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Primeira Edição: ....
Fonte: Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais
Tradução: Margot Soria Saravia, Vania Manfroi e Flávio de Almeida
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Relendo o Manifesto Comunista a cento cinquenta anos de sua publicação, procuramos nos interrogar sobre as novidades teóricas e políticas fundamentais apresentadas pelo texto de Marx e Engels. Estas novidades não residem na tomada de consciência da não naturalidade do conflito social entre proletariado e burguesia, nem na afirmação de que este conflito foi precedido historicamente pela luta de classes entre escravos e senhores e entre servos da gleba e proprietários feudais. Alguns anos antes, Tocqueville havia sintetizado a situação de Inglaterra nesses termos: “aqui, o escravo, lá o patrão; aqui, a riqueza de alguns; lá, a miséria da maioria”. Em seguida, o liberal francês chegou a advertir para o perigo das “guerras servis”.
Assim, a condição operária se encontra comparada à escravidão. Antes de Marx e Engels, esta comparação era feita, de maneira consciente, pelos pensadores liberais. Locke não teve nenhum problema para constatar que a maior parte da humanidade havia sido “transformada em escrava” pelas condições objetivas de vida e de trabalho. Mandeville não tinha nenhuma dúvida de que a “parte mais pobre e mais desprovida da nação” estava destinada para sempre a executar um “trabalho sujo e semelhante ao de um escravo”. E foram os próprios discípulos de Cobden e de Bright que compararam os operários fabris a “escravos brancos”. Neste caso, era absurdo — concluiu Benjamin Constant — conceder direitos políticos ao trabalhador assalariado: ele está privado da “renda necessária para não viver na total dependência da vontade de outro”; “os proprietários são os senhores da existência do trabalhador assalariado, porque podem recusar o trabalho deste”.
Porém, nada disso perturba a boa consciência da burguesia liberal. Afinal — argumentavam eles — as relações de produção e as condições materiais de vida remetem a uma esfera extra (e pré)-política (tese que, em nossos dias, foi radicalizada por Hannah Arendt). Totalmente distinto é o pensamento de Marx, que, já em seus escritos de juventude, se permite uma observação irônica: aos olhos da sociedade e da teoria política burguesas, as relações sociais “só possuem uma significação privada e nenhuma significação política”; em sua forma mais desenvolvida, o Estado burguês se contenta em “fechar os olhos e declarar que certas oposições reais não possuem caráter político, que elas não o incomodam”.
E, no entanto, a liberdade está em questão. O Manifesto Comunista chama a atenção para a realidade da fábrica capitalista. Aqui, nós podemos pôr o dedo no “despotismo”: os operários são “organizados militarmente” e, “são colocados como soldados rasos sob a supervisão de uma hierarquia inteira de suboficiais e oficiais” (Marx e Engels, 1997: 15).1 Como se vê, não se trata, absolutamente, de liquidar a liberdade formal ou negativa porque ela seria negligenciável e puramente burguesa — digo isto sem querer ofender a vulgata “marxista”, nem os teóricos liberais (Berlin, Bobbio, etc.), que creem poder definir o contraste existente entre as duas tradições de pensamento aqui confrontadas sobre a base da preferência ou proeminência atribuída à liberdade negativa ou positiva, à freedom from ou à freedom to. Dir-se-ia que a vulgata marxista e a alta cultura liberal terminam por convergir em uma interpretação essencialmente economicista de Marx e Engels — os quais, na realidade, exigem a intervenção política no quadro das relações de produção não porque consideram que a liberdade negativa é puramente formal e burguesa, mas porque, totalmente ao contrário, eles a veem esmagada por uma organização fundamentalmente militar e despótica, como a fábrica capitalista, à qual toda uma classe social não pode escapar, a menos que prefira morrer de inanição.
Portanto, uma profunda mudança se impõe. Mas qual é o sujeito social chamado a realizá-la? Aqui aparece uma outra grande novidade teórica e política, que se trata, outra vez, de precisar. Não é difícil encontrar, na tradição liberal, descrições lúcidas dos efeitos do embrutecimento produzidos pela fábrica capitalista. Obrigado à repetição obsessiva de “um pequeno número de operações extremamente simples, frequentemente uma ou duas”, o operário — observa Smith — termina por se tornar “tão estúpido e ignorante como o pode ser uma criatura humana”; ele não chega a elaborar “um julgamento correto mesmo sobre um bom número de deveres comuns da vida privada” e é melhor não falar com ele sobre questões políticas. Se existe um remédio para esta situação, ele só pode ser trazido do alto e do exterior, por uma burguesia esclarecida e filantrópica.
Para Marx, ao contrário, o embrutecimento só representa um aspecto das coisas. Se nos colocamos em um outro ângulo, é precisamente a dura experiência, cotidiana e coletiva, da exploração e do despotismo na fábrica que capacita a classe operária a se apresentar como o sujeito central da transformação. Em Smith, o operário parece perder até suas características mais propriamente humanas: ele se torna incapaz de não apenas de sentir prazer ou de participar de qualquer conversação racional, mas mesmo de experimentar qualquer sentimento generoso, nobre e terno”. Para Marx, o proletariado é o próprio “coração” da emancipação humana. Trata-se de uma novidade radical que ainda hoje se tem dificuldade para compreender. Que se pense em Hannah Arendt, que opõe ao trabalho produtivo e à luta operária e popular por melhores condições de vida, a “felicidade pública” que decorre da ação (Handlung) e da comunicação política como fim em sim mesmo. A autora vê aí uma dimensão que, segundo ela, teria ficado totalmente estranha a Marx e ao materialismo histórico. Na realidade, Hannah Arendt não percebe que é justamente no movimento contra a opressão material da qual é vítima que toda uma classe social descobre e sente o gosto e a paixão pela ação política. “De tempos em tempos — observa o Manifesto — os trabalhadores saem vitoriosos. Mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o sucesso imediato, mas a união crescente” (p. 17). Pelo único fato de quebrar, por meio da ação sindical e política, o isolamento no qual a burguesia gostaria de lhe impor, toda uma classe social encontra sua dignidade antes mesmo de ter obtido resultados concretos. É o que impressiona Engels durante sua viagem à Inglaterra. Dirigindo-se aos operários, o jovem revolucionário manifesta sua alegria de “discutir com vocês sobre sua condição e seus tormentos, de ser testemunha de suas lutas contra o poder político e social de seus opressores”. Quanto a Hannah Arendt, ela permanece fiel ao ponto de vista de Smith.
Não somente o proletariado pode projetar e construir um sistema social diferente do sistema dominante, mas, no interior do próprio capitalismo, ele pode ser a força dirigente na derrubada do antigo regime e na realização da democracia política. Em circunstâncias determinadas — assinala o Manifesto — essas tarefas podem se misturar em uma unidade indissolúvel:
“Os comunistas dirigem sua atenção principalmente para a Alemanha, porque o país está às vésperas de uma revolução burguesa e porque essa reviravolta ocorre sob as condições avançadas da civilização europeia, com um proletariado muito mais desenvolvido que o da Inglaterra do século XVII e o da França do século XVIII. Por isso, a revolução burguesa alemã pode ser o prelúdio de uma revolução proletária” (p. 41).
Por meio deste olhar voltado para um país ainda relativamente atrasado no plano econômico e político, é evocada a possibilidade de uma revolução socialista que se desenvolve na onda de uma revolução antifeudal, ou democrático-burguesa sob a hegemonia do proletariado. É esta teoria da revolução que se revelou historicamente eficaz, e não a que se encontra na bem célebre página de O capital onde a revolução socialista é vista como uma consequência imediata e automática do consumação do processo de acumulação capitalista.
Sim, no século XX, revoluções de orientação socialista se desenvolveram em países ainda aquém do desenvolvimento, ou antes, da maturidade capitalista. Mas foi fora do quadro geográfico levado em consideração pelo Manifesto. Para seus autores, a Europa é sinônimo de civilização e o Oriente, de barbárie. Não que Marx e Engels se alinhassem inteiramente com a tradição liberal, ocupada, nesta época, com Tocqueville e Mill, em celebrar com lirismo até as guerras do ópio. O Manifesto é mais problemático: o que o Ocidente impõe é o que ele chama “civilização”, isto é, as relações “burguesas”. Um artigo escrito alguns anos depois se exprime de modo bem mais incisivo: denunciando o horror da expansão colonial, observa que este horror esclarece, no mesmo momento, a verdadeira natureza da metrópole capitalista: “A profunda hipocrisia, a barbárie intrínseca da civilização burguesa se oferecem aos nossos olhos sem disfarces, quando, das grandes metrópoles, onde elas adquirem formas respeitáveis, nós voltamos os olhos para colônias, onde elas circulam em toda a sua nudez”.
E, todavia, apesar dos horríveis crimes que a maculam, a conquista inglesa da Índia aparece a Marx como “a única revolução social que a Ásia conheceu”. Se a ideia da subjetividade revolucionária da classe operária é totalmente estranha a Smith, Marx e Engels não souberam, a não ser excepcionalmente, apreender a subjetividade revolucionária dos povos coloniais. Para que isto acontecesse, seria preciso esperar, em uma situação distinta e objetivamente mais avançada, Lenin. Com ele um processo ulterior chega a seu termo. Locke celebra a liberdade, mas considera a escravidão dos negros nas colônias como evidente; Mill condena o despotismo, mas celebra sua eficiência pedagógica desde que se trate de “raças” que ele considera como “não maiores”. Duras cláusulas de exclusão acompanham a celebração da liberdade no campo da tradição liberal. Tocqueville descreve de maneira lúcida o horrível tratamento reservado, na América, aos índios e aos negros e, entretanto, os Estados Unidos continuam, aos olhos do autor, os país da “democracia, viva, ativa, triunfante”. Nos três casos, a democracia é definida como tal, independentemente da sorte dos excluídos.
Pode-se descobrir traços desta atitude nos próprios Marx e Engels. É verdade que, em diversas ocasiões, eles escreveram que um povo que oprime outro não pode ser livre. Entretanto, se nos atemos à Ideologia alemã e A miséria da Filosofia, os Estados Unidos representam o “país da emancipação política consumada” ou, ainda, “o exemplo mais perfeito do Estado moderno”, que assegura a dominação burguesa sem excluir a priori nenhuma classe social do usufruto dos direitos políticos. Na realidade, contrariamente ao que pensavam Tocqueville, Marx e Engels, a discriminação pelo dinheiro, bem longe de ter desaparecido, se traduzia, no outro lado do Atlântico, pela discriminação étnica e racial e, sob esta forma, ela será muito mais forte do que na Europa.
É Lenin que fará a liquidação definitiva das cláusulas de exclusão da tradição liberal, assim como de toda visão da democracia que pretendia definir este regime independentemente da sorte dos excluídos. Eis porque o Outubro bolchevique imprime uma virada radical ao desenvolvimento da subjetividade entre os povos coloniais e ex-coloniais.
Foi assim que surgiu o “campo socialista”, que se desenvolveu em condições de dupla “barbárie” (para empregar a linguagem do Manifesto), a saber: o pesado atraso do Oriente e, sobretudo, o horror dos dois conflitos mundiais e da guerra total. É claro que Marx e Engels não previram de modo algum semelhante tentativa de construção de uma sociedade pós-capitalista.
Convém acrescentar que sua visão do socialismo e do comunismo certamente não favoreceu o sucesso e a evolução democrática desta tentativa. No Manifesto já começa a se desenhar a utopia exaltada de uma sociedade não somente sem classes, mas também sem Estado e sem fronteiras nacionais, sem mercado, sem religiões, sem qualquer conflito de qualquer tipo. É a dialética objetiva de todo processo revolucionário, brilhantemente exposta, em outras circunstâncias, especialmente por Engels. No arrebatamento da luta contra uma situação sentida como intolerável e no esforço para suscitar o entusiasmo necessário para derrotar os terríveis obstáculos que se interpõem à derrubada do regime existente, todo processo revolucionário tende ver o futuro que ele se propõe a construir em termos, de um certo modo, tão exaltados e a representá-lo como uma espécie de fim da história. Esta exaltação se revela fecunda na fase de destruição, porém funesta na fase seguinte. A tentativa de construção de uma sociedade pós-capitalista oscilou entre dois polos: o do estado de exceção permanente e o de uma utopia exaltada, a qual, por sua vez, terminou por prolongar e, em consequência, exacerbar o estado de exceção.
Para tomar um só exemplo: qual o sentido de se incomodar em construir um Estado democrático se o Estado estava destinado a se extinguir?
Mas, após a derrocada do “campo socialista”, eis que se produz uma situação que, outra vez, no leva de volta ao Manifesto: em um texto que apareceu há 150, é possível ler uma análise cuja atualidade é surpreendente:
“As indústrias nacionais tradicionais foram, e ainda são, a cada dia, destruídas. São substituídas por novas indústrias, cuja introdução se tornou essencial para todas as nações civilizadas. Essas indústrias não utilizam mais matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes das regiões mais distantes, e seus produtos nãos se destinam apenas ao mercado nacional, mas também a todos os cantos da Terra. Ao invés das necessidades antigas, satisfeitas por produtos do próprio país, temos novas demandas supridas por produtos dos países mais distantes, de climas os mais diversos. No lugar da tradicional autossuficiência e do isolamento das nações, surge uma circulação universal, uma interdependência geral entre os países. No lugar da tradicional autossuficiência e do isolamento das nações surge uma circulação universal, uma interdependência geral entre os países. E isso tanto na produção material quanto na intelectual”. (pp. 11-12).
Não se poderia descrever melhor a mundialização da qual todo mundo fala atualmente. Esta homogeneização tende a investir mesmo sobre o que resta do “campo socialista”. Novamente, um texto de idade venerável assume aspectos proféticos. Parece que não se pode frear a expansão da burguesia:
“Os preços baratos de suas mercadorias são a artilharia pesada com a qual ela derruba todas as muralhas da China e faz capitular até os povos bárbaros mais hostis aos estrangeiros. Sob a ameaça da ruína, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção; força-as a introduzir a assim chamada civilização, quer dizer, a se tornar burguesas. Em suma, ela cria um mundo à sua imagem e semelhança” (p. 12).
Espraiando sua ação homogeneizante em escala planetária, a burguesia, na realidade, impõe não somente sua potência econômica e ideológica, como afirma o Manifesto, mas também sua potência política e militar (é um aspecto do imperialismo do qual Lenin fala). Países como a China e Cuba encontram-se, assim, expostos às mais diversas formas de pressão: embargo, guerra econômica e ameaça de guerra econômica, intimidações militares, campanhas ideológicas internacionais que podem recorrer a um impressionante poder de fogo multimídia. Toda forma de resistência se revela difícil, tanto mais que este países são obrigados a reinventar a transição para uma sociedade pós-capitalista através de experiências e erros e, evidentemente, sem recorrer a fórmulas miraculosas ou às indicações precisas de um clássico qualquer.
Do lado da burguesia, geralmente se acusa Marx de ter tido uma visão catastrófica do desenvolvimento histórico. Na realidade, ao menos no que se refere à política internacional, ele não se engajou a fundo na desmistificação da ideologia harmonizadora da burguesia de seu tempo, a qual celebrava sua expansão planetária como a marcha triunfal da civilização e da paz. São os anos em que Constant profetisa a desaparição ou o declínio do fenômeno da guerra na sequência da expansão do comércio. Mais tarde, Spencer verá a figura do industrial-comerciante suplantar a do guerreiro, no exato momento em que a expansão industrial e comercial da metrópole europeia se realiza não apenas sob o signo de guerras sangrentas nas colônias, mas também sob o de uma rivalidade crescente entre as próprias potências industriais-comerciais, rivalidade que iria ter uma influência nada desprezível no desencadeamento da primeira guerra mundial.
Trata-se de uma concepção que, às vezes, aparece mesmo no Manifesto Comunista. Na metrópole, um processo de pacificação geral parece iniciar-se: “As diferenças e contradições entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado mundial, com a uniformização da produção industrial e das condições de vida que lhe são correspondentes” (p. 26).
Parece que se assiste a um declínio do fenômeno da guerra já na sociedade burguesa desenvolvida, sem que seja preciso esperar o comunismo e “com o fim do antagonismo de classes no interior das nações, desaparece também a hostilidade entre as nações” (p. 26). Apenas alguns meses mais tarde, a Nova Gazeta Renana ironiza Ruge por não compreender que o fenômeno da guerra não desaparecia com a extinção do regime feudal e que os países nos quais domina a burguesia não são absolutamente “aliados naturais”, pois estão separados por uma concorrência impiedosa, cuja saída só pode ser justamente a guerra.
De qualquer modo, logo a história demonstraria de maneira trágica que a “interdependência universal” produzida pelo capitalismo não está, absolutamente, em contradição com o fenômeno da “guerra industrial de extermínio”. É uma lição que não convém esquecer.
Novos perigos dramáticos nascem em nossos dias, após o “final da guerra fria”, enquanto o conflito entre capital e trabalho se estende ao nível planetário, levado por uma mundialização que, para dizer mais uma vez com o Manifesto, implica transformar a população de todo o planeta em “instrumentos de trabalho cujo preço varia conforme a idade e o sexo” (p. 15), que são “obrigados a se vender diariamente” (p. 14) e que, submetidos, como as outras mercadorias, “a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as turbulências do mercado” (p. 14), veem sua vida oscilar entre “despotismo” de fábrica e desemprego.
Inclusão | 04/03/2019 |