como qualificar um governo que justificou por tais argumentos a série de mortes da época stalinista?

A partir de abril de 1918, a polícia secreta bolchevique entrou em ação contra os anarquistas em Moscou. Desde então, o número de anarquistas presos não parou de crescer, e suas organizações, suas reuniões e suas publicações foram proibidas. Quando se ficou sabendo, no primeiro congresso das organizações sindicais revolucionárias, realizado em junho de 1921 (congresso do qual devia nascer a Internacional dos Sindicatos revolucionários)(8), que vários anarquistas proeminentes estavam presos e faziam greve de fome, o escândalo foi tamanho que o governo bolchevique foi obrigado a libertá-los e a expulsar uma parte(9).

De janeiro de 1918 a 1921, a makhnovtchina, uma guerrilha de camponeses da Ucrânia organizada por Nestor Makhno(10), lutou contra as forças de ocupação germânicas e contra os exércitos russos brancos de Denikin, Skoropadski, Petliura e Wrangel. Onde o país era libertado pelos exércitos camponeses, nasciam comunas agrícolas e Sovietes. O governo bolchevique se aliou aos guerrilheiros para, uma vez vencida a contrarrevolução, melhor atacá-los: e assim, no início de de outubro de 1920, após um acordo com Makhno, libertou os anarquistas presos na Ucrânia e os autorizou a prosseguir sua ação publicamente. Mas quando o perigo branco foi definitivamente conjurado, Makhno foi posto novamente fora da lei e Trótski deu a ordem para aniquilar o exército de guerrilheiros e destruir o movimento anarquista.

Em março de 1921, os marinheiros da base marinha de Kronstadt se revoltaram contra a ditadura do partido bolchevique e reivindicaram Sovietes independentes. Já em 1917, inspirados pelo exemplo da Comuna de Paris, eles haviam proclamado a “República de Kronstadt” independente; por duas vezes eles defenderam a Revolução, e Trótski os chamou de “Orgulho e glória da Revolução”. A historiografia oficial do partido bolchevique pinta a revolta de 1921 como uma rebelião contrarrevolucionária, organizada com apoio de forças estrangeiras. Nada é menos verdadeiro, nada nas fontes soviéticas ou em outras permite fazer tal afirmação. A revolta foi desde o início um movimento espontâneo dos marinheiros, e o próprio Lênin declarou em 15 de março: “Em Kronstadt não se quer os guardas brancos, mas tampouco se quer o nosso poder.” A revolta de Kronstadt foi a última tentativa de conservar os princípios da Revolução Russa. Nos Izvestia, jornal oficial do Soviete de Kronstadt, se lia: “Ouça, Trótski! Os líderes da terceira Revolução defenderam o verdadeiro poder dos Sovietes contra as violências dos Comissários […] Lenin disse: o comunismo é o poder dos Sovietes mais a eletricidade! Mas o povo está convencido que o comunismo bolchevique é a comissariocracia mais os pelotões de execução!” O governo bolchevique descartou toda tentativa de conciliação. Trótski, comissário do povo na guerra e presidente do Conselho Revolucionário da Guerra, assim como Zinóviev são os responsáveis pela ordem de ataque contra Kronstadt, ataque conduzido sob as ordens de Toukhatchevski pelas tropas da polícia secreta, pois o exército regular não era confiável o bastante. O massacre de Kronstadt marca o fim definitivo do movimento dos Conselhos na Rússia.

No movimento anarquista, houve diferentes agrupamentos, e o mais importante foi o dos anarquistas sociais: eles se organizavam local e nacionalmente, e parte deles era de anarcossindicalistas. O anarcossindicalismo foi uma corrente libertária que se formou sob influência do desenrolar da Revolução Russa. Não era uma doutrina específica, mas a síntese de um pensamento anarquista claro e uma tática sindicalista precisa.

Até a primeira guerra mundial, o sindicalismo adotara uma posição de neutralidade diante das ideologias políticas ou filosóficas. Os anarquistas “anarcossindicalistas” pensavam que a luta revolucionária contra o capitalismo se ligava a princípios sociais que deveriam animar todas as manifestações da vida econômica e social. Ao contrário da política de todos os partidos operários que querem sempre se servir do movimento operário para seus fins específicos, o anarcossindicalismo preconizava a ação direta das massas fora de todos os partidos partidos políticos e, caso necessário, contra eles. Ele impulsionava os operários e camponeses a salvaguardar sua independência e criar organizações autônomas e democráticas para lutar contra o capitalismo e o Estado. Assim, o anarcossindicalismo complementou o anarquismo social, enquanto, de outro lado, deu ao sindicalismo uma base libertária e antiestatal.

Reencontram-se aí as ideias de Bakunin, e é sobre elas que repousa a democracia dos Conselhos. Os Conselhos têm como característica particular nascerem apenas durante uma revolução, serem órgãos funcionais da vida social e econômica, e enfim não terem uma vida efetiva senão após a destruição de toda forma de aparelho de Estado centralizador e burocrático. Os Conselhos realizam a gestão autônoma das fábricas por Conselhos de empresa eleitos e a gestão da agricultura por Conselhos e cooperativas de camponeses: tudo no quadro de uma construção federalista da sociedade, fundada na autonomia das comunas.

Jamais se demonstrou que era impossível dar tal orientação ao desenvolvimento da sociedade na Rússia após a Revolução, mas é certo que toda chance de um semelhante desenvolvimento foi arruinada pela ditadura terrorista do comunismo de Estado bolchevique.


Notas de rodapé:

(1) LEHNING. A. “Marxismus und Anarchismus in der russischen Revolution.“ In: Die Internationale. Zeitschrift für die revolutionäre Arbeiterbewegung, Gesellschaftskritik und sozialistischen Neuaufbau. Berlim: Freie Arbeiter-Union Deutschlands (Anarcho-Syndikalisten) angeschlossen an die Internationale Arbeiter-Assoziation (IAA). Ano III (1929-30): p. 4-12, 58-66, 80-7, 104-10, 150-4, 179-83, 231-5, 149-58, 278-81; Ano IV (1930-1): p. 19-22. (retornar ao texto)

(2)  Em fins dos anos 1870, Marx ainda fala no “nosso partido”, embora ele tenha deixado de existir em 1852. Desde 1864, ele considerava que a classe operária deveria se organizar como partido político para conquistar o poder político; tal opinião esteve na origem da cisão da Internacional em 1872. Quanto ao papel preciso desse partido e suas relações com a tomada do poder e com a ditadura do proletariado, os escritos de Marx permanecem bastante vagos. (retornar ao texto)

(3) Para Eduard Bernstein, Marx jamais se livrou completamente de suas tendências blanquistas. (retornar ao texto)

(4)  Marxistas de todas as tendências, com probidade intelectual e o respeito da história, tais quais Franz Mehring, Eduard Bernstein, Arthur Rosenberg, Karl Korsch, reconheceram tal fato. (retornar ao texto)

(5) Quase todas as federações rejeitaram tal concepção, em parte por objeções de princípio, em parte porque se pretendia torná-la obrigatória. (retornar ao texto)

(6) LENIN. Oeuvres. XXIV, p. 12-4. [NT: LENIN, “Sobre as tarefas do proletariado na presente Revolução” (“Teses de abril”). (retornar ao texto)

(7) V. a contribuição de Mandel a Lenin un die Revolution, Frankfurt, 1970. (retornar ao texto)

(8) A criação do Profintern tinha como objetivo submeter a Moscou as grandes organizações sindicais revolucionárias, em particular as dos países latinos, as quais, em função de suas tradições apolíticas e antiparlamentares, resistiam a aderir ao Comintern. Tal tentativa fracassou. Em dezembro de 1922, uma internacional anarcossindicalista foi fundada, sob o nome de Associação Internacional dos Trabalhadores, agrupando quase todas as organizações sindicais revolucionárias da Europa e da América Latina. Os anarcossindicalistas russos assumiram nela um papel importante. (retornar ao texto)

(9)  Entre eles se encontravam Maximov, Volin, Mrachny e Yarchuk. Em junho de 1922, uma publicação (“Acusação do comunismo de Estado diante do tribunal da história”) denunciou as perseguições do Estado bolchevique e deu uma lista de 182 anarquistas presos, fuzilados, mortos na prisão ou deportados. (retornar ao texto)

(10) Em 1908, aos 17 anos, Nestor Makhno foi condenado à morte por atividades anarquistas. Sua sentença acabou alterada para prisão perpétua, e ele foi libertado na Revolução de fevereiro. Acompanhado por uma pequena parte de seu exército, Makhno conseguiu atravessar as linhas do Exército Vermelho e escapar para a Romênia. Ele morreu em Paris, em julho de 1934, em condições miseráveis. (retornar ao texto)

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Inclusão: 27/05/2020