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Utopia é uma palavra grega: «u» em grego quer dizer «não», «topos» quer dizer lugar. Utopia é um lugar que não existe, uma fantasia, uma invenção, uma fábula.
A utopia em política é uma espécie de aspiração que não é possível concretizar, nem no presente nem no futuro, uma aspiração que não assenta nas forças sociais e que não se apoia no crescimento, no desenvolvimento das forças políticas, das forças de classe.
Quanto menos liberdade há num país, quanto mais exígua é a manifestação da luta aberta das classes, quanto mais baixo é o nível de instrução das massas, com tanto mais facilidade surgem normalmente as utopias políticas e mais tempo se mantêm.
Na Rússia actual há dois tipos de utopias políticas que se mantêm mais solidamente e exercem, pelo seu atractivo, uma certa influência sobre as massas. Trata-se da utopia liberal e da utopia populista.
A utopia liberal consiste na presunção de que seria possível, em paz e harmonia, sem ofender ninguém, sem varrer os Purichkévitch, sem uma luta de classe encarniçada e levada até ao fim, obter melhorias minimamente sérias na Rússia, na sua liberdade política, na situação das massas do povo trabalhador. É a utopia da paz entre a Rússia livre e os Purichkévitch.
A utopia populista é um devaneio do intelectual populista e do camponês trudovique segundo o qual seria possível, com uma distribuição nova e justa de todas as terras, suprimir o poder e a dominação do capital, suprimir a escravidão assalariada, ou seria possível manter uma divisão «justa», «igualitária» das terras sob a dominação do capital, sob o poder do dinheiro, sob a produção mercantil.
O que é que gera estas utopias? Porque se mantêm elas bastante solidamente na Rússia actual?
Elas são geradas pelos interesses das classes que lutam contra a velha ordem, contra a servidão e a arbitrariedade, «contra os Purichkévitch», em suma, e que não têm uma posição independente nessa luta. A utopia, os devaneios, são fruto dessa falta de independência, dessa fraqueza. O devaneio é atributo dos fracos.
A burguesia liberal em geral e a intelectualidade burguesa liberal, em particular, não podem deixar de aspirar à liberdade e à legalidade, pois que sem isso a dominação da burguesia não é completa, não é absoluta, não está assegurada. Mas a burguesia tem mais medo do movimento de massas do que da reacção. Daí a fraqueza surpreendente, incrível, do liberalismo em política, a sua completa impotência. Daí uma interminável sucessão de equívocos, de mentiras, de hipocrisias, de evasivas cobardes em toda a política dos liberais, que têm de jogar à democracia para ganhar as massas para o seu lado e que ao mesmo tempo são profundamente antidemocráticos, profundamente hostis ao movimento das massas, à sua iniciativa, à sua maneira de «assaltar o céu», como Marx uma vez se exprimiu a propósito de um dos movimentos de massas europeus do século passado(1).
A utopia do liberalismo é a utopia da impotência na causa da libertação política da Rússia, a utopia do cúpido ricaço, que quer partilhar «pacificamente» os privilégios com os Purichkévitch, apresentando esse nobre desejo como uma teoria da vitória «pacífica» da democracia russa. A utopia liberal é um devaneio sobre a maneira de vencer os Purichkévitch sem lhes infligir uma derrota, de quebrá-los sem lhes causar dor. É claro que esta utopia é nociva não apenas porque é uma utopia, mas também porque perverte a consciência democrática das massas. As massas que acreditam nessa utopia nunca conseguirão a liberdade; tais massas são indignas da liberdade; tais massas mereceram inteiramente ser escarnecidas pelos Purichkévitch.
A utopia dos populistas e dos trudoviques é o devaneio do pequeno proprietário, que se situa a meia distância entre o capitalista e o operário assalariado, sobre a eliminação da escravidão assalariada sem luta de classes. Quando a questão da libertação económica se tornar para a Rússia uma questão tão próxima, tão imediata, tão actual como é actualmente a questão da libertação política, então a utopia dos populistas revelar-se-á não menos nociva que a utopia dos liberais.
Mas presentemente a Rússia vive ainda a época da sua transformação burguesa, e não proletária; não é a questão da libertação económica do proletariado que amadureceu completamente, mas a questão da liberdade política, isto é (no fundo), da completa liberdade burguesa.
E nesta última questão a utopia dos populistas desempenha um papel histórico peculiar. Sendo uma utopia no que se refere a quais devem ser (e serão) as consequências económicas de uma nova divisão das terras, ela acompanha e é um sintoma de um grande ascenso democrático das massas camponesas, isto é, das massas que constituem a maioria da população na actual Rússia burguesa-feudal. (Na Rússia puramente burguesa, tal como na Europa puramente burguesa, o campesinato não será a maioria da população.)
A utopia dos liberais perverte a consciência democrática das massas. A utopia dos populistas, pervertendo a sua consciência socialista, acompanha, é um sintoma e mesmo em parte uma expressão do seu ascenso democrático.
A dialéctica da história é tal que os populistas e os trudoviques propõem e aplicam, como meio anticapitalista, uma medida capitalista extremamente consequente e enérgica no domínio da questão agrária na Rússia. O «igualitarismo» da nova divisão das terras é uma utopia, mas a completa ruptura, necessária para a nova partilha, com todas as velhas formas de propriedade da terra, latifundiária, em lotes ou «do Estado», é, para um país como a Rússia, a medida mais necessária, economicamente progressista, imperiosa no sentido democrático burguês.
Devemos recordar a notável afirmação de Engels:
«Aquilo que é falso no sentido económico formal pode ser verdadeiro no sentido histórico mundial.»(2)
Engels formulou esta profunda tese a propósito do socialismo utópico: esse socialismo era «falso» no sentido económico formal. Esse socialismo era «falso» quando declarava que a mais-valia era uma injustiça do ponto de vista das leis da troca. Contra esse socialismo tinham razão, no sentido económico formal, os teóricos da economia política burguesa, porque a mais-valia decorre das leis da troca de maneira inteiramente «natural», inteiramente «justa».
Mas o socialismo utópico tinha razão no sentido histórico mundial, pois ele era o sintoma, o intérprete, o precursor da classe que, gerada pelo capitalismo, se tornou agora, no princípio do século xx, uma força de massas, capaz de pôr fim ao capitalismo e que caminha irresistivelmente para isso.
É necessário recordar a profunda tese de Engels ao avaliar a actual utopia populista ou trudovique na Rússia (talvez não apenas na Rússia, mas em toda uma série de Estados asiáticos que vivem no século XX revoluções burguesas).
Falso no sentido económico formal, o democratismo populista é uma verdade no sentido histórico; falso como utopia socialista, esse democratismo é uma verdade dessa luta democrática peculiar, historicamente determinada, das massas camponesas que constitui um elemento inseparável da transformação burguesa e uma condição da sua completa vitória.
A utopia liberal desacostuma as massas camponesas de lutar. A utopia populista exprime o seu desejo de lutar, prometendo-lhes pela vitória milhões de benefícios, enquanto na realidade essa vitória dará apenas cem benefícios. Mas não será natural que os milhões de pessoas que vão para a luta, tendo vivido séculos numa ignorância, necessidade, miséria, sujidade, abandono e embrutecimento inauditos, exageram para o décuplo os frutos de uma possível vitória?
A utopia liberal mascara a cupidez dos novos exploradores de partilhar os privilégios com os velhos exploradores. A utopia populista é a expressão do desejo de milhões de trabalhadores da pequena burguesia de acabar completamente com os antigos exploradores feudais e é a falsa esperança de eliminar «ao mesmo tempo» os novos exploradores capitalistas.
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É claro que os marxistas, hostis a todas as utopias, devem defender a independência da classe que pode lutar desinteressadamente contra o feudalismo precisamente porque nem num centésimo tem a participação na propriedade que faz da burguesia um adversário hesitante e frequentemente um aliado dos feudais. Os camponeses participam na pequena produção mercantil; eles podem, com uma favorável concorrência de circunstâncias históricas, obter a mais completa supressão do feudalismo, mas manifestarão sempre, não por acaso mas inevitavelmente, certas vacilações entre a burguesia e o proletariado, entre o liberalismo e o marxismo.
É claro que os marxistas devem separar cuidadosamente da casca das utopias populistas o núcleo são e valioso do democratismo sincero, resoluto e combatente das massas camponesas.
Na velha literatura marxista dos anos 80 do século passado pode-se encontrar uma aspiração aplicada de maneira sistemática de destacar esse valioso núcleo democrático. Um dia os historiadores estudarão sistematicamente essa aspiração e descobrirão a sua ligação com aquilo que recebeu o nome de «bolchevismo» no primeiro decénio do século XX.
Notas de rodapé:
(1) A expressão citada foi extraída da carta de K. Marx a L. Kuggelmann de 12 de Abril de 1871, na qual faz uma apreciação da Comuna de Paris. (retornar ao texto)
(2) Lénine cita o prefácio de F. Engels à primeira edição alemã do livro de K. Marx Miséria da Filosofia (retornar ao texto)
Fonte |
Inclusão | 20/01/2016 |