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A doutrina de Avenarius sobre a coordenação de principio é exposta em sua Concepção humana do mundo e em suas Observações. Essas ultimas são posteriores, mas Avenarius acentua que expõe nelas de maneira um pouco diferente as mesmas ideias que na Critica da experiência pura e na Concepção humana do mundo e nada mais do que isso. A essência dessa doutrina está na tese sobre a “coordenação (isto é, a conexão) indissolúvel (unalflösliche) do nosso eu (des Ich) e do meio” (§ 146).
“Em termos filosóficos — diz ainda Avenarius —, pode-se dizer: o eu e o não-eu”.
“O eu e o meio estão sempre associados (immer ein Zusammen-Vorgefundenes). Nenhuma descrição completa do que é dado (des Vorgefundenen) não pode conter o meio sem um eu ao qual esse meio seja próprio — pelo menos sem o eu que descreve o elemento dado”(1).
O eu é chamado de termo central da coordenação e o meio contra-termo (Gegenglied)(2).
Avenarius pretende que essa doutrina lhe permite reconhecer todo o valor do chamado realismo ingênuo, isto é, da concepção habitual, não-filosófica, ingênua, de pessoas que não se dão ao trabalho de indagar se elas mesmas existem e se existe o meio, o mundo exterior. Solidarizando-se com Avenarius, Mach esforça-se, igualmente, por parecer um defensor do “realismo ingênuo” (Analise das sensações, p. 30). E todos os discípulos de Mach, sem exceção, acreditaram na palavra de Mach e Avenarius de que se tratava verdadeiramente de uma defesa do “realismo ingênuo”: o eu é admitido, o meio também, que querem mais?
Reportemo-nos a linhas anteriores, afim de esclarecer de qual lado se encontra, no caso, a ingenuidade real, elevada ao mais alto grau. Eis uma conversação popular entre um filosofo e o leitor:
Leitor — Deve haver um sistema das coisas (como o admite a filosofia usual) e é dessas coisas que se deve deduzir a consciência.
Filosofo — Segues, no momento, os filósofos profissionais... em vez de te colocares do ponto de vista do bom senso e da verdadeira consciência... Reflete bem, antes de me responderes, e dize-me: uma coisa aparece em ti ou diante de ti diferentemente da consciência que dela tens ou através dessa consciência.
Leitor — Refletindo, devo colocar-me de teu ponto de vista.
Filosofo — Fala agora de ti, de tua alma, com tua alma. Não te esforces por sair de ti e abarcar (ou agarrar) mais do que podes, isto é, a consciência e a coisa, a coisa e a consciência, ou mais exatamente, nem isso e nem aquilo separadamente, mas unicamente o que logo se decompõe nisso e naquilo, ou, noutros termos, o que é absolutamente subjetivo-objetivo e objetivo-subjetivo....
Toda a essência da coordenação de principio do empiro-criticismo, defesa moderna do “realismo ingênuo” pelo mais moderno positivismo, aí está! A ideia da coordenação “indissolúvel” está aí exposta em toda a sua nitidez, partindo-se da concepção de que tal é a verdadeira opinião comum da humanidade, não deformada pela alta sabedoria dos “filósofos profissionais”. Ora, o dialogo, que acabamos de transcrever, é tirado de uma obra editada em 1801, devida ao representante clássico do idealismo subjetivo, Johann Gottlieb Fichte(3).
Não há, na doutrina de Mach e Avenarius, mais do que uma parafrase do idealismo subjetivo. As pretensões desses autores, quando afirmam ter-se elevado acima do materialismo e do idealismo e ter resolvido a contradição entre a concepção que parte do objeto para a consciência e a concepção oposta não passam de ocas pretensões da doutrina de Fichte modernizada. Fichte também supõe ter ligado “indissoluvelmente” o eu e o “meio”, a consciência e o objeto e ter “resolvido” o problema lembrando que o homem não pode apartar-se de si mesmo. O argumento de Berkeley de que
“não constato senão minhas sensações; não tenho, portanto, o direito de supor a existência de objetos em si independentemente de minha sensação”
é assim repetido em termos um pouco diferentes. As diversas maneiras com que se exprimem Berkeley em 1710, Fichte em 1801 e Avenarius em 1892-1894 nada mudam no fundo, isto é, na tendência essencial do idealismo filosófico. O mundo é minha sensação o não-eu é “suposto” (criado, produzido) pelo nosso eu; o objeto está indissoluvelmente ligado à consciência; a coordenação indissolúvel entre o nosso eu e o meio é a coordenação de principio do empiro-criticismo; sempre o mesmo postulado, sempre a mesma anacrônica confusão apresentada sob rótulos mais ou menos renovados.
O apelo ao “realismo ingênuo”, que se pretende defender com auxilio dessa filosofia, não passa de um “sofisma” dos mais medíocres. O “realismo ingênuo” de todo homem são de espirito, que não passou por um hospital de alienados ou pela escola dos filósofos idealistas, consiste em admitir a existência das coisas, do meio, do universo, independentemente de nossa sensação, de nossa consciência, do nosso eu e do homem em geral. A própria experiência (no sentido humano da palavra e não no sentido que lhe atribuem os discípulos de Mach), que cria em nós a convicção inabalável de que existe, independentemente de nós, dos outros homens e não de simples complexos de nossas sensações de alto, baixo, amarelo, solido, etc., essa experiência, dizemos, cria em nós a convicção da existência dos objetos, do universo, do meio, independentemente de nós. Nossas sensações, nossa consciência não são mais do que a imagem do mundo exterior; ora, conclui-se daí que a imagem não pode existir sem o objeto que representa, enquanto que o objeto pode existir independentemente de sua imagem. O materialismo coloca conscientemente na base de sua teoria do conhecimento a convicção “ingênua” da humanidade.
Essa apreciação da “coordenação de principio” não é o resultado do partido tomado pelos materialistas contra a doutrina de Mach? Não, absolutamente. Os filósofos especialistas, que não podem ser acusados de simpatia para com o materialismo, que até o detestam e adotam diversos sistemas idealistas, são unanimes em reconhecer que a coordenação de principio de Avenarius & Cia. não passa de idealismo subjetivo. Wundt, por exemplo, cuja curiosa apreciação não foi compreendida por Iuchkévitch, diz muito claramente que a teoria de Avenarius, segundo a qual seria impossível fazer, sem um eu, sem um observador ou um narrador, uma descrição completa do que nos é dado observar ou do que descobrimos, constitui “equivoca confusão do conteúdo real da experiência e dos raciocínios desenvolvidos sobre essa experiência”. As ciências naturais, diz Wundt, fazem abstração de qualquer observador.
“E essa abstração não é possível senão porque a necessidade, admitida pela filosofia empiro-criticismo, e nisso estando de acordo com a filosofia imanente, de ver (hinzudenker: literalmente: associar pelo pensamento) o individuo que experimenta no conteúdo de cada experiência é, em geral, uma hipótese destituída de base empírica e resultante da equivoca confusão do conteúdo real da experiência e dos raciocínios desenvolvidos sobre essa experiência” (obra cit., p. 382).
Os imanentes (Schuppe, Rehmke, Leclair, Schubert-Soldern), que, como veremos mais adiante, frisam sua viva simpatia para com Avenarius, tomam justamente por ponto de partida a ideia das relações “indissolúveis” entre o sujeito e o objeto. Mas, antes de analisar Avenarius, W. Wundt demonstra pormenorizadamente que a filosofia imanente não é senão uma ‘‘modificação” da de Berkeley e, por mais energia com que os imanentes neguem suas relações com Berkeley, as divergências verbais não devem dissimular aos nosso olhos “o conteúdo mais profundo das doutrinas filosóficas”, e, principalmente, das de Berkeley ou Fichte(4).
O escritor inglês Norman Smith expõe, em sua analise da filosofia da experiência pura, essa conclusão em termos ainda mais nítidos e categóricos:
“A maior parte dos que conhecem a Concepção humana do mundo, de Avenarius, concordarão provavelmente que, por mais convincente que seja sua crítica (do idealismo), seus resultados são absolutamente ilusórios. Se quisermos comentar sua teoria da experiência tal como no-la quer apresentar, isto é, como uma teoria verdadeiramente realista (genuinely realistic), escapa a qualquer exposição: sua penetração não ultrapassa a negação do subjetivismo, que ela tem a pretensão de refutar. Mas, se traduzirmos os termos técnicos de Avenarius em linguagem mais comum, perceberemos a fonte verdadeira de tal mistificação. Avenarius desviou nossa atenção de seus pontos fracos, dirigia do seu ataque principal contra o ponto fraco (trata-se do idealismo) fatal à sua própria teoria... O caráter vago da expressão experiência presta grande serviço a Avenarius no decorrer de todos os seus raciocínios. Essa palavra (experiência) relaciona-se, ora a quem experimenta, ora ao que é experimentado; essa última significação é acentuada quando se trata da natureza do nosso eu (of the self). Essas duas significações da palavra experiência coincidem, na pratica, com sua importante divisão em analise absoluta e analise relativa (já indiquei a importância dessa divisão, em Avenarius), e esses dois pontos de vista não são, na realidade, conciliados em sua filosofia. Porque, se ele considera como legitimo o postulado de que a experiência é idealmente completada pelo pensamento (a descrição completa do meio é idealmente completado pelo pensamento do eu observador), emite, assim, uma hipótese que não está em condições de concordar com a asserção de que nada existe fora das relações com o nosso eu (to the self). O complemento ideal da realidade dada, que se obtém decompondo os corpos materiais em elementos inaccessíveis à nossa sensibilidade (trata-se, aqui, dos elementos materiais descobertos pelas ciências naturais, isto é, os átomos, os eléctrons, etc. E não dos elementos inventados por Mach e Avenarius) “ou descrevendo a terra tal como era nos períodos em que o ser humano ainda não existia, esse complemento ideal não é, a bem dizer um complemento da experiência, mas um complemento do que experimentamos. Não faz senão completar um dos anéis da coordenação, que Avenarius considerava inseparáveis. Somos assim levados, não somente ao que nunca foi experimentado (has not been experienced), mas ao que nunca pôde, de maneira alguma, ser experimentado por seres semelhantes a nós. É precisamente aqui que a palavra de duplo sentido, experiência, vem em auxilio de Avenarius. Avenarius escreve que o pensamento é uma forma tão verdadeira (genuíno) da experiência quanto a percepção dos sentidos e retorna, desse modo ao velho argumento caduco (timeworn) do idealismo subjetivo: o pensamento e a realidade são indissolúveis, essa última não podendo ser percebida senão pelo pensamento, que supõe a existência do ser pensante. Os raciocínios positivos de Avenarius não nos oferecem, portanto, uma reconstituição profunda e original do realismo, mas, muito simplesmente, a do idealismo subjetivo cm sua forma mais rudimentar (crudest)(5).
A mistificação de Avenarius, repetindo o erro de Fichte, é, aqui, revelada perfeitamente bem. A famosa eliminação da antinomia entre o materialismo (Smith diz, erroneamente, o realismo) e o idealismo com auxilio de uma só palavra, experiência, evidencia um mito, quando passamos a questões concretas bem determinadas. Tal é, por exemplo, a da existência da terra antes do homem e antes de qualquer ser sensível. Logo voltaremos ao assunto mais pormenorizadamente. Limitemo-nos a observar, por um instante, que a mascara de Avenarius e seu realismo fictício são arrancados não somente por N. Smith, adversário de sua teoria, mas também por W. Schuppe, filosofo da imanência, que saudou a publicação da Concepção humana do mundo como uma confirmação do realismo ingênuo(6). Esse “realismo”, essa mistificação do materialismo apresentada por Avenarius, W. Schuppe a aceita sem reservas”. Sempre pretendi, com tanto direito quanto vós, hochverehrter Herr College (muito respeitável colega), um “realismo” semelhante escreve a Avenarius — e caluniaram-me, a mim, filosofo da imanência, qualificando-me de idealista subjetivo... “Minha concepção do pensamento... concorda admiravelmente (verträgi sich vortrefflich), muito respeitável colega, com a vossa teoria da experiência pura” (p. 384). Na realidade, somente nosso eu (das Ich, isto é, a abstrata consciência de si, de Fichte ou o pensamento destacado do cérebro) confere “a relação e a indissolubilidade aos dois termos da coordenação”. “O que quisestes eliminar, vós o supusestes implicitamente”, escrevia ainda Schuppe a Avenarius (p. 388). Aliás, é difícil dizer-se qual dos dois desmascara mais impiedosamente o mistificador Avenarius, se Smith com sua refutação nítida e direta, se Schuppe com seu elogio entusiasta da obra final de Avenarius. O ósculo de Wilhelm Schuppe não vale mais, em filosofia, do que o de Piotr Struve ou de M. Menchikov em política.
Assim também Oskar Ewald, que elogia Mach por não ter sofrido a influencia do materialismo, diz da coordenação de principio:
“Se é necessário erigir a correlação entre o termo central e o contra-termo em necessidade gnoseológica, da qual não se possam excluir algumas gritantes maiúsculas de que se componha a senha Empirocriticismo, fica-se colocado de um ponto de vista que em nada difere do idealismo absoluto”. (A expressão “idealismo absoluto” é aqui empregada erroneamente; devia ser dito idealismo subjetivo, porque o idealismo absoluto de Hegel admite a existência da terra, da natureza, do mundo físico, sem o homem, considerando a natureza como um “modo particular” da ideia absoluta). “Se, ao contrario, não se atinge logicamente essa coordenação e se se deixa aos contra-termos a independência completa; veem-se renascer todas as possibilidades metafísicas e, sobretudo, a do realismo transcendental” (loc. cit. pp. 56-57).
O Sr. Friedländer, que se dissimula sob o pseudônimo de Ewald, qualifica o materialismo de metafísico e de realismo transcendental. Defendendo também uma das variedades de idealismo, concorda inteiramente com os discípulos de Mach e para os quais o materialismo é uma metafísica, “a metafísica mais primitiva, do começo ao fim” (p. 134). Nesse particular, autor participa das opiniões de Bazarov e de todos nossos adeptos russos de Mach, que falam, igualmente, da essência “transcendental” e metafísica do materialismo. Voltaremos ao assunto. Importa-nos, no momento, mostrar, uma vez mais, tensão erudita e oca de ultrapassar o idealismo e o materialismo logo se desvanece, quando a questão é formulada com inflexível intransigência. “Deixar aos contra-termos a independência completa” é admitir (se se traduz o estilo pretensioso do hipócrita Avenarius em linguagem humana simples) que a natureza, o universo exterior são independentes da consciência e das sensações do homem; e precisamente isso é o que o materialismo sustenta. Erigir a teoria do conhecimento sobre o postulado da ligação indissolúvel entre o objeto e as sensações do homem (“complexos de sensações” = corpos; identidade dos elementos do mundo no psíquico e no físico; coordenação de Avenarius, etc.) é cair infalivelmente no idealismo. Tal é a simples, a inevitável verdade, que facilmente se descobre, por pouco que se lhe dê atenção, sob o montão, penosamente acumulado, da terminologia com pretensões cientificas de Avenarius, Schuppe, Ewald e tantos outros, terminologia que obscurece propositadamente a questão e distancia da filosofia o grande publico.
A “reconciliação" da teoria de Avenarius com o “realismo ingênuo" acabou por lançar a duvida entre os próprios discípulos do mestre. Rudolf Willy diz, por exemplo, que a usual asserção de que Avenarius teria chegado ao “realismo ingênuo” deve ser aceita cum grano salis.
“O realismo ingênuo não seria outra coisa, como dogma, senão a fé nas coisas em si, existentes independentemente do homem (ausserpersönliche), sob sua forma sensível-palpável”(7).
Por outras palavras, o materialismo é, segundo Willy, a única teoria do conhecimento que se harmoniza realmente e não fiticiamente com o “realismo ingênuo”. Willy naturalmente o repudia. Mas é obrigado a reconhecer que Avenarius reconstitui, em sua Concepção humana do mundo, a unidade da "experiência”, do “eu” do meio, apoiando-se em diversas concepções auxiliares e intermediarias complexas e, às vezes, bem artificiais (p. 171). A Concepção humana do mundo, sendo uma reação contra o primitivo idealismo de Avenarius, “traz nitidamente a marca de uma conciliação (eines Ausgleichs) entre o realismo ingênuo do senso comum e o idealismo gnoseológico da filosofia escolar. Mas não ousarei afirmar que semelhante conciliação possa restabelecer a unidade e a integridade da experiência”. (Willy diz Grunderfahrung, isto é, experiência fundamental; mais uma nova expressão!).
Valiosa confissão! A “experiência” de Avenarius não conseguiu conciliar o idealismo e o materialismo. Willy renuncia parece, à filosofia escolar da experiência, para substituí-la pela filosofia triplicadamente confusa da experiência “fundamental"...
Notas de rodapé:
(1) R. Avenarius, Bemerkungen zum Begriff des Gegenstandes der Psychologie, pág. 24. — N. L. (retornar ao texto)
(2) Ver Der menschliche Weltbegriff, 2.a edição, 1905 § 149. — N. L. (retornar ao texto)
(3) Johann Gottlieb Fichte, Sonneklarer Bericht an das grössere Publicum über das eigentliche Wesen der neuesten Philosophie – Ein Versuch den Leser zum Verstehen zu zwingen (Exposição luminosa, à intenção do grande público, da essência da mais moderna filosofia - Ensaio de obrigar o leitor a compreender), Berlim, 1801, págs. 178-179. — N. L. (retornar ao texto)
(4) Obra citada, § C — A filosofia imanente e o idealismo de Berkeley, págs. 373 e 375. Comparar págs. 386 e 407. Sobre a inevitabilidade do solipsismo desse ponto de vista, ver pág. 381. — N. L. (retornar ao texto)
(5) Norman Smith, Avenarius' Philosophy of pure Experience, em Mind, vol. XV, 1906, pág. 28. — N. L. (retornar ao texto)
(6) Ver carta aberta de W. Schuppe a R. Avenarius, na Vierteljahrsschrift f. wissenschaftliche Philosophie, t. XVII, 1893, págs. 364-388. — N. L. (retornar ao texto)
(7) R. Willy, Geg. d. Schulweisheit, pág. 170. — N. L. (retornar ao texto)
Inclusão | 27/02/2014 |