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Primeira Edição: Monthly Review - 2008, Volume 59, Issue 08 (January)
Fonte: Que Cem Flores Desabrochem! Que Cem Escolas Rivalizem! - https://cemflores.org/2021/12/08/richard-levins-vivendo-a-11a-tese/
Transcrição: Fauze Chelala
HTML: Fernando Araújo.
Apresentação do Cem Flores
08.12.2021
Em agosto deste ano, o Cem Flores publicou uma homenagem ao marxista Richard Lewontin, falecido no último dia 4 de julho. Durante toda sua vida profissional, Lewontin soube unificar o rigor científico na biologia com a defesa do proletariado e dos demais explorados e oprimidos.
Nesta publicação, trazemos a tradução de um pequeno ensaio autobiográfico de Richard Levins, companheiro de luta e parceiro intelectual de Richard Lewontin: Vivendo a 11ª tese [de Marx sobre Feuerbach]. Como o leitor verá, o fascínio de Levins pela ciência, seu trabalho como pesquisador e seu posicionamento político revolucionário sempre foram considerados por ele não apenas como inteiramente coerentes, como diversos aspectos de um mesmo todo. Em sua formação recebeu tanto estímulo por parte de sua família em aprender tudo o que pudesse, sempre de forma questionadora, quanto foi influenciado pelo bairro de trabalhadores/as onde cresceu, que reforçou ainda mais sua visão crítica. Esse ambiente o impeliu tanto à militância política quanto à pesquisa científica.
Levins relata que nunca encontrou incompatibilidade entre esses dois aspectos de sua vida. Ele dizia que, pelo contrário, tanto seus resultados de pesquisas fundamentavam sua militância, quanto seu trabalho político influenciava em seus interesses acadêmicos e a postura com a qual conduzia seus trabalhos. Essa forma dialética de observar, pensar e intervir sobre a realidade o permitiu ver além dos limites teóricos dominantes.
Tendo que viver como um camponês em Porto Rico, devido à perseguição política, acabou se juntando ao Partido Comunista de Porto Rico e organizando movimentos de camponeses nas lavouras de café. Ao mesmo tempo, mantinha sua vida acadêmica e realizava pesquisas sobre processos evolutivos em sintonia com padrões ecológicos, como a adaptação de organismos a ambientes mutáveis.
Do ponto de vista acadêmico, Levins conseguiu unir disciplinas como matemática, ecologia e genética de populações e é amplamente reconhecido pela grande contribuição que essa união trouxera aos campos da ecologia e, posteriormente, à saúde pública. Seu crescimento enquanto acadêmico não se deu de forma isolada aos problemas das classes trabalhadoras.
Empregou seus conhecimentos sobre genética de populações na ajuda para desenvolver o campo em Cuba. Fez o mesmo com seus conhecimentos sobre ecologia tanto na escrita do programa do PC de Porto Rico, quanto na polêmica contra as ideologias burguesas entre os ambientalistas, defendendo uma transformação do modo de produção para que se possa realmente empreender um esforço de conservação da natureza. Mais tarde passou a estudar saúde pública e pôde observar como a exploração da massa proletária lhe rouba expectativa e qualidade de vida, além de embrutecer suas relações entre si com as ideologias dominantes do racismo e sexismo.
Richard Levins foi um marxista que sempre destacou a barbárie que o modo de produção capitalista impõe. E, com sua ciência e militância, buscou não apenas interpretar, como transformar essa realidade!
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“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes;
a questão, porém, é transformá-lo”.
Karl Marx. 11ª tese sobre Ludwig Feuerbach.
Quando eu era garoto sempre achei que cresceria para ser tanto um cientista quanto um Comunista. Em vez de enfrentar o problema de combinar ativismo e vida acadêmica, eu teria tido muita dificuldade em tentar separá-los.
Antes que pudesse ler, meu avô lia para mim Ciência e História para Meninas e Meninos do ex-bispo Brown.(1) Meu avô acreditava que todo trabalhador socialista deveria ter familiaridade, no mínimo, com cosmologia, evolução e história. Nunca separei história, na qual somos participantes ativos, da ciência – da descoberta de como as coisas são. Minha família havia se desligado da religião organizada fazia cinco gerações, mas meu pai me fazia estudar a Bíblia toda tarde de sexta, porque era uma parte importante da cultura que nos rodeava, e importante para muitos, uma explicação fascinante de como as ideias se desenvolvem quando as condições se modificam, e porque todo ateísta deve conhecer esse livro tão bem quanto os fiéis.
No meu primeiro dia na escola primária, minha avó me estimulou a aprender tudo que pudessem me ensinar – mas a não acreditar em tudo. Ela estava muito ciente da “ciência racial” da Alemanha nos anos 1930 e das justificativas para a eugenia e supremacia masculina, que eram populares em nosso próprio país. Sua atitude veio de seu conhecimento de como a ciência era usada para o poder e o lucro, além de uma desconfiança genérica dos trabalhadores em relação aos dominantes. Seu conselho criou minha postura na vida acadêmica: conscientemente na, mas não da, universidade. Cresci em uma vizinhança de esquerda no Brooklyn, onde as escolas ficavam vazias no 1° de maio e onde conheci o primeiro eleitor do partido republicano aos 12 anos. Questões de ciência, política e cultura eram debatidas em grupos permanentes no calçadão de Brighton Beach e eram os assuntos mais comuns nas conversas durante as refeições. O comprometimento político era dado, como agir sobre esse comprometimento era tema de debate ferrenho.
Quando adolescente me interessei pela genética devido ao meu fascínio com a obra do cientista soviético Lysenko. Ele acabou se mostrando completamente errado, especialmente quando tentava chegar a conclusões biológicas a partir de princípios filosóficos. Contudo, sua crítica à genética de seu tempo me levou ao trabalho de Waddington, Schamalhausen e outros que, ao invés de descartá-lo imediatamente, no estilo da Guerra Fria, responderam ao seu desafio desenvolvendo uma visão mais profunda da interação organismo-ambiente.
Minha esposa, Rosario Morales, me apresentou a Porto Rico em 1951, e meus onze anos lá deram uma perspectiva latino-americana à minha política. As várias vitórias de esquerda na América do Sul eram uma fonte de otimismo, mesmo naqueles dias sombrios. A vigilância do FBI em Porto Rico me bloqueou os empregos que procurava e eu acabei cultivando vegetais nas montanhas ocidentais da ilha para sobreviver.
Quando estudante da Escola de Agricultura da Universidade de Cornell, me ensinaram que o principal problema agrícola dos Estados Unidos era a destinação da produção excedente. Mas como um agricultor de uma região pobre de Porto Rico, eu vi o significado da agricultura para a vida do povo. Essa experiência me apresentou às realidades da pobreza – como ela debilita a saúde, abrevia vidas, limita oportunidades e embrutece o crescimento pessoal – e às formas específicas que o sexismo assume nas áreas rurais pobres. Combinei organização sindical nas plantações de café com o estudo. Rosario e eu escrevemos o programa agrário do Partido Comunista de Porto Rico, no qual combinamos uma análise econômica e social bastante amadora com algumas ideias iniciais sobre métodos de produção ecológicos, diversificação, conservação e cooperativas.
Fui a Cuba pela primeira vez em 1964 para ajudar a desenvolver suas pesquisas de genética de populações e ver de perto a Revolução Cubana. Ao longo dos anos, me envolvi na luta contínua dos cubanos pela agricultura ecológica e por uma via ecológica de desenvolvimento econômico que fosse justa, igualitária e sustentável. O pensamento progressista, tão forte na tradição socialista, esperava que os países em desenvolvimento tivessem que alcançar os países avançados por uma via única de modernização. Esse pensamento considerava os críticos da via da alta tecnologia da agricultura industrial como “idealistas”, urbanos sentimentalistas nostálgicos por uma era de ouro rural bucólica que nunca existiu na realidade. Mas existia outro ponto de vista, o de que cada sociedade cria suas formas próprias de relação com a natureza, seu padrão de uso da terra, suas tecnologias adequadas e seus critérios de eficiência próprios. Essa discussão ocorreu em Cuba nos anos 1970 e pelos 1980 o modelo ecológico havia ganho, embora sua implementação ainda fosse um longo processo. O Período Especial – aquela época de crise econômica após o colapso da União Soviética, quando materiais de alta tecnologia se tornaram indisponíveis – permitiu aos ecologistas convictos recrutarem os ecologistas por necessidade. O que só foi possível porque os ecologistas convictos haviam preparado o caminho.
Eu encontrei o materialismo dialético pela primeira vez no início da minha adolescência, pelos escritos dos cientistas marxistas britânicos J. B. S. Haldane, J. D. Bernal, Joseph Needham e outros, e, então, para Marx e Engels. Fiquei imediatamente fascinado, intelectual e esteticamente. Uma visão dialética da natureza e da sociedade têm sido um dos principais temas de minha pesquisa desde então. Me encantei com a ênfase dialética sobre a totalidade, conexão e contexto, mudança, historicidade, contradição, irregularidade, assimetria e a multiplicidade de níveis dos fenômenos, um contrapeso refrescante ao reducionismo prevalente de então, e de agora.
Um exemplo: depois que Rosario sugeriu que eu visse as [moscas] Drosophila na natureza – e não apenas em garrafas no laboratório – passei a trabalhar com as Drosophila do bairro onde morávamos em Porto Rico. Minha pergunta era: como as espécies de Drosophila lidam com gradientes temporais e espaciais dos seus ambientes? Comecei examinando as várias formas que diferentes espécies de Drosophila respondiam a desafios ambientais similares. Pude coletar, em um único dia, Drosophila nos desertos de Guánica e na floresta tropical em volta de nossa fazenda no alto da cordilheira. Aconteceu que algumas espécies se adaptam fisiologicamente a altas temperaturas em 2-3 dias, e mostravam relativamente pouca diferença genética relacionada à tolerância ao calor ao longo dos 3.000 pés de diferença de altitude (aproximadamente 914 metros). Outras possuiam subpopulações geneticamente distintas nos diferentes habitats. Outras, ainda, se adaptaram a, e habitavam apenas, uma parte da variação ambiental disponível.
Uma das espécies desérticas não era melhor em tolerar o calor do que qualquer outra Drosophila da floresta tropical, mas era muito melhor em encontrar micro-habitats frescos e úmidos e em se esconder neles após as 8 da manhã. Esses achados me levaram a descrever os conceitos de seleção por gradiente – no qual o impacto direto das mudanças ambientais amplia as diferenças genéticas entre populações – e de seleção contra-gradiente – no qual as diferenças genéticas compensam o impacto direto do ambiente. Como em meu recorte a alta temperatura estava associada com a condição seca, a seleção natural agia no aumento do tamanho das moscas em Guánica, enquanto o efeito da temperatura em seu desenvolvimento as tornava menores. O resultado acabou sendo que as moscas do deserto, ao nível do mar, e da floresta tropical eram aproximadamente do mesmo tamanho em seus próprios habitats, mas as moscas de Guánica eram maiores quando criadas na mesma temperatura que as moscas da floresta tropical.
Nesse trabalho questionei o viés reducionista dominante na biologia insistindo que o fenômeno ocorre em diferentes níveis, cada nível com suas próprias leis, mas também conectados. Meu enfoque foi dialético: a interação entre adaptações nos níveis fisiológico, comportamental e genético. Minha preferência por processos, variabilidade e mudança orientou minha tese.
O problema era como as espécies podem se adaptar ao ambiente quando o ambiente não era sempre o mesmo. Quando comecei a trabalhar na dissertação estava intrigado pela suposição fácil de que, em frente a demandas opostas, por exemplo quando o ambiente favorece tamanho pequeno, em alguns períodos, e tamanho grande, nos demais, um organismo teria de adotar um estado intermediário como uma forma de compromisso. Mas essa é uma aplicação impensada do senso comum liberal de que, quando há visões opostas, a verdade deve estar em algum ponto ao meio. Em minha dissertação, o estudo dos padrões de adaptação foi uma tentativa de examinar quando uma posição intermediária é realmente ótima, e quando é a pior escolha possível. Resumindo, quando as alternativas não são muito diferentes, uma posição intermediária é realmente ótima, mas quando elas são muito diferentes em comparação com os intervalos de tolerância das espécies, então apenas um dos extremos ou, em alguns casos, uma mistura de extremos, é preferível.
Estudos sobre seleção natural, dentro da genética de populações, quase sempre assumem um ambiente constante, mas eu estava interessado em suas inconstâncias. Propus que a “variação ambiental” deve ser uma resposta para muitas questões da ecologia evolucionária, e que organismos se adaptam não apenas a características ambientais específicas, como a alta temperatura, ou solos alcalinos, mas também aos padrões do ambiente – sua variabilidade, sua incerteza, o quanto ele pode ser fragmentado, as correlações entre diferentes aspectos do ambiente. Além disso, esses padrões do ambiente não são simplesmente dados, externos ao organismo: os organismos selecionam, transformam e definem seus próprios ambientes.
Independentemente do assunto particular de uma investigação (ecologia evolutiva, agricultura ou, mais recentemente, saúde pública), meu principal interesse sempre foi compreender a dinâmica de sistemas complexos. Da mesma forma, meu comprometimento político exige que eu questione a relevância do meu trabalho. Em um dos poemas de Brecht ele diz, “Vivemos, verdadeiramente, em uma época terrível… quando falar de árvores é quase um crime, pois é uma forma de se calar sobre a injustiça”. Brecht estava, claramente, errado sobre as árvores: hoje quando falamos de árvores não estamos ignorando a injustiça. Mas ele também estava certo que a pesquisa que for indiferente ao sofrimento humano é imoral.
Pobreza e opressão roubam anos de vida e saúde, encurtam os horizontes e eliminam talentos potenciais antes que eles possam florescer. Meu compromisso de apoiar as lutas dos pobres e oprimidos e meu interesse pela variabilidade se combinaram para focar minha atenção sobre as vulnerabilidades fisiológicas e sociais das pessoas.
Tenho estudado a capacidade do corpo em se recuperar após ser estressado por desnutrição, poluição, insegurança e cuidados médicos inadequados. O estresse contínuo debilita os mecanismos estabilizadores dos corpos das populações oprimidas, tornando-os mais vulneráveis a qualquer coisa que aconteça, mesmo as pequenas diferenças em seus ambientes. Isso se mostra na maior variabilidade na pressão sanguínea, índice de massa corporal e expectativa de vida quando comparados com os resultados mais uniformes de populações privilegiadas. Ao examinar os efeitos da pobreza, não basta examinar a prevalência de doenças específicas em diferentes populações. Enquanto determinados patógenos ou poluentes podem precipitar doenças específicas conhecidas, as condições sociais criam uma vulnerabilidade mais difusa, que liga doenças sem relações clínicas. Por exemplo, desnutrição, infecção ou poluição podem romper as barreiras protetoras do intestino. Mas uma vez rompidas, por qualquer desses motivos, ela se torna um ponto focal de invasão por poluentes, micróbios ou alergênicos. Dessa forma, problemas nutricionais, doenças infecciosas, estresse e substâncias tóxicas causam uma grande variedade de doenças aparentemente não relacionadas.
A noção prevalente, desde os anos 1960, têm sido a de que doenças infecciosas desapareceriam com o desenvolvimento econômico. Nos anos 1990 ajudei a criar o Grupo de Harvard sobre Doenças Novas e Ressurgentes para rejeitar essa ideia. Nosso argumento era parcialmente ecológico: a rápida adaptação dos vetores às mudanças de seus habitats – desflorestamento, projetos de irrigação e deslocamento populacional causados por guerra e fome. Também nos focamos na igualmente rápida adaptação dos patógenos a pesticidas e antibióticos. Mas também criticamos o isolamento físico, institucional e intelectual das pesquisas médicas em relação a estudos sobre patologias veterinárias e de flora, os quais poderiam ter mostrado mais rapidamente o amplo padrão de ressurgimento, não apenas da malária, cólera e AIDS, mas também da febre suína africana, leucemia felina, doença “tristeza dos citros” e vírus mosaico dourado do feijão. Devemos esperar mudanças epidemiológicas com o crescimento das disparidades econômicas e com as mudanças no uso da terra, no desenvolvimento econômico, nos assentamentos humanos e na demografia. A fé na eficácia dos antibióticos, vacinas e pesticidas contra patógenos de plantas, animais e humanos é ingênua à luz da evolução adaptativa. E a expectativa desenvolvimentista de que o crescimento econômico irá guiar o resto do mundo para abundância e para a eliminação de doenças infecciosas está se provando errônea.
O ressurgimento de doenças infecciosas é apenas uma manifestação de uma crise mais geral: a síndrome do sofrimento ecossocial – uma crise, abrangente e com vários níveis, de relações disfuncionais dentro da nossa espécie e entre ela e o resto da natureza. Essa crise inclui em uma rede de padrões de doenças ativos e reativos, relações de produção e reprodução, a demografia, nosso esgotamento e destruição de recursos naturais, mudanças no uso da terra e de assentamentos e mudança climática global. É uma crise mais profunda do que as anteriores, alcançando maiores altitudes, maiores profundidades, mais ampla no espaço e mais duradoura, penetrando mais aspectos de nossas vidas. É tanto uma crise geral da espécie humana quanto uma crise específica do capitalismo mundial. Por isso, é uma preocupação primária tanto para minha pesquisa científica quanto para minha ação política.
A complexidade dessa síndrome mundial pode ser esmagadora e, ainda assim, esquivar-se da complexidade pela fragmentação do sistema para tratar um problema por vez pode produzir desastres. Os grandes fracassos da tecnologia científica foram criados pela visão reducionista dos problemas. Cientistas agrícolas que propuseram a Revolução Verde sem levar em conta a evolução das pragas e a ecologia de insetos, esperando que pesticidas conseguissem controlá-los, foram surpreendidos pelo aumento de problemas de pragas após a pulverização de pesticidas. De forma similar, antibióticos criam novos patógenos, desenvolvimento econômico cria fome, e controle de inundações promove inundações. Os problemas devem ser solucionados em sua rica complexidade; o estudo da própria complexidade se torna um problema prático e teórico urgente.
Esses interesses informam meu trabalho político: dentro da esquerda, minha tarefa tem sido a de argumentar que nossa relação com o resto da natureza não pode ser separada de uma luta global pela liberação humana e, dentro do movimento ecológico, minha tarefa tem sido a de desafiar o idealismo da “harmonia da natureza” do início do ambientalismo e insistir na identificação das relações sociais que levam a disfuncionalidade atual. Ao mesmo tempo, minha política tem determinado minha ética científica. Acredito que todas as teorias que promovem, justificam ou toleram injustiças são erradas.
Uma crítica de esquerda sobre a estrutura da vida intelectual é um contrapeso à cultura das universidades e fundações. O movimento anti-guerra dos anos 1960-70 abordou questões sobre a natureza da universidade como um órgão de dominação de classe e fez da própria comunidade intelectual um objeto de interesse teórico e prático. Me uni à Ciência para o Povo, uma organização que começou com uma greve de pesquisadores no MIT, em 1967, como um protesto contra pesquisas militares no campus. Como membro, ajudei no questionamento à Revolução Verde e ao determinismo genético. O ativismo anti-guerra me levou ao Vietnã para investigar crimes de guerra (especialmente o uso de desfolhantes) e, a partir disso, para organizar a Ciência para o Vietnã. Denunciamos o uso do Agente Laranja (desfolhante usado na selva vietnamita) que estava causando defeitos congênitos nos camponeses vietnamitas. O Agente Laranja foi um dos piores usos de um herbicida químico.
O movimento de independência de Porto Rico me deu uma consciência anti-imperialista, que me serve bem em uma universidade que promove “reformas estruturais” e outros eufemismos para o império. O contundente feminismo operário de minha esposa é uma fonte de crítica ao elitismo e sexismo disseminados. O trabalho regular com Cuba me mostra, vividamente, que existe uma alternativa à sociedade competitiva, individualista e exploradora.
As organizações comunitárias, especialmente em comunidades marginalizadas, e o movimento de saúde das mulheres levanta problemas que a academia prefere ignorar: as mães de Woburn notando que muitos de seus filhos, do mesmo pequeno bairro, tinham leucemia, as centenas de grupos de justiça ambiental que notaram o descarte de lixo tóxico concentrado em bairros negros e latinos, e o projeto Comunidade do Câncer Feminino e outros que insistem nas causas ambientais para o câncer e outras doenças, enquanto os laboratórios da universidade estão procurando por genes culpados. Essas iniciativas me ajudaram a manter uma agenda alternativa para a teoria e a ação.
Dentro da universidade, possuo relações contraditórias com a instituição e com colegas, uma combinação de cooperação e conflito. Podemos compartilhar uma preocupação sobre as desigualdades da saúde e a pobreza persistente, mas estamos em conflito quanto ao financiamento de pesquisas por corporações, para descoberta de moléculas patenteáveis, e sobre algumas agências do governo, como AID (Agência pelo Desenvolvimento Internacional), que promove os objetivos do império.(2)
Nunca aspirei ao que se considera convencionalmente uma “carreira de sucesso” na academia. A maioria das minhas validações pessoais não passa pelo sistema de recompensa formal e reconhecimento da comunidade científica, e tento não compartilhar dos pressupostos comuns à minha comunidade profissional. Isso me dá uma grande liberdade de escolha. Assim, quando me recusei a entrar na Academia Nacional de Ciências e recebi muitas cartas de apoio elogiando minha coragem ou chamando isso uma decisão difícil, pude dizer honestamente que não foi difícil, foi apenas uma escolha política tomada coletivamente pelo grupo de Chicago do Ciência para o Povo. Julgamos que era mais importante assumir uma posição pública contra a colaboração da Academia na Guerra do Vietnã do que entrar na Academia e tentar influenciar suas ações de dentro. Dick [Richard] Lewontin já havia tentado isso sem sucesso e renunciado, junto com Bruce Wallace.
Sempre gostei de matemática e entendo que um de seus objetivos é tornar óbvio o obscuro. Emprego, regularmente, uma espécie de matemática de nível médio de maneira inusitada para alcançar mais compreensão do que para fazer predição. Muitos trabalhos de modelagem atuais visam equações precisas que resultem em predições precisas. Isso faz sentido na engenharia. No campo da política, isso faz sentido para aqueles assessores da classe dominante que imaginam possuir controle suficiente e completo do mundo para serem capazes de otimizar seus esforços e investimento de recursos. Mas aqueles de nós que estamos na oposição não temos tais ilusões. O melhor que podemos fazer é decidir onde pressionar o sistema. Para isso, a matemática qualitativa é mais útil. Meu trabalho com dígrafos (análise de circuitos) é uma dessas abordagens. Rejeitando a oposição entre análises qualitativa e quantitativa e a noção de que a quantitativa é superior, trabalhei principalmente com essas ferramentas matemáticas que auxiliam na conceitualização de fenômenos complexos.
O ativismo político, claro, atrai a atenção das agências de repressão. Tive sorte nesse ponto, experimentando apenas uma repressão relativamente leve. Outros não tiveram tanta sorte, com perda de carreiras, anos de aprisionamento, ataques violentos, assédio intenso, até mesmo de familiares, e deportações. Alguns, na maioria dos movimentos de liberação porto-riquenhos, afro-americano e nativos americanos, assim como os cinco antiterroristas Cubanos, presos na Florida, ainda são presos políticos.
A exploração mata e fere o povo. O racismo e o sexismo destroem a saúde e frustram vidas. Estudar a ganância, brutalidade e presunção desse capitalismo que vivemos é doloroso e endurecedor. Às vezes tenho que recitar o poema de Jonathan Swift:
Como o barqueiro do Tâmisa,
Passo remando a insultar.
Como o sábio de eterno riso
Gasto minha raiva em escárnio…
Ouçam-me bem:
Eu os enforcaria, se pudesse.
Em sua maior parte, a pesquisa acadêmica e o ativismo me proporcionaram uma vida agradável e gratificante, trabalhando em algo que considero intelectualmente excitante, socialmente útil e com pessoas que amo.
Notas de rodapé:
(1) John Montgomery Brown foi um bispo episcopal luterano do Missouri, excomungado quando se tornou marxista. Nos anos 1930 publicou o jornal trimestral Heresia. (retornar ao texto)
(2) AID promove programas de saúde e desenvolvimento em países do terceiro mundo escolhidos estrategicamente. Alguns de seus programas específicos são úteis e seus participantes são motivados por questões humanitárias. Mas a agência é também uma organização terrorista, apoiando grupos contrarrevolucionários na Venezuela, Haiti e Cuba. Apoiou, certa vez, LEAP (Programa de Assistência à Aplicação da Lei) que ensinou tortura às polícias do Uruguai e Brasil. (retornar ao texto)