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Primeira edição: Publicado pela primeira vez em 18 de janeiro de 1929, no nº 15 do Pravda.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, tomo 3, pág: 176 a 189. Edições Avante! - Lisboa, Edições Progresso - Moscovo
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t. 39, pp. 64-84.
Transcrição: Alexandre Linares
HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1977.
"Camaradas, o tema da conferência de hoje, consoante com o plano traçado por vocês que me foi comunicado, é o Estado. Desconheço até que ponto vocês estejam por dentro deste tema. Se não me engano, os seus cursos acabam de principiar e, pela primeira vez, abordaram sistematicamente este tema. Se assim for, pode muito bem acontecer que na primeira conferência sobre este tema tão difícil eu não consiga que a minha exposição seja suficientemente clara e compreensível para muitos dos meus ouvintes. Em tal caso, rogo-lhes que não se preocupem, porque o problema do Estado é um dos mais complicados e difíceis, com certeza aquele em que mais confusão semearam os eruditos, escritores e filósofos burgueses. Não cabe esperar, portanto, que se possa chegar a uma profunda compreensão do tema com uma breve aula, numa só sessão. Após a primeira aula sobre este tema, deverão tomar nota dos trechos que não tenham compreendido ou que não lhes resultarem claros, para voltarmos sobre eles duas, três e quatro vezes, a fim de, mais tarde, poder ser completado e aclarado o que não for percebido, quer mediante a leitura, quer mediante diversas aulas e conferências. Espero que possamos voltar a nos reunir para trocar opiniões sobre todos os pontos complementares e ver o que é que ficou mais obscuro. Espero, aliás, que para além das aulas e conferências, dediquem algum tempo a ler, pelo menos, algumas das obras mais importantes de Marx e Engels. Não há nenhuma dúvida que estas obras, as mais importantes, se acham na listagem de livros recomendados e nos manuais que estão disponíveis na biblioteca de vocês para os estudantes da escola do Soviete e do Partido; e embora, mais uma vez, alguns de vocês se sintam no começo, desanimados pela dificuldade da exposição, torno a advertir-lhes que não devem preocupar-se com isso; o que não resulta claro à primeira leitura, tornará claro na segunda leitura, ou quando logo a seguir foquem o problema de outro ângulo um bocado diferente. Porque, repito mais uma vez, o problema é tão complexo e tem sido tão ensarilhado polos eruditos e escritores burgueses, que quem desejar estudá-lo a sério e chegar a dominá-lo por conta própria, deve abordá-lo várias vezes, voltar sobre ele uma e outra vez e considerá-lo de vários ângulos, para poder chegar a uma compreensão clara e definida dele. Porque é um problema fundamental, tão basilar em toda política e porque, não apenas em tempos turbulentos e revolucionários como os que vivemos, mas inclusive nos mais pacíficos, toparão com ele todos os dias em qualquer jornal, a respeito de qualquer assunto econômico ou político, será tanto mais fácil voltar sobre ele. Todos os dias, por um motivo ou outro, tornarão vocês à pergunta: o que é o Estado, qual a sua natureza, a sua significação e qual a atitude do nosso partido, o partido que luta pela derrubada do capitalismo, o partido comunista, qual é a sua atitude no que diz respeito ao Estado? E o mais importante é que, como resultado das leituras que realizem, como resultado das aulas e conferências que escutem sobre o Estado, adquirem a capacidade de focar este problema por si próprios, já que o defrontarão com os mais diversos motivos, em relação com as questões triviais, nos contextos mais inesperados, e em discussões e debates com adversários. E só quando aprenderem a se orientar por si próprios neste problema é que poderão considerar-se firmes nas suas convicções e capazes para as defenderem com sucesso contra qualquer um e em qualquer momento.
Depois destas breves considerações, passarei a tratar o problema em si: o que é o Estado, como surgiu e, nomeadamente, qual deve ser a atitude, no que concerne ao Estado, da parte do partido da classe operária, o partido dos comunistas, que luta pela total derrocada do capitalismo.
Já tenho dito que dificilmente se encontrará outro problema em que deliberada e inconscientemente, tenham semeado tanta confusão os representantes da ciência, da filosofia, da jurisprudência, da economia política e do jornalismo burgueses como o problema do Estado. Ainda hoje o tema é confundido muito amiúde com problemas religiosos, não só pelos representantes de doutrinas religiosas (é completamente natural esperar tal atitude dentre eles), mas mesmo pessoas que se consideram livres de preconceitos religiosos confundem muito a questão específica do Estado com problemas religiosos e tentam elaborar uma doutrina – não raro e complexa, com uma focagem e uma argumentação ideológica e filosófica — defendendo que o Estado é qualquer coisa divina, sobrenatural, certa força, em virtude da qual tem vivido a humanidade, que confere, ou pode conferir aos homens, ou que contém em si qualquer coisa que não é própria do homem, mas vinda de fora: uma força de origem divina. E cumpre dizer que esta doutrina está tão estreitamente ligada aos interesses das classes exploradoras – dos proprietários e dos capitalistas —, serve tão bem aos seus interesses, impregnou tão fundamente todos os costumes, as concepções, a ciência dos senhores representantes da burguesia, que encontrarão vocês vestígios dela a cada passo, mesmo na concepção do Estado que possuem os mencheviques e esseristas, os quais rejeitam a ideia de que se acham sob o influxo de preconceitos religiosos e estão convencidos de poderem considerar o Estado com serenidade. Este problema tem sido tão ensarilhado e complicado porque atinge, mais do que outro qualquer (cedendo lugar nisto só aos fundamentos da ciência econômica), os interesses das classes dominantes. A teoria do Estado serve para justificar os privilégios sociais, a existência da exploração, a existência do capitalismo, razão pela qual seria o maior dos erros esperar imparcialidade neste problema, abordando-o na crença de que quem se julga cientista possa apresentar uma concepção puramente científica do assunto. Quando se tenham familiarizado com o problema do Estado, com a doutrina do Estado e com a teoria do Estado, e o tenham aprofundado suficientemente, descobrirão sempre a luia entre classes diferentes, uma luta que se reflete ou se exprime num conflito entre concepções sobre o Estado, na apreciação do papel e da significação do Estado.
Para abordarmos este problema do jeito mais científico, cumpre dar, pelo menos, uma rápida olhadela na história do Estado, no seu surgimento e evolução. Com certeza, quando se trata de um problema de ciência social, o mais necessário para adquirir realmente o hábito de focar este problema de forma correta, sem perder-nos num cúmulo de detalhes ou na imensa variedade de opiniões contraditórias, o mais importante para abordar o problema cientificamente, é não esquecer o nexo histórico fundamental, analisar cada problema do ponto de vista de como é que surgiu na história o fenômeno dado e quais foram as principais etapas do seu desenvolvimento. E, do ponto de vista do seu desenvolvimento, é preciso examinar no que se tornou hoje.
Ao estudarmos este problema do Estado, temos de nos referir à obra de Engels, “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. Trata-se de uma das obras fundamentais do socialismo moderno. Cada uma de cujas frases pode aceitar-se com plena confiança, na segurança de que não foi escrita à toa, senão que se baseia numa abundante documentação histórica e política. Sem dúvida, nem todas as partes desta obra estão expostas em forma igualmente acessível e compreensível, algumas delas supõem um leitor que já possui alguns conhecimentos de história e de economia. (...) Cito este livro de Engels porque nele se faz uma abordagem correta do problema do ponto de vista mencionado. Começa com um esboço histórico das origens do Estado.
Para tratar devidamente este problema, o mesmo que outro qualquer – por exemplo, o das origens do capitalismo, da exploração do homem pelo homem, do socialismo, de como surgiu o socialismo, quais condições o engendraram —, qualquer destes problemas só pode ser focado com segurança e confiança se se der uma olhadela na história do seu desenvolvimento em conjunto. Com relação a este problema cumpre ter presente , antes de mais nada, que nem sempre existiu o Estado. Houve um tempo em que não havia Estado. Este ocorre no lugar e no momento em que surge a divisão da sociedade em classes, opondo os exploradores e os explorados.
Antes de surgir a primeira forma de exploração do homem pelo homem, a primeira forma da divisão em classes – proprietários de escravos e escravos —, existia a família patriarcal ou, como por vezes é chamada, a família do clã (ou gens; naquela altura viviam juntas as pessoas de uma mesma linhagem ou origem). Na vida de muitos povos primitivos subsistem pegadas muito definidas daqueles tempos ancestrais e, se consultarmos qualquer obra sobre a cultura primitiva, encontraremos descrições, indicações e reminiscências mais ou menos precisas do fato de que houve uma época mais ou menos similar a um comunismo primitivo, em que ainda não existia a divisão da sociedade em escravistas e escravos. Nessa altura, não havia Estado, não havia aparelho especial nenhum para o emprego sistemático da força e a submissão do povo pela força. Esse aparelho é o que se chama Estado.
Na sociedade primitiva, quando as gentes viviam em pequenos grupos familiares e ainda se achavam nas etapas mais baixas do desenvolvimento, em condições próximas do selvagismo – época separada por vários milhares de anos da moderna sociedade humana civilizada —, não se observam ainda indícios da existência do Estado. Achamos o predomínio do costume, a autoridade, o respeito, o poder de que gozavam os anciãos do clã; achamos que, por vezes, este poder era reconhecido às mulheres – a posição das mulheres nada tinha de parecido com a de opressão e falta de direitos das mulheres de hoje —, mas, em nenhuma parte achamos uma categoria especial de indivíduos diferenciados que governem os outros e que, com o fim de governarem, disponham sistemática e permanentemente de certo aparelho de coerção, de um aparelho de violência, tal como o que representam atualmente, como todos sabem, os grupos especiais de homens armados, os cárceres e demais meios para submeter pela força a vontade dos outros, tudo o que constitui a essência do Estado.
Se deixarmos de lado as chamadas doutrinas religiosas, as sutilezas, os argumentos filosóficos e as diversas opiniões erigidas polos eruditos burgueses e procurarmos atingir a verdadeira essência do assunto, veremos que, na realidade, o Estado é um aparelho de governo, com certa autonomia em relação à sociedade humana. Quando aparece um grupo especial de homens dedicados exclusivamente a governar e que, para governar, precisam de um aparelho especial de coerção para submeter a vontade de outros pela força – cárceres, grupos especiais de homens, exércitos, etc., é este o momento em que surge o Estado.
Mas houve um tempo em que não existia o Estado, em que os vínculos gerais, a sociedade mesma, a disciplina e organização do trabalho se mantinham pela força do costume e da tradição, pela autoridade e respeito de que gozavam os anciãos do clã ou as mulheres – que naquela altura não só gozavam de uma posição social igual à dos homens, senão que mesmo, não raro, gozavam até de uma posição social superior —, e em que não havia uma categoria especial de pessoas que se especializassem em governar. A história demonstra que o Estado, como aparelho especial para a coerção dos homens, surge apenas onde e quando ocorre a divisão da sociedade em classes, quer dizer, a divisão em grupos de pessoas, algumas das quais se apropriam permanentemente do trabalho alheio, por meio do qual uns exploram os outros.
E esta divisão da sociedade em classes, através da história, é o que devemos ter sempre presente, com toda claridade, como um fato fundamental. O desenvolvimento de todas as sociedades humanas ao longo de milhares de anos, em todos os países, sem exceção, revela-nos uma sujeição geral a leis, uma regularidade e consequência; de jeito que temos, primeiro, uma sociedade sem classes, a sociedade originária, patriarcal, primitiva, em que não existiam aristocratas; a seguir, uma sociedade baseada na escravatura, uma sociedade escravista. Toda a Europa moderna e civilizada passou por essa etapa: a escravatura reinou soberana há dois mil anos. Por essa etapa passou também a grande maioria dos povos de outros lugares do mundo. Ainda hoje se conservam rastros da escravatura entre os povos menos desenvolvidos; na África, por exemplo, persiste ainda, na atualidade, a instituição da escravatura. A divisão em proprietários de escravos e escravos foi a primeira divisão importante. O primeiro grupo não só possuía todos os meios de produção – a terra e as ferramentas, por muito primitivas que fossem naquela altura —, senão que também eram senhores dos homens. Este grupo era conhecido como o dos proprietários de escravos, enquanto os que trabalhavam e subministravam o trabalho a outros eram conhecidos como escravos.
Esta forma foi seguida na história por outra: o feudalismo. Na grande maioria dos países, a escravatura, no decurso do seu desenvolvimento, evoluiu para a servidão. A divisão fundamental da sociedade era: os terratenentes proprietários de servos e os camponeses servos. Mudou a forma dos relacionamentos entre os homens. Os possuidores de escravos consideravam os escravos como a sua propriedade; a lei confirmava este conceito e considerava o escravo como um objeto que pertencia integralmente ao proprietário de escravos. No que ao camponês servo diz respeito, subsistia a opressão de classe e a dependência, mas não se julgava que os camponeses fossem um objeto de propriedade do terratenente proprietário de servos; este apenas tinha direito a apossar-se do seu trabalho, a obrigá-los a executarem certos serviços. Na prática, como todos vocês sabem, a servidão, nomeadamente na Rússia, onde subsistiu mais tempo e revestiu as formas mais brutais, não se diferenciava em nada da escravatura. Mais tarde, com o desenvolvimento do comércio, o aparecimento do mercado mundial e o desenvolvimento da circulação monetária, dentro da sociedade feudal surgiu uma nova classe, a classe burguesa. Da mercadoria, a troca de mercadorias e o aparecimento do poder do dinheiro, surgiu o poder do capital. Durante o século XVIII, ou por melhor dizer, desde os fins do século XVIII e durante o século XIX, explodiram revoluções em todo o mundo. O feudalismo foi abolido em todos os países da Europa Ocidental. A Rússia foi o derradeiro país onde isto aconteceu. Em 1861, produziu-se também na Rússia uma mudança radical, como consequência disso, uma forma de sociedade foi substituída por outra: o feudalismo foi substituído polo capitalismo, sob o qual continuou a existir a divisão em classes, bem como diversas heranças e sobrevivências do regime de servidão, mas fundamentalmente a divisão em classes assumiu uma forma diferente.
Os donos do capital, os donos da terra e os donos das fábricas constituíam e continuam a constituir, em todos os países capitalistas, uma insignificante minoria da população, que governa totalmente o trabalho de todo o povo e, portanto, governa, oprime e explora toda a massa de trabalhadores, a maioria dos quais são proletários, trabalhadores assalariados, que ganham a vida no processo de produção, obrigados a vender a sua mão de obra, a sua força de trabalho. Com a passagem ao capitalismo, os camponeses, que foram divididos e oprimidos sob o feudalismo, tornaram-se, em parte (a maioria), proletários e em parte (a minoria) camponeses ricos, os quais, por sua vez, passaram a contratar trabalhadores e constituíram a burguesia rural.
Este fato fundamental – a passagem da sociedade, das formas primitivas de escravatura ao feudalismo e, por último, ao capitalismo — é o que devem vocês ter sempre presente, já que apenas lembrando este fato fundamental, enquadrando todas as doutrinas políticas neste quadro fundamental, estarão em condições de valorizar devidamente essas doutrinas e compreender a que se propõem. Pois cada um destes grandes períodos da história da humanidade – o escravista, o feudal e o capitalista— abrange dezenas e centenares de séculos, apresenta uma tal quantidade de formas políticas, uma tal variedade de doutrinas políticas, opiniões e revoluções, que só poderemos chegar a compreender esta enorme diversidade e esta imensa variedade – nomeadamente em relação às doutrinas políticas, filosóficas e outras dos eruditos e políticos burgueses —, desde que soubermos fixar firmemente, como a um fio orientador fundamental, a divisão da sociedade em classes, as mudanças das formas da dominação de classes e se analisarmos, a partir deste ponto de vista, todos os problemas sociais— econômicos, políticos, espirituais, religiosos, etc.
Se vocês considerarem o Estado do ponto de vista desta divisão fundamental, verão que, antes da divisão da sociedade em classes, como já tenho dito, não existia qualquer Estado. Mas, quando surge e se afiança esta divisão da sociedade em classes, quando surge a sociedade de classes, também surge e se afiança o Estado. A história da humanidade conhece dezenas e centenas de países que tenham passado ou estão a passar na atualidade pela escravatura, o feudalismo e o capitalismo. Em cada um deles, apesar das enormes mudanças históricas que tiveram lugar, apesar de todas as vicissitudes políticas e de todas as revoluções relacionadas com este desenvolvimento da humanidade e com a transição da escravatura ao capitalismo, passando pelo feudalismo e até chegar à atual luta mundial contra o capitalismo, vocês perceberão sempre o surgimento do Estado. Este sempre se caracterizou como um determinado aparelho com relativa autonomia em relação à sociedade, consistindo num grupo de pessoas dedicadas exclusiva ou quase exclusivamente ou principalmente a governar. Os homens dividem-se em governados e em especialistas em governar, que se colocam por cima da sociedade e são chamados governantes, representantes do Estado. Este aparelho, este grupo de pessoas que governa os demais, toma posse sempre de certos meios de coerção e de violência física, que se exprime sobre os homens primitivos, através dos tipos mais aperfeiçoados de armas, na época da escravatura, ou nas armas de fogo inventadas na Idade Média ou, por último, nas armas modernas, que, no século XX, são verdadeiras maravilhas da técnica e se baseiam integralmente nas últimas conquistas da tecnologia moderna. Os métodos de violência mudaram, mas em toda a parte existiu um Estado, existiu em cada sociedade um grupo de pessoas que governavam, mandavam, dominavam e que, para conservarem o seu poder, dispunham de um aparelho de coerção física, de um aparelho de violência, com as armas que correspondiam ao nível técnico da dada época. E apenas examinando estes fenômenos gerais, perguntando-nos por que não existiu Estado algum quando não havia classes, quando não havia exploradores e explorados e por que ocorreu quando surgiram as classes; só assim é que acharemos uma resposta definida à pergunta de qual é a essência e a significação do Estado.
O Estado é uma máquina para manter a dominação de uma classe sobre outra. Quando não existiam classes na sociedade, quando, antes da época da escravatura, os homens trabalhavam em condições primitivas de maior igualdade, em condições em que a produtividade do trabalho era ainda muito baixa e quando o homem primitivo quase nem podia conseguir os meios indispensáveis para a existência mais tosca e primitiva, então não surgiu, nem podia fazê-lo, um grupo especial de homens incumbidos especialmente de governar e dominar o resto da sociedade. Apenas quando apareceu a primeira forma da divisão da sociedade em classes, quando ocorreu a escravatura, quando uma classe determinada de homens, ao se concentrar nas formas mais rudimentares do trabalho agrícola, pôde produzir excedente e quando este excedente tornou-se absolutamente necessário para a mísera existência da classe dos proprietários dos escravos, então, para que esta pudesse afiançar-se, cumpria que aparecesse um Estado.
E apareceu o Estado escravista, um aparelho que deu poder aos proprietários de escravos e lhes permitiu governar os escravos. A sociedade e o Estado eram, naquela altura, muito mais reduzidos do que na atualidade, possuíam meios de comunicação incomparavelmente mais rudimentares; não existiam os modernos meios de comunicação. As montanhas, os rios e os mares eram obstáculos incomparavelmente maiores do que hoje, e o Estado formou-se dentro dos limites geográficos muito mais estreitos. Um aparelho estatal tecnicamente fraco servia a um Estado confinado dentro de limites relativamente estreitos e com uma esfera de ação limitada. Mas, de qualquer maneira, existia um aparelho que obrigava os escravos a permanecerem na escravatura, que mantinha uma parte da sociedade subjugada e oprimida pela outra. É impossível obrigar a maior parte da sociedade a trabalhar em forma sistemática para a outra parte da sociedade sem um aparelho permanente de coerção. Enquanto não existiram classes, não houve um aparelho desse tipo. Quando ocorreram as classes, sempre e em toda a parte, à medida que a divisão crescia e se consolidava, ocorria também uma instituição especial: o Estado. As formas de Estado eram muito variadas. Já durante o período da escravatura, achamos diversas formas de Estado nos países mais avançados, mais cultos e civilizados da época, por exemplo na antiga Grécia e na antiga Roma, que se baseavam integralmente na escravatura. Já tinha surgido naquela altura uma diferença entre monarquia e república, entre aristocracia e democracia. A monarquia é o poder de uma só pessoa, a república é a ausência de autoridades não eleitas; a aristocracia é o poder de uma minoria relativamente pequena, a democracia o poder do povo (democracia em grego significa literalmente poder do povo). Todas estas diferenças surgiram na época da escravatura. Apesar destas diferenças, o Estado da época escravista era um Estado escravista, quer se tratasse de uma monarquia, quer de uma república, aristocrática ou democrática. Em todos os cursos de história da antiguidade, ao escutarem a conferência sobre este tema, lhes falarão da luta travada entre os Estado monárquicos e os republicanos. Mas o fato fundamental é que os escravos não eram considerados seres humanos; não apenas não eram considerados cidadãos, quanto que nem sequer eram considerados seres humanos. O direito romano considerava-os como bens. A lei sobre o homicídio, para não mencionarmos outras leis de proteção da pessoa, não amparava os escravos. Defendia apenas os proprietários de escravos, os únicos que eram reconhecidos como cidadãos com plenos direitos. Tanto fazia que governasse uma monarquia ou uma república; tanto uma como outra eram uma república dos proprietários de escravos ou uma monarquia dos proprietários de escravos. Estes gozavam de todos os direitos, enquanto os escravos, perante a lei, eram bens; e contra o escravo não apenas podia perpetrar-se qualquer tipo de violência, mas inclusive matar um escravo não era considerado delito. As repúblicas escravistas diferiam na sua organização interna; havia repúblicas aristocráticas e repúblicas democráticas. Na república aristocrática participava das eleições um reduzido número de privilegiados; na república democrática participavam todos, mas sempre todos os proprietários de escravos, todos salvo os escravos. Deve levar-se em conta este fato fundamental, já que deita mais luz do que qualquer outro sobre o problema do Estado, e apresenta a nu a natureza do Estado.
O Estado é uma máquina para que uma classe reprima outra, uma máquina para a sustentação de uma classe por outras classes, subordinadas. Esta máquina pode apresentar diversas formas. O Estado escravista podia ser uma monarquia, uma república aristocrática e mesmo uma república democrática. Na realidade, as formas de governo variavam extraordinariamente, mas a sua essência era sempre a mesma: os escravos não gozavam de qualquer direito e continuavam a ser uma classe oprimida; não eram considerados seres humanos. Achamos o mesmo no Estado feudal.
A mudança na forma de exploração transformou o Estado escravista em Estado feudal. Isto teve uma enorme importância. Na sociedade escravista, o escravo não gozava de qualquer direito e não era considerado um ser humano; na sociedade feudal, o camponês achava-se sujeito à terra. O principal traço da servidão era que os camponeses (e naquela altura os camponeses constituíam a maioria, já que a população urbana era ainda muito pouco desenvolvida) eram considerados sujeitos à terra; daí é que deriva este conceito mesmo: a servidão. O camponês podia trabalhar certo número de dias para si próprio na parcela que lhe assinalava o senhor feudal; os restantes dos dias o camponês servo trabalhava para o seu senhor. Subsistia a essência da sociedade de classes: a sociedade baseava-se na exploração de classe. Apenas os proprietários da terra desfrutavam de plenos direitos; os camponeses não tinham nenhum direito. Na prática, a sua situação não diferia muito da situação dos escravos no Estado escravista. No entanto, tinha-se aberto um caminho mais amplo para a sua emancipação, para a emancipação dos camponeses, já que o camponês servo não era considerado propriedade direta do senhor feudal. Podia trabalhar uma parte do seu tempo na sua própria parcela; podia, por assim dizer, ser, até certo ponto, dono de si próprio; e ao alargarem-se as hipóteses de desenvolvimento da troca e dos relacionamentos comerciais, o sistema feudal foi-se desintegrando progressivamente e foram se alargando progressivamente as possibilidades de emancipação da classe camponesa. A sociedade feudal foi sempre mais complexa do que a sociedade escravista. Havia um importante fator de desenvolvimento do comércio e da indústria, coisa que, mesmo nessa época, conduziu ao capitalismo. O feudalismo predominava na Idade Média. E também aqui diferiam as formas do Estado; também aqui achamos a monarquia e a república, embora se manifestasse esta última de maneira muito mais fraca. Mas sempre se considerava o senhor feudal como o único governante. Os camponeses servos careciam de quaisquer direitos políticos.
Nem sob a escravatura nem sob o feudalismo podia uma minoria de pessoas dominar a enorme maioria sem recorrer à coerção. A história está cheia de constantes tentativas das classes oprimidas de se libertarem da opressão. A história da escravatura fala-nos de guerras de emancipação dos escravos que duraram décadas inteiras. O nome de “espartaquistas”, entre parênteses, adotado agora pelos comunistas alemães – o único partido alemão que realmente luta contra o jugo do capitalismo —, estes adotaram-no devido a que Espártaco foi o herói mais destacado de uma das maiores sublevações de escravos que teve lugar há cerca de dois mil anos. Durante vários anos, o Império Romano, que parecia onipotente e se apoiava por inteiro na escravatura, sofreu o choque e as sacudiduras de uma extensiva revolta de escravos, armados e agrupados num vasto exército, sob a direção de Espártaco. Afinal, foram derrotados, apresados e torturados polos proprietários de escravos. Guerras civis como estas surgem ao longo de toda a história da sociedade de classes. O que acabo de assinalar é um exemplo da mais importante destas guerras civis na época da escravatura. Do mesmo modo, toda a época do feudalismo acha-se semeada por constantes sublevações dos camponeses. Na Alemanha, por exemplo, na Idade Média, a luta entre as duas classes – proprietários terratenentes e servos — assumiu amplas proporções e transformou-se numa guerra civil dos camponeses contra os senhores feudais. Todos vocês conhecem exemplos semelhantes de constantes revoltas dos camponeses contra os senhores feudais na Rússia.
Para manterem a sua dominação e assegurar o seu poder, os senhores feudais necessitavam de um aparelho com o que pudessem subjugar uma enorme quantidade de pessoas e submetê-las a certas leis e normas; e todas essas leis, no fundamental, reduziam-se a uma só cousa; a manutenção do poder dos senhores feudais sobre os camponeses servos. Tal era o Estado feudal, que, na Rússia, por exemplo, ou nos países asiáticos muito atrasados (nos quais ainda impera o feudalismo) diferia na sua forma: era uma república ou uma monarquia. Quando o Estado era uma monarquia, reconhecia-se o poder de um indivíduo; quando era uma república, num ou outro grau era reconhecida a participação de representantes eleitos da sociedade terratenente; isto acontecia na sociedade feudal. A sociedade feudal representava uma divisão em classes na qual a imensa maioria – os camponeses servos— estava totalmente submetida a uma insignificante minoria, aos senhores feudais, donos da terra.
O desenvolvimento do comércio, o desenvolvimento do intercâmbio de mercadorias, conduziram à formação de uma nova classe, a dos burgueses. O capital conformou-se como tal em fins da Idade Média, quando, depois da descoberta da América, o comércio mundial adquiriu um desenvolvimento enorme, quando aumentou a quantidade de metais preciosos, quando a prata e o ouro se tornaram meios de troca, quando a circulação monetária permitiu a certos indivíduos acumular enormes riquezas. A prata e o ouro foram reconhecidos como riqueza em todo o mundo. Declinou o poder econômico da classe terratenente e cresceu o poder da nova classe, a dos representantes do capital. A sociedade reorganizou-se de modo tal, que todos os cidadãos pareciam ser iguais, desapareceu a velha divisão em proprietários de escravos e escravos, e todos os indivíduos foram considerados iguais perante a lei, para além do capital que possuíssem – proprietários de terras ou pobres homens sem mais propriedade do que a sua força de trabalho, todos eram iguais perante a lei. A lei protege todos por igual; protege a propriedade dos que a possuem contra os ataques das massas que, ao não possuírem nenhuma propriedade, ao não possuírem mais do que a sua força de trabalho, vão se tornando mais pobres e arruinando-se aos poucos, até se converterem em proletários. Tal é a sociedade capitalista.
Não posso demorar na análise pormenorizada da sociedade capitalista. Já voltarão vocês a isso quando estudarem o programa do partido: terão uma descrição da sociedade capitalista. Esta sociedade foi avançando contra a servidão, contra o velho regime feudal, sob a consigna da liberdade. Mas era a liberdade para os proprietários. E quando se desintegrou o feudalismo, coisa que aconteceu em fins do século XVIII e começos do século XIX – na Rússia aconteceu mais tarde do que noutros países, em 1861 —, o Estado feudal foi substituído pelo Estado capitalista, que proclamava como consigna a liberdade para todo o povo, que afirma exprimir a vontade do povo todo e nega ser um Estado de classe. E é neste ponto que se iniciou uma luta entre os socialistas, que brigam pela liberdade de todo o povo, e o Estado capitalista, luta que conduziu hoje à criação da República Socialista Soviética e que está se estendendo no mundo inteiro.
Para compreendermos a luta principiada contra o capital mundial, para percebermos a essência do Estado capitalista, devemos lembrar que, quando ascendeu o Estado capitalista contra o Estado feudal, entrou na luta sob a palavra de ordem da liberdade. A abolição do feudalismo significou a liberdade para os representantes do Estado capitalista e serviu aos seus fins, já que a servidão desabava e os camponeses tinham a possibilidade de possuir, em plena propriedade, a terra adquirida por eles mediante um resgate ou, em parte, pelo pagamento de um tributo; isto não interessava ao Estado, que protegia a propriedade sem importar-se com a sua origem, pois o Estado se baseava na propriedade privada. Em todos os Estados civilizados modernos, os camponeses tornaram-se proprietários privados. Inclusive, quando o senhor feudal cedia parte das suas terras aos camponeses, o Estado protegia a propriedade privada, ressarcindo o proprietário com uma indenização, permitindo-lhe obter dinheiro pela terra. O Estado, por assim dizer, declarava que ampararia totalmente a propriedade privada e lhe outorgava toda a classe de apoio e proteção. O Estado reconhecia os direitos de propriedade de todo comerciante, dono de fábrica e industrial. E esta sociedade, baseada na propriedade privada, no poder do capital, na sujeição total dos operários despossuídos e das massas trabalhadoras dos camponeses, proclamava que o seu regime se baseava na liberdade. Ao lutar contra o feudalismo, proclamou a liberdade de propriedade e sentia-se especialmente orgulhosa de que o Estado tivesse deixado de ser, supostamente, um Estado de classe.
Porém, o Estado continuava a ser uma máquina que ajudava os capitalistas a manterem submetidos os camponeses pobres e a classe operária, embora, na sua aparência exterior, estes fossem livres. Proclamava o sufrágio universal e, por meio dos seus defensores, pregadores, eruditos e filósofos, que não era um Estado de classe. Inclusive, agora, quando as repúblicas socialistas soviéticas começaram a combater o Estado, acusam-nos de sermos violadores da liberdade e de erigirmos um Estado baseado na coerção, na repressão de uns por outros, enquanto eles representam um Estado de todo o povo, um Estado democrático. E este problema, o problema do Estado, é agora, quando principiou a revolução socialista mundial e quando a revolução triunfa em alguns países, quando a luta contra o capital tem se agudizado ao extremo, um problema que tem adquirido a maior importância e pode dizer-se que tem se tornado o problema mais candente, no foco de todos os problemas políticos e de todas as polêmicas políticas do presente.
Qualquer que for o partido que tomarmos na Rússia ou em qualquer dos países mais civilizados, vemos que todas as polêmicas, discrepâncias e opiniões políticas giram agora em torno da concepção do Estado. É o Estado, num país capitalista, numa república democrática – nomeadamente em repúblicas como a Suíça ou os Estados Unidos da América —, nas repúblicas democráticas mais livres, a expressão da vontade popular, resultante da decisão geral do povo, a expressão da vontade nacional, etc., ou o Estado é uma máquina que permite aos capitalistas desses países conservarem o seu poder sobre a classe operária e os camponeses e camponesas? Eis o problema fundamental em torno do qual giram todas as polêmicas políticas no mundo inteiro. O que se diz sobre o bolchevismo? A imprensa burguesa deita injúrias sobre os bolcheviques. Não acharão um só jornal que não repita a acusação na moda de que os bolcheviques violam a soberania do povo. Se os nossos mencheviques e esseristas (“socialistas-revolucionários”), na sua simplicidade de espírito (e porventura não simplicidade, ou talvez aquela simplicidade a que se refere o provérbio de que é pior do que a ruindade) julgam que inventaram e descobriram a acusação de que os bolcheviques violaram a liberdade e a soberania do povo, enganam-se do jeito mais ridículo. Hoje, todos os jornais mais ricos dos países mais ricos, que gastam dezenas de milhões na sua difusão e disseminam mentiras burguesas e a política imperialista em dezenas de milhões de exemplares, todos esses jornais repetem esses argumentos e acusações fundamentais contra o bolchevismo, a saber: que os EUA, a Inglaterra e a Suíça são Estados avançados, baseados na soberania do povo, enquanto a república bolchevique é um Estado de bandidos em que não se conhece a liberdade e que os bolcheviques são violadores da ideia da soberania do povo e mesmo chegaram ao extremo de dissolverem a Assembleia Constituinte. Estas terríveis acusações contra os bolcheviques repetem-se no mundo todo. Estas acusações conduzem-nos diretamente à pergunta: o que é o Estado? Para compreendermos estas acusações, para podermos estudá-las e adotar a respeito delas uma atitude plenamente consciente e não examiná-las baseando-se em boatos, mas numa firme opinião própria, devemos ter uma clara ideia do que é o Estado. Temos ante nós Estados capitalistas de todo o tipo e todas as teorias que, na sua defesa, se elaboraram antes da guerra. Para respondermos corretamente à pergunta, devemos examinar com uma focagem crítica todas estas teorias e concepções.
Já lhes aconselhei que recorressem ao livro de Engels “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. Nele diz-se que todo Estado em que existe a propriedade privada da terra e os meios de produção, em que domina o capital, por mais democrático que for, um Estado capitalista será sempre uma máquina em mãos dos capitalistas para a sujeição da classe operária e dos camponeses pobres. E o sufrágio universal, a Assembleia Constituinte ou o Parlamento são meramente formas, espécies de obrigação de pagamento que não mudam a essência do assunto.
As formas de dominação do Estado podem variar: o capital manifesta o seu poder de um modo onde existe uma forma e doutro onde existe outra forma, mas o poder está sempre, essencialmente, em mãos do capital, quer com a existência do voto restrito ou outros direitos, quer se trate de uma república democrática ou não; na realidade, quanto mais democrática for, mais grosseira e cínica é a dominação do capitalismo. Uma das repúblicas mais democráticas do mundo são os Estados Unidos da América do Norte, e no entanto, em nenhum lugar (e quem tiver estado lá após 1905 provavelmente o saiba) é tão cru e abertamente corrompido como nos EUA o poder do capital, o poder de uma empresa de multimilionários sobre toda a sociedade. O capital, desde que existe, domina a sociedade inteira, e nenhuma república democrática, nenhum direito eleitoral pode mudar a essência do assunto.
A república democrática e o sufrágio universal representaram um enorme progresso comparado com o feudalismo: permitiram ao proletariado atingir a sua atual unidade e solidariedade e formar fileiras compactas e disciplinadas que promovem uma luta sistemática contra o capital. Não existiu nada sequer semelhante a isto entre os camponeses servos, e nem há o que falar entre os escravos. Os escravos, como sabemos, sublevaram-se, amotinaram-se e principiaram guerras civis, mas não podiam chegar a criar uma maioria consciente e partidos que dirigissem a luta; não podiam compreender com clareza quais eram os seus objetivos, e mesmo nos momentos mais revolucionários da história foram sempre peões em mãos das classes dominantes. A república burguesa, o Parlamento, o sufrágio universal, isso tudo constitui um imenso progresso do ponto de vista do desenvolvimento mundial da sociedade. A humanidade avançou para o capitalismo e foi o capitalismo somente, o que, à mercê da cultura urbana, permitiu à classe oprimida dos proletários adquirir consciência de si própria e criar o movimento operário mundial; os milhões de operários organizados em partidos no mundo inteiro em partidos socialistas que dirigem conscientemente a luta das massas. Sem parlamentarismo, sem um sistema eleitoral, teria sido impossível este desenvolvimento da classe operária. É por isso que todas estas coisas adquiriram uma importância tão grande aos olhos das grandes massas do povo. É por isso que parecer ser tão difícil uma mudança radical. Não são apenas os hipócritas conscientes, os sábios e os sacerdotes quem sustentam e defendem a mentira burguesa de que o Estado é livre e que tem por missão defender os interesses de todos; o mesmo dizem muitas pessoas atadas sinceramente aos velhos preconceitos e que não aceitam a transição da sociedade antiga, capitalista, ao socialismo. E não apenas as pessoas que dependem diretamente da burguesia, não apenas os que vivem sob o jugo do capital ou subordinados ao capital (há grande quantidade de cientistas, artistas, clérigos, etc., de todo o tipo a serviço do capital), mas inclusive pessoas simplesmente influídas polo preconceito da liberdade burguesa, mobilizaram-se contra o bolchevismo no mundo inteiro. Porque, quando foi fundada a República Soviética, esta rejeitou as mentiras burguesas e declarou abertamente: vocês dizem que o seu Estado é livre, quando na realidade, enquanto existir a propriedade privada, o Estado de vocês, embora seja uma república democrática, não é mais do que uma máquina em mãos dos capitalistas para reprimir os operários e, quanto mais livre o Estado for, com maior clareza isto se há de patentear. Exemplos disto são a Suíça, na Europa, e os Estados Unidos, na América. Em parte alguma domina o capital de forma tão cínica e implacável e em parte alguma a sua dominação é tão ostensiva como nestes países, apesar de se tratar de repúblicas democráticas, por muito belamente que as pintem e por muito que nelas se fale de democracia, do trabalho e de igualdade de todos os cidadãos. O fato é que na Suíça e nos EUA domina o capital, e qualquer tentativa dos operários por atingir a menor melhoria efetiva da sua situação provoca imediatamente a guerra civil. Nestes países há poucos soldados, um exército regular pequeno – a Suíça conta com uma milícia e todos os cidadãos suíços têm um fuzil na sua morada, enquanto, nos Estados Unidos, até há bem pouco, não existia um exército regular —, de modo que, quando estala uma greve, a burguesia arma-se, contrata soldados e reprime a greve; em nenhuma parte a repressão ao movimento operário é tão cruel e feroz como na Suíça e nos Estados Unidos e em nenhuma parte se manifesta com tanta força como nestes países a influência do capital sobre o Parlamento. A força do capital é tudo, a Bolsa é tudo, enquanto o Parlamento e as eleições não são mais do que bonecos, títeres... Mas os operários vão abrindo cada vez mais o olhos e a ideia do poder soviético vai estendendo-se mais e mais. Especialmente depois da sangrenta matança pela qual acabamos de passar. A classe operária adverte cada vez mais a necessidade de lutar implacavelmente contra os capitalistas.
Qualquer que for a forma com que se encubra uma república, por democrática que for, se for uma república burguesa, se conservar a propriedade privada da terra, das fábricas, se o capital privado mantiver toda a sociedade na escravatura assalariada, quer dizer, se a república não levar à prática o que se proclama no programa do nosso partido e na Constituição Soviética, o Estado será sempre uma máquina para que uns reprimam outros. E devemos pôr esta máquina em mãos da classe que terá de derrocar o poder do capital. Devemos rechaçar todos os velhos preconceitos em torno de o Estado significar a igualdade universal; pois isto é uma fraude: enquanto existir exploração, não poderá existir igualdade. O proprietário não pode ser igual ao operário nem o homem faminto igual ao saciado. A máquina, chamada Estado, diante da qual os homens se inclinavam com supersticiosa veneração, porque acreditavam no velho conto de que significa o Poder do povo todo, o proletariado rechaça e afirma: é uma mentira burguesa. Nós temos arrancado aos capitalistas esta máquina e temos tomado posse dela. Utilizaremos essa máquina, o garrote, para liquidar toda exploração; e quando toda hipótese de exploração tiver desaparecido do mundo, quando já não houver proprietários de terras nem proprietários de fábricas, e quando não mais existir a situação em que uns estão saciados enquanto outros padecem de fome, só quando tiver desaparecido de vez tais hipóteses, relegaremos esta máquina para o lixo. Então não existirá Estado nem exploração. Tal é o ponto de vista do nosso partido comunista. Espero que voltemos a este tema em futuras conferências, uma e outras vezes.
Nota de fim de tomo:
[N118] A Universidade Comunista I. M. Sverdlov constitui-se a partir dos cursos de agitadores e instrutores, organizados em 1918 por iniciativa de I. M. Sverdlov junto do Comité Executivo Central de Toda a Rússia. Em Janeiro de 1919 os cursos foram transformados em Escola do Trabalho Soviético e, depois da decisão do VIII Congresso do PCR(b) sobre a organização de uma escola superior junto do CC para a preparação dos quadros do Partido, em Escola Central do Trabalho Soviético e Partidário. Em 3 de Julho a reunião plenária do CC do PCR(b) ratificou a disposição sobre a mudança do nome dessa escola para Universidade Comunista I. M. Sverdlov. Lénine dedicou uma grande atenção à organização da universidade e à elaboração dos seus programas de estudo. Em 11 de Julho e 29 de Agosto Lénine proferiu na universidade conferências sobre o Estado (não foi encontrado o registro da segunda conferência). Em 24 de Outubro, Lénine tomou a palavra perante os alunos da Universidade Sverdlov que iam partir para a frente. (retornar ao texto)
Inclusão |